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v.2 n.1 2023 DOSSIÊ CIDADES AFRICANAS Volume 2: Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas Laje é uma publicação semestral do ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Dedica-se ao giro decolonial latino-americano, às epistemologias do sul e à descolonização do conhecimento, priorizando uma produção transdisciplinar em interseção com diferentes dimensões do urbanismo, da paisagem e da arquitetura. ISSN: 2965-4904 Laje, volume 2 - número 1, 2023 Dossiê Cidades Africanas. Volume 2: Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas ISSN: 2965-4904 Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia R. Caetano Moura, 121 - Federação, Salvador - BA, CEP 40210-905 Editores-Chefes Leo Name Tereza Spyer Equipe de produção editorial Adriana Caúla Bruna Otani Ribeiro Céline Veríssimo Frank Andrew Davies João Soares Pena Larissa Fostinone Locoselli María Camila Ortiz Mariana Malheiros Murad Jorge Mussi Vaz Oswaldo Freitez Carrillo Rodrigo da Cunha Nogueira Concepção do design Adriana Caúla Oswaldo Freitez Carrillo (coord.) João Soares Pena Leo Name María Camila Ortiz Design final e projeto gráfico Oswaldo Freitez Carrillo Coordenação gráfica Leo Name Oswaldo Freitez Carrillo Editoração Oswaldo Freitez Carrillo Capa Leandro Ferreira Marques Tayná Almeida de Paula Comitê editorial Alex Schlenker (UASB, Equador) Alfredo Gutiérrez Borrero (UTADEO, Colômbia) Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ, Brasil) Ana Paula Baltazar (UFMG, Brasil) Andréia da Silva Moassab (UNILA, Brasil) Bianca Freire-Medeiros (USP, Brasil) Carolina Bracco (UBA, Argentina) Christian León (UASB, Equador) Cláudio Rezende Ribeiro (UFRJ, Brasil) Cristiane Checchia (UNILA, Brasil) Joaquín Barriendos (UNAM, México) Luciana da Silva Andrade (UFRJ, Brasil) Maria Estela Ramos Penha (UNIME, Brasil) Rita de Cássia Martins Montezuma (UFF, Brasil) Yasser Farrés Delgado (USTA, Colômbia) Editaram esse número Céline Veríssimo João Soares Pena Murad Jorge Mussi Vaz Colaboraram com esse número Antonia dos Santos Garcia (In memorian) Céline Veríssimo Dú Evangelista Fábio Macêdo Velame Francine Cavalcanti NEIM / UFBA Joana D´Arc João Soares Pena Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira Luis Guilherme Cruz Pires Maurício dos Santos Marizélia Carlos Lopes (Nega) Mayara Mychella Sena Araújo Murad Jorge Mussi Vaz Nayara Cristina Rosa Amorim Paula Regina de Oliveira Cordeiro Rivke Jaffe Rodrigo Nogueira Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino Thiffany Odara Lima da Silva Victor Menck Wayne Modest Traduziu nesse número Carolina Maurity Frossard DOSSIÊ CIDADES AFRICANAS Volume 2 Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas v.2 n.1 - 2023 Sumário Editorial Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas 9 Céline Veríssimo, João Soares Pena e Murad Jorge Mussi Vaz In Memoriam Antonia dos Santos Garcia: teoria e práxis feministas ao vivo e a cores 21 NEIM /UFBA Entrevistas Arquiteturas e cidades no Atlântico Negro, raízes africanas e (re)invenções na diáspora 36 Entrevista com Fábio Macêdo Velame Pelo “direito ao território” afrodiaspórico. A especificidade pedagógica da luta quilombola de Ilha de Maré, Salvador, Bahia 58 Entrevista com Nega (Marizélia Carlos Lopes) Ressignificação da herança afrodescendente na engenharia e na arquitetura de Ouro Preto Entrevista com Dú Evangelista: Movimento OuTro Preto 92 artigos A presença negra no interior paulista - Brasil 106 Joana D’Arc de Oliveira e Vitor Daniel Menck “Quem pode ser dono da morada de deuses?” Terra, terreno, terreiro 132 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino Pontos riscados no chão: a presença da umbanda em Salvador, Bahia 166 Mayara Mychella Sena Araújo e Nayara Cristina Rosa Amorim Novas raízes: 196 ontologias jamaicanas da negritude, da África ao gueto Wayne Modest e Rivke Jaffe Cidade, relações de gênero e raça: Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais 228 Antonia dos Santos Garcia Ensaio Orixás: virações cotidianas 262 Mauricio dos Santos Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra: cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde o Engenho Velho da Federação, Salvador – BA 298 Luis Guilherme Cruz Pires Resenha Travessias em Ponta de Areia: um mergulho profundo de poder ancestral enraizado na arquitetura do Omo Ilê Agboulá Thifanny Odara Lima da Silva 332 Editorial Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas Céline Veríssimo DAMG/UPT, PPGPPD, CAU e MALOCA / UNILA, ¡DALE! / UFBA João Soares Pena ¡DALE! / UFBA, UNEB Murad Jorge Mussi Vaz ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, DEAAU / UTFPR ste é o volume 2 do Dossiê Cidades Africanas, da revista Laje, vinculado ao grupo de pesquisa Decolonizar a América Latina e seus Espaços (¡DALE!), sediado na UFBA. Intitulado Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas, dá continuidade à discussão iniciada no primeiro volume, Cidades e arquiteturas na África, deslocando a atenção para territórios afrodiaspóricos no Brasil e na Jamaica Os debates empreendidos por autores e autoras tensionam e, ao mesmo tempo, desnudam variados processos de enfrentamento, resistência, apagamentos, permanências e (re)invenção afrodiaspóricos, no contexto da colonialidade/modernidade. E Não é possível fazer essa discussão se não a situarmos geo-historicamente, ou seja, se não tivermos como elemento de referência a emergência do projeto colonial europeu que, não apenas mudou a geografia do mundo, mas que, sobretudo, apresentou a Europa como uma centralidade pretensamente universal, com base em dominação e destruição de outros povos, bem como exploração e espoliação de corpos e territórios nos quatro cantos do mundo. v.2 n.1 p. 8-19 2023 ISSN: 2965-4904 O sociólogo peruano Aníbal Quijano (1999; 2005) já mostrou como o projeto colonial se efetivou. A partir da construção social da ideia de raça, europeus, a partir do encontro com os povos ameríndios, subjugaram outros povos, incluindo os africanos, acionando tropos de hierarquização/classificação social pelos quais habitam o que ele chamou de zona do não-ser. Esta zona do não-ser diz respeito à desumanização sofrida pelos negros (e também outros grupos alocados fora da branquitude) a partir do processo de colonização da