Josué de Castro e a fome como problema político e estrutural

Por Adriana Salay no Boletim Lua Nova do CEDEC | Setembro de 2023

“O ‘profeta da fome mundial’, como seus muitos amigos gostavam de chamá-lo, está morto” (Fundação, s.d.). Josué de Castro morreu em Paris, vítima de um ataque cardíaco em 24 de setembro de 1973, aos 65 anos. Em setembro de 2023 completa-se o cinquentenário desse fatídico dia, ao mesmo tempo em que entreguei minha tese de doutorado sobre o intelectual e a formação da fome cotidiana como um problema discutido publicamente. Este texto apresenta algumas ideias desse trabalho desenvolvido no Departamento de História da USP, sob a orientação do professor Miguel Palmeira.

Em decorrência da morte de Josué de Castro, o Vaticano rezou uma missa em seu nome. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) também lhe prestou homenagem. No Brasil, alguns deputados do partido da ditadura militar, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), apoiaram a iniciativa do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao regime, para uma nota de pesar pela sua morte. Diversas matérias foram publicadas em vários jornais brasileiros, como O JornalTribuna da imprensaO GloboJornal do BrasilO Estado de São Paulo, e internacionais, como Le FigaroLe Monde e The New York Times. Seu corpo veio para o Brasil para ser enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Castro foi nacional e internacionalmente reconhecido por seus estudos sobre a fome e, quando morreu, embora exilado, gozava de prestígio.

Nascido no Recife em 1908, Josué Apolônio de Castro foi um homem de ação. Participou de organizações de combate à fome, tendo sido presidente do conselho da FAO e fundador da Associação Mundial de Luta contra a Fome (ASCOFAM) e do Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID). Castro atuou como professor e intelectual, lecionando na Faculdade de Medicina do Recife, Universidade do Distrito Federal e Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de outras instituições internacionais. Publicou diferentes obras que versam sobre alimentação e fome. Sua consagração como protagonista entre aqueles que versavam sobre o tema aconteceu quando lançou o livro Geografia da fome em 1946traduzido em diversas línguas e reeditado ano passado pela editora Todavia. Fora esse, podemos citar Geopolítica da fome ou seu livro de ficção Homens e Caranguejos como obras de destaque. Também era figura constante na grande imprensa, concedendo entrevistas ou assinando artigos.

No período no qual Josué atuou, entre os anos 1930 e 1960, os intelectuais, em muitos casos, tinham algum cargo público ou exerciam outras profissões, ao mesmo tempo que publicavam livros ou escreviam para os jornais. Era o caso de José Lins do Rego, que atuou como fiscal de renda; Jorge de Lima, que era médico; ou Jorge Amado, que foi importante quadro do Partido Comunista. Josué de Castro, que não havia herdado capital financeiro ou patrimônio de sua família, teve que se valer do seu trabalho e fez um grande investimento nele. Além dos trânsitos acadêmicos, Castro manteve seu consultório no Recife e, mais tarde, no Rio de Janeiro, de 1930 até meados dos anos 1950.

Vale destacar também sua atuação enquanto articulador de diferentes órgãos governamentais. No Brasil, participou da fundação e gerenciamento do Serviço Técnico de Alimentação Nacional (1942-1945), do Instituto de Tecnologia Alimentar (1944) – depois incorporado pela Universidade do Brasil em 1946 –, do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), criado em 1940 e extinto em 1967 e da Comissão Nacional de Alimentação (1945-1972). Em 1954, elegeu-se deputado federal por Pernambuco pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sendo reeleito em 1958. Em 1962, renunciou ao mandato para ser embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU). Essas diferentes atuações aumentaram ainda mais os espaços em que circulou ao longo da vida. 