América e, especialmente, do tráfico de homens e mulheres da África para aquele continente na condição de escravizados. Estima-se que, entre 1514 e 1866, mais de 12 milhões de africanos e africanas tenham sido sequestrados e trazidos para o continente americano (ZORZETTO, 2020), dentre os quais cerca de 5 milhões tiveram 1 o Brasil como destino. Esses africanos e africanas, e seus descendentes, já do lado de cá do Atlântico, foram responsáveis pela construção do novo mundo e pela produção de riqueza que encheu os cofres de colonizadores, sejam daqui ou da Europa. Sim, o trabalho braçal e os conhecimentos tecnologicos e científicos couberam àqueles e àquelas de quem elites brancas destituíram de humanidade e, após a abolição da escravidão, se tem tentado eliminar e invisibilizar a todo custo. O projeto de domínio e subjugação dos colonizadores sobre pessoas negras envolvia múltiplas dimensões de dominação, entre as quais um processo de epistemicídio, ou seja, a negação do conhecimento produzido pelos grupos dominados e também da sua constituição enquanto sujeito de conhecimento. Isto constitui um dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial (CARNEIRO, 2005, 96), pois nega a riqueza cultural e epistemológica dos dominados, impondo-lhe os valores dos dominadores, dos brancos, os quais seriam, supostamente, os detentores únicos do saber na sua visão de mundo. Apesar disso, os povos negros foram e têm sido capazes não só de preservar sua cultura porém não sem perdas e muito sofrimento, mas também de construir novas possibilidades de vida e expressão cultural. É claro que isto foi resultado de processos de resistência, enfrentamentos e também de muito sangue derramado. Vale ressaltar que tentativas de apagamento da herança africana, no Brasil, de modo geral, e, particularmente nas cidades, continuam ocorrendo. A despeito da política urbana brasileira não ser orientada pela preocupação com a população negra, menos ainda com a sua cultura, os múltiplos desdobramentos que as intersecções entre os povos originaram e continuam a originar produzem saberes e formas de ser altamente sofisticadas, nas mais variadas expressões culturais e espaciais, combatendo e revertendo os valores moderno/coloniais excludentes sustentados pela branquitude. Esse processo de apagamento atravessa e é atravessado pelas dimensões de compreensão e narrativas históricas nas múltiplas espacialidades, corporeidades e subjetividades da africanidade urbana e rural no mundo. Entre os inúmeros exemplos que poderíamos trazer, cabe pensar sobre o Museu do Amanhã, há alguns anos inaugurado na área portuária do Rio de Janeiro, cujo projeto foi assinado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Como o próprio nome diz, o museu se projeta para o futuro, porém sem olhar para trás, pois ali perto está o Cais do Valongo, considerado o maior porto receptor de africanos traficados para a América. O museu se tornou o grande ícone da zona portuária, invisibilizando a memória p. 11 da diáspora africana e do Brasil, além de não considerar as múltiplas apropriações cotidianas, de toda a área em questão, pela população que residia e foi removida das imediações. Vassallo e Cicalo (2015) afirmam, inclusive, que num primeiro momento do Porto Maravilha, iniciado em 2010, o patrimônio afrodescendente da localidade não entrava na pauta, então focado em projetos como o do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio. A inclusão da memória negra no projeto de revitalização da área portuária só foi possível em razão da articulação de acadêmicos e ativistas negros. Este é só um dos casos em que a permanência e/ou o resgate da herança africana em nossas cidades não se dá simplesmente pelo reconhecimento de sua importância pelos governantes, mas pela incansável luta do povo negro. Como conta Conceição Evaristo (2015), "apesar de eles terem combinado de nos matar, a gente combinamos de não morrer". Não se trata, aqui, apenas da morte em uma perspectiva ontológica, mas também da morte por epistemicídio, apagamento da herança africana nas cidades e outras dimensões sociais, constitutivas da sociedade brasileira. No atual contexto de crise e de aumento do número de famintos no Brasil, acirrando ainda mais as dificuldades históricas do povo negro que habita o quarto de despejo das cidades brasileiras, como definiu a escritora Carolina Maria de Jesus (2014), é preciso não apenas compreender como o racismo tem determinado o funcionamento da sociedade e legitimado conhecimentos, mas também sistematicamente eliminado, subjetiva e fisicamente, formas de vida e existência: nos becos e vielas, nos morros e no asfalto, diariamente. Por isso, parece-nos importante e urgente fortalecer formas históricas e contemporâneas de resistência, além de construir novas estratégias de enfrentamento às violências perpetradas pelo racismo, pelo patriarcado e pela colonialidade. É nesse sentido que se desenvolvem tanto o dossiê como um todo quanto o presente volume, especificamente. Buscamos somar esforços àqueles e àquelas que têm se dedicado ao resgate e à valorização das contribuições do povo negro ao campo de arquitetura e urbanismo e à produção da cidade, de atividades culturais e de conhecimento no Brasil e em outros contextos afrodiaspóricos. Cada um dos textos neste volume contribui com uma reflexão crítica e aprofundada para a temática. p. 12 Dedicamos este volume a Antonia dos Santos Garcia, mulher negra intelectual e ativista brilhante que nos deixou durante o processo de organização do dossiê e que contribui in memoriam com um artigo. Abre o dossiê um “memorial” intitulado Antonia dos Santos Garcia: teoria e práxis feminista ao vivo e a cores, de autoria coletiva das integrantes do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Uni- versidade Federal da Bahia (UFBA). As autoras contam a trajetória de Antonia Garcia, desde seu nascimento na cidade de Cachoeira, na Bahia, passando pelo ativismo nos movimentos sociais urbanos, pela política partidária e por sua atuação como acadêmica, com passagem por universidades na Bahia e no Rio de Janeiro. Com uma atuação ancorada na teoria e na práxis feminista e na luta anrirracista, Antonia dos Santos Garcia deu grandes contribuições para a política partidária e movimentos de base, bem como para os estudos de sociologia urbana, preocupando-se com as relações entre desigualdades, raça, gênero e cidade. Este volume segue com a seção de entrevistas. O conjunto escolhido contempla diversas dimensões constitutivas de arquiteturas, territórios, corpos e sujeitos afrobrasileiros. São narrativas construídas a partir da academia, de movimentos sociais sujeitos e coletivos que perfazem caminhos de visibilização, lutas e resistências históricas e contemporâneas a partir de rumos tomados da ancestralidade às intersecções contemporâneas. A primeira entrevista, intitulada, Arquiteturas e cidades no Atlântico Negro, raízes africanas e (re)invenções na diáspora”, foi realizada em 2021, a partir do envio de perguntas por e-mail e por nós, Céline Veríssimo, João Pena e Murad Vaz, ao arquiteto e urbanista e professor do PPG-AU/FAUFBA Fábio Macêdo Velame. Em suas respostas, ele fala de sua trajetória profissional e acadêmica, sempre preocupada com as questões étnico-raciais. Sendo um dos mais proeminentes nomes quando se trata de arquiteturas afro-brasileiras, Velame tem se dedicado à questão dos terreiros de candomblé na Bahia, realizando importantes trabalhos em parceria com diversas instituições, visando a sua preservação e seu registro como patrimônio. Suas contribuições para o ensino de arquitetura passam pela inclusão, na última década, das primeiras disciplinas que discutem questões étnico-raciais em arquitetura e urbanismo na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Além disso, o grupo de pesquisa que coordena, o EtniCidades, realiza anualmente um seminário voltado às questões étnico-raciais em arquitetura e urbanismo, promovendo diálogo com pesquisadores nacionais e internacionais. Velame também conta sobre seus projetos atuais, as parcerias que tem estabelecido com universidades africanas e, por fim, diz acreditar que é possível descolonizar a arquitetura e o urbanismo, mas considerando que será um processo longo, que requer a implementação de mais políticas antirracistas. Na sequência, Nega (Marizélia Carlos Lopes), militante do Movimento Nacional de Pescadoras e liderança quilombola da Ilha de Maré, na Bahia, é entrevistada pelas geógrafas e pesquisadoras Francine Cavalcanti (POSGEO/UFBA) e Paula Regina de p. 13 Oliveira Cordeiro (UNEB, POSGEO/UFBA) e pela arquiteta e urbanista e pesquisadora Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira (RAU+E, EtniCidades/UFBA), mostrando o quanto que corporifica as lutas empreendidas cotidianamente por comunidades quilombolas, sejam urbanas ou rurais. Pelo Direito ao Território afrodiaspórico - a especificidade pedagógica da luta quilombola de Ilha de Maré, Salvador, Bahia reflete sobre a consistência de lutas de longa duração para a manutenção de modos de vida que se vinculam diretamente às especificidades do território, da ancestralidade, do corpo e do lugar. A entrevista é dividida em quatro eixos: 1) Identidade quilombola e território: sujeito individual e coletivo ancestral; 2) Corpo-política, da luta pelo Direito ao Território: organização social X conflitos histórico-sócio-ambientais; 3) Limites da institucionalidade diante do racismo estrutural do Estado brasileiro; 4) Leitura de conjuntura e caráter pedagógico da luta quilombola da Ilha de Maré. Constitui-se, pois, em uma potente reflexão crítica e política sobre os tensionamentos entre o racismo estrutural, perpetrado inclusive pelo Estado brasileiro, e formas-outras de existência conduzidas por povos afro-brasileiros. Fechando a seção, seguimos com uma entrevista com outra liderança negra, desta vez de Ouro Preto, em Minas Gerais. Dú Evangelista, engenheiro civil e líder do Movimento Outro Preto, foi entrevistado pessoalmente pelo arquiteto, urbanista, pesquisador do ¡DALE! e docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Rodrigo da Cunha Nogueira. Ao longo de seu relato, Evangelista não só denuncia a colonialidade histórica de Ouro Preto, que persiste até os dias de hoje na invisibilização, na marginalização e na segregação espacial da população afrodescendente, mas sobretudo revela o quanto o patrimônio arquitetônico e urbano da região que é tombado pela UNESCO como atribuído à colonização portuguesa é resultado de conhecimentos tecnológicos, científicos e sociais trazidos pelas pessoas africanas escravizadas. Na luta contra esse epistemicídio histórico, o ativismo do Movimento OuTro Preto mostra uma outra Ouro Preto, de matriz africana, através da Mina Du Veloso, entre muitas outras iniciativas que visam a desconstruir o racismo e ressignificar os conhecimentos advindos da herança africana nas áreas de engenharia, arquitetura, urbanismo e organização do trabalho nos canteiros de obras, que têm sido apagados da história. p. 14 Neste volume, a seção de “artigos” nos conduz por múltiplas narrativas, referenciais, contextos e territórios que contemplam diversas corporeidades e espacialidades que se expressa em lutas, heranças, contribuições simbólicas e culturais, constituindo resistências ao racismo estrutural que nos atravessa de múltiplas formas. No artigo A presença negra no interior paulista - Brasil, a arquiteta, urbanista e pesquisadora Joana D’Arc de Oliveira e o graduando em arquitetura e urbanismo Victor Menck, ambos do IAU/USP, nos levam a refletir sobre a presença negra nas cidades do interior paulista. A partir de um referencial teórico interdisciplinar, traçam um histórico da trajetória das populações negras nos municípios de São Carlos e Americana, em São Paulo, resgatando e apresentando as alternativas e as formas múltiplas que a população negra historicamente tem criado para se apropriar do espaço urbano, concebido para lhes marginalizar. Com base em uma leitura sobre a consolidação espacial de tais municípios, buscam desnudar, a partir da dimensão do território, enfrentamentos sociais, políticos e econômicos, entre outros, que se espacializam e formam espaços de disputa. Como a autora e o autor nos mostram, através da resistência, negras e negros têm ressignificado e africanizado suas trajetórias em organizações familiares que se empenharam em preservar suas práticas culturais e religiosas em seus espaços habitacionais. Desta forma, pela prática e pela oraldiade, as matrizes culturais, ancestrais e contemporâneas são mantidas em variadas manifestações, também nos espaços privados dos quintais negros urbanos. Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do MALOCA/UNILA, em seu texto “‘Quem pode ser dono da morada de deuses?’ Terra, terreno, terreiro”. O texto enriquece sobremaneira este dossiê, ao discutir interseções e contribuições da diáspora africana que tensionam dimensões que perpassam o direito, as práticas sociais e espaciais, as noções de patrimônio cultural, as existências e as cosmovisões que se espacializam em formas-outras, diversas das constituídas hegemonicamente. Seu olhar sobre conflitos impetrados no processo de tombamento da Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, na Bahia, nos convida a refletir sobre a possibilidade de explorar outras compreensões, como por exemplo a contaminação recíproca entre nomos (o mundo normativo do Estado) e axé (o mundo normativo afroatlântico) que ocorrem no âmbito da corporeidade e da existência de múltiplos territórios afrobrasileiros em constante luta por reconhecimento e visibilização. No artigo “Pontos riscados no chão: a presença da umbanda em Salvador, Bahia, Mayara Mychella Sena Araújo, da Faculdade de Arquitetura da UFBA, e Nayara Cristina Rosa Amorim, da pós-graduação em arquitetura e urbanismo desta mesma instituição, apresentam um levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador, na Bahia. Para isso, problematizam as diferentes inserções das autoras no universo da Umbanda para se explicitar o amalgamento entre o olhar externo e o olhar interno na compreensão desta religião de dimensões afrodiaspóricas, bem p. 15 como de suas ramificações, com vistas a relacioná-las com a produção do espaço urbano de Salvador. Ao longo do texto, as autoras dão especial atenção às lacunas na produção acadêmica e realizam uma listagem de diversos terreiros, levantados por meio de ferramentas on-line no momento do isolamento social em virtude da pandemia de covid-19. Discute questões raciais e urbanas a partir de expressões artísticas o artigo Novas raízes: ontologias jamaicanas da negritude, da África ao gueto”, de autoria dos pesquisadores s Wayne Modest e Rivke Jaffe, sediados nos Países Baixos, e traduzido por Carolina Maurity Frossard, professora brasileira da Universidade Livre de Amsterdã, também dos Países Baixos. O autor e a autora discutem a negritude como questão ontológica de fortes dimensões espaciais. Analisando a arte contemporânea e a música popular, argumentam que o local da negritude, como se imagina na Jamaica, começou a se deslocar da África para o gueto. Wayne Modest e Rivke Jaffe explicam que a Jamaica tem uma forte e longa consciência política negra, com movimentos sociais, religiosos, políticos e, acrescentamos, artísticos que se voltam às questões raciais. Modest e Jaffe apresentam brevemente as abordagens artísticas jamaicanas nos períodos colonial e pós-colonial e a importância da África nesses trabalhos. A partir da análise de exposições artísticas ocorridas nas últimas décadas, apontam que artistas contemporâneos têm focado nos guetos jamaicanos, com abordagens que discutem desigualdades através de uma lente interseccional que está atenta a classe, gênero, sexualidade e espaço urbano. Também apontam que a música contemporânea dancehall tem recebido um interesse maior pelos guetos, o que tem relação tanto com a desilusão com a política interna do país quanto com o intercâmbio com a cultura afro-americana. Por fim, afirmam que esses aspectos como um novo tipo de movimento e re-enraizamento da negritude jamaicana. p. 16 Antonia dos Santos Garcia (in memoriam), professora, intelectual, ativista e pesquisadora do NEIM/UFBA, em seu necessário artigo crítico Cidade, relações de gênero e raça: Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais, conduz diversas discussões convergentes às questões empreendidas neste dossiê. Aborda a capital baiana, exemplar na formação de cidades brasileiras, na qual as desigualdades raciais têm sido historicamente orientadas por múltiplos fatores e com desdobramentos socioespaciais contundentes. Para tanto, Garcia resgata tanto dados de escolaridade, com recorte de raça e gênero, quanto um olhar afrocentrado em termos de filosofias e epistemologias, buscando tensionar a hegemonia da mulher única, que inviabilizou a luta das mulheres negras das senzalas às favelas, refletindo sobre as contradições urbanas e dos movimentos urbanos, históricos e contemporâneos, indissociáveis das violências do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo. Assim, a partir da consolidação do feminismo negro e popular, a autora nos apresenta um estímulo à busca de novos caminhos, novas epistemologias e novos paradigmas que compreendam a pluralidade do social”. Na sequência, temos a seção de “ensaios”, que se inicia com o potente e poético trabalho visual Orixás: virações cotidianas, do antropólogo e pesquisador do MALOCA/ UNILA Maurício dos Santos. Suas potentes fotografias, com múltiplos retratos de cotidianidades, nos conduzem por uma Salvador-Cidade Terreiro. As imagens provêm de um trabalho de campo feito junto aos povos de terreiro na cidade, dos quais as gentes, os territórios e os lugares traduzem a terreirização do Brasil nas lidas diárias de improváveis orixás, nas palavras do autor. Seu ensaio tensiona, então, as narrativas convencionais sobre cidades brasileiras, permitindo que, a partir da capital baiana, a herança e a presença afro-brasileiras sejam evidenciadas. O segundo ensaio chama-se Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra: cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde o Engenho Velho da Federação, Salvador BA, do arquiteto e urbanista Luis Guilherme Cruz Pires, discute os laços entre Brasil e África a partir de um bairro negro na capital baiana. É o resultado do Trabalho Final de Graduação (TFG) na FAUFBA. O autor traz belas imagens que se integram à narrativa sobre o Engenho Velho da Federação. A discussão se baseia na tríade Terreiro Caminho Encruzilhada, adotada como dispositivo conceitual e analítico para se debruçar sobre tal território afrodiaspórico. Essa tríade tem importância tanto nas religiões de matriz africana, notadamente o candomblé, quanto na morfologia urbana do bairro. A partir de uma imersão sensível nesse bairro negro, o autor revela a importância da cultura negra na dinâmica local e nas práticas espaciais. Ele também