Castro, apesar de ter nascido fora do circuito hegemônico de circulação de ideias, fez um grande investimento para se tornar portador da temática da fome. Seus investimentos se deram em um momento em que foi possível para ele ascender, pois o capital cultural passou a ser cada vez mais um elemento do recrutamento para cargos em lugares como a universidade e o Estado (Miceli, 1979). As categorias propostas de forma mais acabada por ele em sua obra de consagração, Geografia da fome, fornecem-nos uma base importante para entender o percurso do autor: fome epidêmica e fome endêmica.

Por fome epidêmica ele compreendia episódios graves, mas momentâneos, que assolavam um lugar: crises de fome que impressionavam os espectadores. Episódios como as secas que devastavam o semiárido e intensificavam problemas sociais poderiam ser catalisadores de uma fome epidêmica. As crises de fome ocasionadas por guerras também eram epidêmicas. Isso porque, nos momentos de chuva, haveria mais alimento para a população. O mesmo aconteceria quando um território se restabelecesse da guerra. É diferente da fome endêmica, que não está circunscrita a uma fatalidade natural ou momentânea e permanece no tempo. Nesse caso, as pessoas se alimentavam, mas de forma insuficiente (Castro, 1948).         

O que a análise clínica chamava de subnutrição ou má nutrição deveria ser chamado de fome endêmica, propôs Josué. Uma fome produzida socialmente, pela formação do país fundamentada no latifúndio e na monocultura, que não dava acesso ao alimento para uma parte da população cotidianamente. Josué fazia parte do grupo científico que propôs a racionalização da alimentação a partir dos anos 1930 no Brasil. Ele se apropriou das ferramentas para medir a ingestão de alimentos, na formação da ciência da Nutrição, e associou-as de forma mais contundente à fome – a fome endêmica. Essa fome era menos intensa e provocava menor comoção, mas não era de menor importância. Sua proposta elevava o problema estrutural e cotidiano à mesma estatura de problema social das crises de fome.

O fato de Geografia da Fome ter sido lançada em 1946, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, precisa ser levado em consideração. Essa guerra foi catalisadora de uma imensa fome, ao mesmo tempo em que impulsionou organismos para lidar com a questão, como a FAO. Após esse período, fome em sua acepção endêmica predominou no que chamei na tese de espaço público letrado: publicações literárias ou científicas, jornais e revistas de maior circulação. Essa categoria foi pensada a partir da intenção de delimitar o que era público e letrado naquele período.

Espaço público remete a ideia de um espaço social onde indivíduos se engajavam em discussões sobre o bem comum (Habermas, 2014). O termo letrado remete à intenção de localizar o circuito específico que Josué pertencia. Isso porque a palavra fome era mobilizada em outras instâncias, como a dos famintos, dos motins populares, das greves organizadas ou das greves de fome. Os entendimentos sobre o que era fome desses outros espaços, por vezes também públicos, não necessariamente passavam pelos circuitos hegemônicos de circulação de ideias, espaço principal do qual se ocupou o autor. As discussões e representações da fome formadas no debate científico do qual Castro participou não eram compartilhadas por toda a população, e sim por jornalistas, acadêmicos, políticos, burocratas nacionais e internacionais e o público que lia e ouvia esses grupos. Apesar de ter apoiado movimentos populares como as Ligas Camponesas, Castro circulou principalmente no espaço público letrado. Nesse espaço, Josué foi protagonista na disputa por um sentido de fome. Uma vez cientista e autorizado dentro do espaço público letrado, Josué se vinculou ao tema que o consagrou, como aquele que havia conhecido a fome nos mangues do Recife.