relata sua necessidade de renascer como arquiteto e urbanista, in-corporando valores e práticas afrodiaspóricos e ancestrais para enxergar a cidade negra para além da perspectiva eurocêntrica. Por fim, o ensaio evidencia a importância dos terreiros de candomblé que, além de lugares de resistência, acolhimento e trocas, constituem a alma da cidade negra. Para este volume, escolhemos para a seção de “resenhas” a obra Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no Brasil, de autoria de Fábio Macêdo Velame. Em sua consistente leitura crítica, intitulada “Travessias em Ponta de Areia: um mergulho profundo de poder ancestral enraizado na arquitetura do Omo Ilê Agboulá, a ialorixá e mestranda da UNEB, Thiffany Odara p. 17 Lima da Silva, recupera e traz aos leitores e leitoras as variadas contribuições tanto do trabalho de pesquisa de Velame especificamente sobre o terreiro Omo Ilê Agboulá indo além de sua dimensão física, mas apresentando estratégias de sobrevivência e resistência, constituindo-se peça imprescindível em seu processo de tombamento, quanto, em um espectro mais amplo, da discussão sobre a contribuição urbanística, arquitetônica e histórica dos povos afro-brasileiros, negada e minorada pela atuação do racismo e do epistemicídio. Nas palavras da autora, o livro é um bálsamo ancestral para entabular os estudos afrodiaspóricos e africanos no Brasil. Ainda são muitas as questões a serem abordadas e, inclusive, formuladas. Ainda há muitas lutas a serem travadas e múltiplas são as camadas de colonialidade que nos subjugam. Através deste volume, que trata da diáspora, desejamos a todas e a todos que o contato e as reflexões a partir de suas contribuições nos motivem a avançar um pouco mais no combate ao racismo que estrutura a sociedade e, consequentemente, se manifesta no campo de arquitetura e urbanismo. Esperamos que, a partir das reflexões e das interseções resultantes dessa leitura, possamos percorrer e construir outras abordagens teóricas, epistemológicas e metodológicas. Notas 1 Cf.: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 30 jul. 2022. Referências CARNEIRO, S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, 2005. EVARISTO, C. Olhos d`água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015. p. 18 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. QUIJANO, A. ¡Qué tal raza! Ecuador Debate, n. 48, p. 141-151, 1999. QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. in: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:CLACSO, 2005, p. 117-142. VASSALLO, S.; CICALO, A. Por onde os africanos chegaram: o Cais do Valongo e a institucionalização da memória do tráfico negreiro na região portuária do Rio de Janeiro. Horizontes Antropológicos, ano 21, n. 43, p. 239-271, 2015. 2022. ZORZETTO, R. América, mosaico africano. Pesquisa FAPESP, 3 mar. 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/america-mosaico-africano/. Acesso em: 30 jul. 2022. p. 19 In Memoriam Antonia dos Santos Garcia: teoria e práxis 1 feministas ao vivo e a cores NEIM /UFBA Figura 1: Antonia dos Santos Garcia Fonte: G1 Bahia, 2021 C v.2 n.1 p. 20-33 2023 ISSN: 2965-4904 om certa surpresa e muita comoção, tomamos conhecimento do falecimento de nossa companheira militante e pesquisadora Antonia dos Santos Garcia, no dia 5 de dezembro de 2021. Este dia 5 ficou marcado para o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como um dos mais difíceis e dolorosos dias deste já difícil e impensável ano! Perdemos ANTONIA DOS SANTOS GARCIA, nossa companheira de muitas lutas, pesquisadora associada ao nosso Núcleo e um exemplo de superação, coragem e dedicação à construção da justiça social em nosso país! Onde tudo começa Antonia Garcia nasceu em Cachoeira, Estado da Bahia, em 13 de junho de 1948 (dia de Santo Antônio), e conforme suas palavras: “Minha ancestralidade negra deve-se provavelmente a grupos de escravizados e a descendência indígena de grupos étnicos que predominaram no Recôncavo. Fui filha de um carpinteiro e uma dona de casa. Aos 15 anos, em 1963, durante o governo de João Goulart, participei do treinamento realizado pelo Movimento de Educação de Base (MEB) para alfabetização de adultos pelo rádio. A sala de aula foi montada na sala de visitas de nossa casa, com a contribuição da comunidade, e eu ministrava o curso. Em abril de 1964, o rádio se calou e não sabíamos por quê. Por esta experiência, acabei sendo professora no Grupo Escolar da Vila de Belém, quando faltou professora e a Prefeitura não a substituiu” Por volta de 1966 Antonia foi selecionada para fazer um curso de enfermagem, como parte do trabalho de base da Juventude Agrária Católica, a JAC. Fez o curso de parteira em Cachoeira e estágios subsequentes em Feira de Santana, sendo escolhida para dar continuidade ao trabalho da JAC. “Segui este caminho e tornei-me coordenadora nacional da JAC, e fui aprendendo mais sobre as causas das desigualdades sociais (as raciais e as de gênero não eram tratadas). Participando da Coordenação Nacional da Ação Católica pela JAC participei de muitos eventos locais, regionais e nacionais, inclusive como coordenadora, mas, em crise, a Ação Católica, e particularmente a JAC, buscava formas mais eficientes de atingir o povo, pois considerava que suas ações estavam excessivamente difusas, sem consolidar o processo organizativo de base. Assim, a saída pensada pela equipe foi realizar um trabalho assistencial, perfeitamente compatível com a ação da Igreja, e tornei-me parteira em Cabaceiras do Paraguaçu, onde durante dois anos fizemos muitos partos nas condições precárias do lugar, com muito entusiasmo, muita utopia, achando que a esquerda no mundo inteiro conseguiria a sonhada revolução, embaladas pelo legado de 1968”. p. 23 Teoria e práxis feministas: muito mais que um slogan No início dos anos 1970, Antonia veio para Salvador, acabando por fixar residência no Subúrbio Ferroviário de Plataforma em 1977, onde desenvolveu um intenso trabalho comunitário nesta antiga vila operária, iniciando por reunir as mulheres para lutar por melhorias no bairro e fundando a Associação de Mulheres de Plataforma. O trabalho de bairro acontecia não só em Plataforma e juntamente com outros companheiros ligados a diferentes associações uniram-se e fundaram a Federação das Associações de Bairros de Salvador (FABS). Dentre