Era validado quando era conveniente, mas também rechaçado quando não oportuno, sendo lembrado de sua classe e raça. Apesar de ter sido registrado como branco, Josué sofreu com o racismo estrutural brasileiro. Os adversários declarados e não declarados, em sua maioria, pernambucanos, chamavam Josué de “mulato”. O termo que designa pardos, como filho de uma mulher negra com um homem branco, o caso de Josué, era usado nesses episódios de forma pejorativa e desabonadora. Sendo relacional e histórico, o racismo engendrava os conflitos e tensões das disputas em operação dos circuitos frequentados por Josué. A questão racial não foi mobilizada pelo próprio autor nem por seus estudiosos, evidente apenas nesses trechos em que aparecem como boatos pejorativos espalhados por seus opositores. Isso não retira o fato de sua origem social e racial terem se tornado fontes depreciativas para aqueles que, em sua maioria, gozavam dos privilégios das classes dominantes. Como mostra o depoimento de Manuel Correia de Andrade:

A minha impressão é o que eu ouvi aqui, por parte das elites, uma certa reação contra Josué por vários motivos: primeiro, Josué era meio mulato, meio eu não digo, mas era meio moreno, em segundo lugar, dizem que ele era de origem muito humilde, eu não sei a opinião da família, eu nunca o vi falar no assunto. Uma outra coisa, e essa é a maior, talvez a que mais tenha contribuído para as animosidades aqui no Recife, é que Josué de Castro contrariou os interesses das oligarquias, que com o negócio da fome, ele tomou uma posição que não interessava aos grandes latifundiários, incomodava, e também porque ele partiu para uma militância política. Com esta inserção dele na política, agravou-se a situação (Andrade, 2012, p 377).  

Josué de Castro desafiou as oligarquias ao propor um sentido de fome que abarcava sua condição estrutural calcada nas desigualdades. O fez também quando apontou a reforma agrária como solução essencial para a fome. Reivindicar um novo sentido de fome, ampliando o entendimento sobre o termo, tinha importantes implicações. Isso porque se a fome era tratada enquanto crise, suas soluções também caminhavam nesse sentido. A partir do momento em que o problema passou a ser visto como endêmico e estrutural, as soluções precisavam dar conta dessa condição. Programas públicos como o SAPS e a preocupação com a alimentação  escolar vieram desse entendimento. Ao mesmo tempo, soluções apresentadas pelos técnicos, como a reforma agrária, apesar do amplo apoio popular naquele momento, não foram levadas a cabo por um Congresso povoado de latifundiários e seus representantes. 

Apesar disso, a fome se tornou um assunto de primeira grandeza e Castro, seu enunciador mais destacado. Jamesson Ferreira Lima, delegado da ASCOFAM em Pernambuco, narrou uma situação em que estavam no interior do estado e um homem se aproximou: “[n]ão sei ler, mas sei que o Sr. é o homem da fome e eu lhe admiro muito” (Lima, 1983, p.105). O “homem da fome” encontrou, no entanto, os limites sociais do alcance das prescrições, aparentemente apenas técnicas, mas que eram também políticas. O golpe militar de 1964 precisa ser entendido dentro da reação à reforma agrária e outras reformas de base. Josué estava na primeira lista daqueles que tiveram os direitos políticos suspensos ou cassados. Exilado, sentiu esse lugar de pária da própria pátria. No final da vida, mais pessimista em suas análises sobre a sociedade, Josué admitiu que 

[d]esde que eu escrevi o meu primeiro livro sobre a fome, em 1946, até agora, a situação alimentar do mundo não se modificou. Mudança houve no conhecimento do problema. Até hoje nenhum programa capaz de resolver essa magna questão foi aplicado. Os meus livros valeram enquanto contribuíram para que as pessoas passassem a falar mais sobre a fome no mundo, mesmo onde anteriormente não podiam fazer (Fundação, s. d. [1972], n. p.).

Historicizar os debates em torno da fome não significa a deslegitimação desse conceito. A fome é frequentemente expressa como fato evidente por si mesmo, naturalmente elegível enquanto um problema social a ser resolvido. O estatuto histórico do conceito de fome não esvazia a materialidade do fenômeno. É preciso ter em mente que seu entendimento não é uma constante histórica e, mesmo dentro de um período, como o da atuação de Josué de Castro, seus significados geravam controvérsias. Ao longo da pesquisa notei que, apesar da visão hegemônica sobre o fenômeno, suas definições eram concomitantes e em disputa, concorrendo no plano dos debates públicos e derivando, delas, determinadas visões e ações políticas.