estes cita-se: Sr. Leonidio, da Associação de Jaqueira do Carneiro; Sr. Nelson, da Associação Alto da Teresina; Antonio Lazzarotto, da Associação Beira Mangue; Vera Lazarotto, da Associação Beira Mangue; Tania Nogueira, da Associação Luís Anselmo; Claudio Primo, da Associação de Bom Juá; Mário Nogueira, da Associação de Luís Anselmo; José Alves, da Associação Marechal Rondon (Zé Guarda); Jorge Pimentel, da Associação de Pero Vaz. Esta Federação travou diversas lutas por melhorias na cidade, apoiando o trabalho de bairro. Motivada por isso, a Associação de Mulheres converteu-se na Associação dos Moradores de Plataforma (AMPLA), ampliando suas lutas e suas conquistas. Ainda sob a Ditadura Militar, que, no entanto, vivia seus estertores e na ausência de uma atividade político partidária ativa, as pessoas ficavam muito motivadas em atuar junto à atividade política de movimento de bairros. Foi um período muito fecundo de atividade política, com as pessoas de base participando ativamente. Havia um grupo que acompanhava este trabalho e se reunia em uma casa da paróquia em Escada (outro bairro do Subúrbio), à margem da Baía de Todos os Santos. Antonia e pessoas do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), Pe. Gaspar e Pe. Oliveira, acabaram fundando a Associação de Cooperação Comunitária para Áreas Problemas de Salvador (ACCAP), que captou projetos no exterior e apoiou os movimentos de bairro. p. 24 Além da AMPLA e da FABS, instituições que ela ajudou a fundar, além de participar de seus Colegiados por várias gestões (não havia “presidentes”), Antonia também contribuiu ativamente com a Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) como fundadora e diretora da Comissão de Saúde. Foi também fundadora e diretora por vários anos do Centro da Mulher Suburbana (CEM), posteriormente de Salvador e, por fim, Centro da Mulher Baiana. Figura 2: Antonia Garcia (candidata à vereadora) com Lula (com adesivo de Pelegrino, candidato a prefeito) e Zélia de Plataforma. Fonte: Acervo pessoal O NEIM começou sua parceria com Antonia Garcia a partir da AMPLA, que estava sob sua liderança no desenvolvimento do projeto de Criação do Centro da Mulher Suburbana, que teve o apoio da Fundação Ford e resultou, dentre outras ações, na publicação do livro “Creche Comunitária: Uma alternativa Popular”, organizado por Ana Alice Costa (1991). Neste mesmo período, Antonia concluía o curso superior de Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Logo depois concluiu o mestrado, em 2001, seguindo-se o doutorado, no Rio de Janeiro, em 2006. O movimento por creches públicas embalou os movimentos sociais de mulheres, especialmente de bairro, onde atuavam mulheres pobres e negras, sendo muitas arrimo de família. Em 1983 foi lançada a Campanha Unificada por Creches em manifestação coordenada pela FABS em Salvador, seguindo um movimento que ocorreu em todo Brasil e levou à Constituinte estas reivindicações, tornando-se lei na Constituição de 1988. Com efeito, o debate sobre a importância da creche na liberação das mulheres e a responsabilização do Estado e da sociedade sobre a educação infantil tornou-se, constitucionalmente, “Um Direito da Criança e um Dever do Estado”. Uma longa parceria se desenvolveu desde então entre a equipe do NEIM e Antonia, culminando com sua entrada definitiva no nosso núcleo como pesquisadora associada, tendo ela também desenvolvido estágio pós-doutoral no Programa de p. 25 Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA), em 2010. Também ministrou disciplinas e orientou trabalhos de conclusão de curso de mestrado, participando de várias bancas de mestrado em Salvador, Rio de Janeiro e outros estados. Suas lutas nos bairros levaram-na a uma atuação político-partidária, tendo sido uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores (PT) na Bahia, tornando-se Secretária das Mulheres de Salvador e destacando-se como primeira mulher negra a ocupar a presidência do partido, também em Salvador. Ainda pelo Partido dos Trabalhadores, candidatou-se à Assembleia Legislativa da Bahia e, posteriormente, à Câmara de Vereadores de Salvador, não chegando a eleger-se, mas concorrendo, por certo, com um dos mais pertinentes slogans de campanha: “ANTONIA Garcia, mulher de raça!” Ela escreve: “Em 2007, aceitei um convite para ser subsecretária da reparação – SEMUR – em Salvador. Estava louca para voltar do Rio de Janeiro, onde fiquei com meu marido por seis anos (quando fiz o doutorado na UFRJ). Voltei com tanto entusiasmo, feliz por retomar minha militância, mas logo vieram os problemas de extrema competição no interior da SEMUR.” Se foi difícil conquistar o espaço no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fez o doutorado, esse outro lado da discriminação foi muito duro para Antonia. No entanto, ela continuou sua trajetória: “Fui secretária até abril de 2008, quando o PT resolveu sair do governo. Durante este período fiz o tratamento do câncer com radioterapia e, como tomei anticoagulante durante seis meses, muitas vezes nas reuniões, inclusive com o prefeito, havia sangramento que me obrigava a sair (das reuniões).” Agregando sua militância a práxis acadêmica p. 26 Aos 36 anos e com três filhos, Antonia Garcia entrou no curso de Ciências Sociais na UFBA e já na monografia iniciava o estudo científico da sua práxis, sob a orientação da professora Inaiá Carvalho, o que resultou na publicação: “Rompendo as amarras: o movimento de mulheres na periferia de Salvador” (GARCIA, PACHECO e LOPES, 1992). “Como militante dos movimentos urbanos, especialmente do movimento de mulheres populares, busquei na academia compreender a cidade, palco das nossas lutas. Verifiquei que a produção marxista sobre a cidade não deu conta de outras dimensões da opressão social, tais como gênero e raça. Contudo, os movimentos sociais que emergiram no maio de 1968 produziram uma série de questões novas dentro e fora do marxismo, levando a pensar sobre determinadas dimensões do conflito capital e trabalho que não estavam apenas nas relações de produção. Estes avanços, contudo, não atingiram os estudos urbanos e, ao fazer o mestrado e doutorado, tentei compreender outras dimensões da opressão mesmo dentro dos movimentos feministas e antirracistas, que também não compreenderam e/ou priorizaram a dimensão espacial das desigualdades