O surgimento das discussões sobre a fome endêmica concorria com outras interpretações. Um exemplo da permanência de outros sentidos de fome é a visão de que ela é causada pela falta de trabalho ou por ignorância. Outro é a manutenção de sua definição por meio da ligação com a noção de crise, que se dá até hoje. Basta lembrarmos do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, quando disse que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não […]. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo” (Jiménez, 2019, n. p.). Esse recorte das pessoas em situação de fome como portadoras de um “físico esquelético” é a vinculação do termo à inanição e à crise.

O trabalho de Josué de Castro continua necessário. O desmantelamento de políticas públicas de combate à fome dos últimos anos e o acirramento das desigualdades, como as de raça, classe, gênero, região e território, aumentaram significativamente a fome no Brasil. Segundo dados da última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), atualmente mais da metade do país tem dificuldades de colocar comida na mesa e, desses, 33 milhões de brasileiros estão em situação de fome grave (Rede, 2022).

As crises de fome, como a vivida na pandemia, continuam sendo propulsoras da exibição e discussão do problema. Assim como os números aumentaram significativamente no período, as ações da sociedade civil contra a fome também subiram. Foi nesse contexto que, junto com outras pessoas que trabalham no restaurante Mocotó, fundamos o projeto Quebrada Alimentada, que acontece na Vila Medeiros, no extremo norte da cidade de São Paulo. Nós distribuímos marmitas todos os dias e cestas básicas uma vez por mês para pessoas identificadas pela rede de solidariedade que se formou e pela parceria com trabalhadores da Unidade Básica de Saúde da região. Também passamos a discutir políticas públicas e a fazer campanhas para a sensibilização ao problema, como a participação na campanha Gente é pra brilhar não para morrer de fome, que aglutinou mais de 100 grupos da sociedade civil.

Se o fim da fome está no questionamento do modelo atual de sociedade e no combate às desigualdades, a solidariedade se mostra necessária enquanto essas transformações não acontecem. Tornei-me, como ensinou Josué de Castro, alguém que pensa o problema e atua na esfera pública. Dessa forma, objeto pertencente ao espaço social que analisei na tese. 

Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Manuel Correia de. Entrevista de julho de 1996 a Tânia Elias Magno da Silva. In: SILVA, Tânia Elias Magno da. Memória do Saber: Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. São Paulo: Editora Brasiliense, [1946] 1948.

FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO (FUNDAJ). Josué de Castro est mort. La Via Catholique. [s.d.]. Acervo Josué de Castro, Pasta 267.

________. A capital. Acervo Josué de Castro, Pasta 25. 29 de março de 1972.

JIMÉNEZ, C. Bolsonaro: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, é um discurso populista”. El país, 19 de julho de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ brasil/2019/07/19/politica/1563547685_513257.html Acesso em 01 de mar. 2023.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

LIMA, Jamesson Ferreira. Consciência contra a fome. InCiclo de Estudos sobre Josué de Castro: Depoimentos. Recife: Academia Pernambucana de Medicina/ UFPE, 1983.

MICELI, Sergio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro: Difel, 1979.

REDE PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]. São Paulo, 2022.


[1] Adriana Salay é historiadora e professora. É doutora em História Social pela USP com a tese Josué de Castro e a fome: gênese e gestão de uma questão social no Brasil. Foi professora visitante da Unicamp, na Faculdade de Engenharia de Alimentos, e comanda o projeto Quebrada Alimentada com o restaurante Mocotó, que promove assistência alimentar direta. É co-autora do livro Fome e Assistência Alimentar na Pandemia (SEFRAS, 2022). E-mail: adrianasalay@gmail.com

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