que os movimentos sociais urbanos, pela própria natureza do seu ativismo, colocavam. Como ativista desses movimentos, tinha enormes dificuldades de compreender a ‘mulher universal’, não encontrada nos movimentos de bairro, cuja base social e racial negra era subsumida na categoria mulher e, mais recentemente, gênero.” Este debate aparece então na sua dissertação de mestrado em Geografia na UFBA: “As Mulheres da Cidade d’Oxum: Relações de Gênero, Raça e Classe: e a Organização Espacial do Movimento de Bairro de Salvador”, publicado pela EDUFBA, Salvador, em 2006, e na sua tese de doutorado no IPPUR/UFRJ: “Desigualdades Raciais e Segregação Urbana em Antigas Capitais: Salvador Cidade d’Oxum e Rio de Janeiro, Cidade d’Ogum”, publicado pela Garamond, Rio de Janeiro, em 2009, com apoio da FAPERJ por ter conquistado a “Bolsa Nota 10”. Neste livro, Antonia Garcia trabalhou os microdados do Censo de 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com recorte de raça, e dados georreferenciados para mostrar, de forma insofismável, como o espaço das cidades modernas e seus serviços repetem a divisão entre casa grande e senzala, entre ricos e pobres, entre brancos e negros. Trabalho inovador, no IPPUR: “As dificuldades de tratar da questão racial e de gênero foram grandes, mas meu orientador, Luiz Cesar Ribeiro, aceitou minha proposta de tese sobre as desigualdades raciais, com a limitação da pesquisa às categorias classe, raça e espaço. Segundo ele, acrescentar o recorte de gênero tornaria a análise demasiadamente complexa. Vários estudantes de pós-graduação no Brasil usaram este livro como inspiração e referência.” p. 27 Antonia participou de muitas bancas, mesmo não sendo professora universitária. Expressivo exemplo é este e-mail recebido de um mestrando do IPPUR: “... pude descobrir seu livro na biblioteca. Uau! Que encontro! Seu livro me deu muita força para os enfrentamentos que tive no IPPUR em virtude da racialização da minha pesquisa.” A contribuição teórica a partir das principais publicações Em sua tese, Antonia analisa a distribuição espacial dos indivíduos e a distribuição das residências nas duas cidades, Rio de Janeiro e Salvador, demonstrando que as desigualdades estão muito vinculadas à forma pela qual o racismo se introduziu e se desenvolveu na sociedade brasileira. A análise de indicadores de ocupação, educação, renda, bens urbanos e serviços de consumo coletivos evidenciam como a metrópole moderna recria a hierarquia racial, ou seja, a categorização racial é também um critério hieraquizador na sociedade. A autora busca, ainda, desvendar como o “racismo à brasileira” tem perpetuado as desigualdades raciais mediante a retórica anti-racialista, que reforça a naturalização de tais disparidades, e as práticas racistas continuam sendo tratadas como um não problema no país, embora o nosso cotidiano seja repleto de classificações raciais. Contribuiu com mais de uma dezena de publicações em capítulos de livros e artigos como: Contradições na cidade negra: Relações de gênero, raça, classe, desigualdades e territorialidade, em Saberes em Perspectiva (2012), cujo resumo pode dar a dimensão de sua acuidade no problema: p. 28 Salvador, antiga capital colonial e contemporaneamente terceira maior metrópole brasileira, é a mais emblemática cidade do processo histórico brasileiro por sua densidade demográfica e cultural negras. Neste artigo fazemos uma análise teórica e empírica sobre as desigualdades socioeconômicas, sociorraciais por cor/raça e sexo para compreender as relações raciais e de gênero nos espaços concretos e simbólicos que marcaram nossa forma de organização do espaço. Os dados estatísticos e cartográficos foram baseados no Censo do IBGE 2000 e analisados socioespacialmente. Na pesquisa qualitativa, utilizamos entrevistas com diversos sujeitos sociais da cidade para analisar a percepção das pessoas sobre a dinâmica social-urba- na, sobre racismo, sexismo, discriminação, etc. Assim, articulamos classe, gênero, raça e espaço como categorias centrais de análise nas suas interseccionalidades para compreender como o sexismo, racismo e classismo, ao hierarquizar os indivíduos segundo atributos físicos em superiores e inferiores, são determinantes na formação sócio-histórica no Brasil. Busca-se compreender esses fenômenos como estruturantes das desigualdades socioeconômicas e sociorraciais e culturais como se expressam no espaço urbano, particularmente as territorialidades negras e femininas e seus múltiplos significados, para pensar os processos coletivos, os processos libertários, o Direito à Cidade nas perspectivas feminista, anti-racista e anti-classista (GARCIA, 2012). Em Desigualdades Raciais e Segregação Urbana Contemporâneas, nos anais Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR), realizado em maio de 2007, ela faz a seguinte discussão: Neste artigo fazemos uma análise das desigualdades raciais e a segregação urbanas em Salvador e Rio de Janeiro utilizando os microdados do Censo do IBGE de 2000 e recorte territorial por AED – Área de Expansão Demográfica. Partindo da tentativa de compreender a forma particular pela qual o racismo se introduziu e se desenvolveu na sociedade estudada e as desigualdades raciais e segregação residencial, visando compreender a organização sócio-territorial em diferentes abordagens. Analisam-se ainda as mudanças demográficas, socioeconômicas, sociais e simbólicas e o processo de branqueamento ligados aos incentivos à imigração europeia e seus significados na cidade contemporânea, com o estudo da distribuição espacial da população urbana por cor ou raça, através de mapas temáticos objetivando a repartição de diferentes indicadores no território das cidades. Tomando a variável cor ou raça como central para construção dos indicadores de bens urbanos e serviços de consumo coletivos verificamos como a metrópole moderna recria a hierarquia racial, examinando a distribuição espacial dos indivíduos e a distribuição das residências para compreender como a estratificação social e racial dos indivíduos se vincula com os locais de moradias e as oportunidades sociais a que dão acesso (GARCIA, 2007). p. 29 Este outro artigo recupera os seus estudos anteriores acrescentando novos conhecimentos: Relações de Gênero, Raça, Classe e Desigualdades Sócioocupacionais em Salvador, e foi produzido para o Congresso Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, realizado em Florianópolis, de 23 a 26 de agosto de 2010. Este artigo tem como objetivo analisar as desigualdades raciais, espaciais e de gênero em Salvador com a variável ocupação, a partir da interseccionalidade de gênero, raça e espaço. Empiricamente analisamos as desigualdades sociorraciais urbanas e de gênero na histórica divisão racial do espaço brasileiro, através do Censo IBGE 2000 e divisão territorial por Área de Expansão Demográfica do mesmo instituto. É central, em nossa metodologia, entender os fatores condicionantes da situação social dos grupos étnicos e femininos que coexistem em Salvador, bem como as relações que mantêm entre si através da estratificação social inscrita no espaço urbano. Compreender as circunstâncias históricas particulares que as engendraram e fazem com que “não sejam duas realidades independentes, mas apenas dois ângulos pelos quais pode ser observada a configuração única e total das relações de classe e raça no Brasil” (PINTO, 1998, p. 87). Neste artigo entendemos classe como: “um conjunto de relações sociais que define uma posição objetiva na sociedade; aquelas relações e essas posições não são fixas e imutáveis, pois mudam com a transformação histórica da organização social da produção (PINTO, 1998, p. 90) (GARCIA, 2010). Neste último artigo publicado em revista, observamos que Antonia Garcia ampliava sua observação para outros espaços: Espaço, gênero e raça: os movimentos sociais e os desafios contemporâneos, publicado na Revista da ABPN, em 2020: p. 30 Neste artigo vamos refletir sobre as origens e histórias comuns da América Latina, Caribe e África considerando-se que o sistema colonial escravista moldou nossas sociedades e cidades, e o Brasil nesse contexto. A construção eurocêntrica das sociedades e cidades no chamado Novo Mundo, tem seu tripé no colonialismo-escravismo, patriarcalismo-racismo e no mercantilismo-capitalismo, que também produziu modelos explicativos que alimentam até hoje uma perversa engrenagem teórico-ideológica-política que favorece a reprodução de desigualdades e a perpetuação no po- Figura 3: Bloco das Zeferinas (Carnaval de 2020). Da esquerda para a direita: Eliana Santana, Joseane Cruz, Claudia Santos, Antonia Garcia, Bárbara Alves e Patricia. Fonte: acervo pessoal p. 31 Figura 4: Antonia Garcia, durante a Mudança do Garcia, na Folia Feminista, com cartaz reivindicando a Secretaria Estadual dos Direitos da Mulher. De pé, Carol. Sentada, Eulalia, do Neim. (s.d.) Fonte: acervo pessoal der dos grupos brancos hegemônicos. Enfrentar a metodologia da omissão na perspectiva da raça, gênero, classe e espaço nesses continentes é crucial para projetos de emancipação humana e superação do sistema de opressão universal (GARCIA, 2020). A vida é também uma festa Como uma boa militante, Antonia Garcia participava com entusiasmo das atividades festivas promovidas pelas entidades, pelo partido e pela universidade. Com apoio do NEIM, e reeditando uma antiga tradição do bairro operário descoberta por Cecília Sardenberg, promoveu com o CEM a saída do “Bloco do Bacalhau” (que as operárias da antiga fábrica faziam após o trabalho) por anos durante o Carnaval em Plataforma, o qual se tornou depois o “Bloco das Zeferinas”, em homenagem a Maria Zeferina Baldaia, chefe do Quilombo do Urubu, também naquela região. A vida de Antonia foi um grito contra a desigualdade. Ela usou todas as suas forças para lutar contra essas desigualdades de todas as maneiras e conseguiu sensibilizar mentes e corações de muitas e muitas pessoas. Este é o seu principal legado e assim será lembrada a nossa mulher de raça. Quanto à Universidade, passou a fazer trabalho remoto por força da pandemia de Covid-19. Em 2020 e 2021 era ela quem nos guiava nas análises de conjuntura nas reuniões mensais do NEIM, quem nos elucidava no planejamento de nossas ações, sobretudo em relação aos movimentos sociais em Salvador. De fato, perderam hoje, junto a nós, os movimentos de mulheres, o movimento negro, os movimentos de bairros de Salvador, o Partido dos Trabalhadores e a esquerda brasileira, como um todo, essa nossa batalhadora das mais atuantes, das mais dedicadas e das mais lúcidas, cuja ausência se fará sentir por todas e todos nós que a tínhamos como amiga, parceira e companheira – ainda mais neste momento quando temos pela frente grandes batalhas pela reconquista e reconstrução do nosso Brasil. Ficam aqui os nossos mais profundos sentimentos para com seus familiares, seu companheiro Agenor, seus filhos, os netos lindos dos quais ela tanto se orgulhava. p. 32 Antonia – a Tonha – continuará a ser uma voz sempre presente entre nós! Notas 1 Este texto foi construído usando como base “Antonia dos Santos Garcia, uma breve biografia”, escrito pela família e distribuído pelas redes sociais. Os trechos em itálico são citações escritas por ela, segundo o documento. Utilizamos também arquivos do NEIM, dentre outros. Referências CLAUDIA, A.; LÓPEZ, C.; GARCIA, A. Rompiendo las amarras: el movimento de mujeres em la periferia de Salvador. Cuadernos da África e América Latina, Madrid, n. 9, 1992. COSTA, A. A. A. (org.). Creche comunitária: uma alternativa popular. Salvador: NEIM/ UFBA; EGBA; SEC, 1991. GARCIA, A. dos S. Mulheres da cidade d’ Oxum: relações de gênero, raça e classe e organização espacial do movimento de bairro em Salvador. Salvador, BA: EDUFBA, 2006. GARCIA, A. dos S. desigualdades raciais e segregação urbana contemporâneas: Salvador, Cidade d’Oxum e Rio de Janeiro, Cidade de Ogum. In: XII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - XII ENANPUR, Belém, 2007. Anais ENANPUR, Belém, v. 12, n. 1, 2007. Disponível em: <http://anais.anpur.org.br/ index.php/anaisenanpur/article/view/1193>. Acesso em: 05 jul. 2022. ARQUIVO_ArtigoCongressoCienciasSociais.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2022. GARCIA, A. dos S. Contradições na cidade negra: Relações de gênero, raça, classe, desigualdades e territorialidade. Saberes em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 33-51, 2012. GARCIA, A. dos S. Espaço, gênero e raça: os movimentos sociais e os desafios contemporâneos. Revista da ABPN, v. 12, n. 34, p.32-53, 2020. Disponível em: <https://www. abpnrevista.org.br/index.php/site/article/ view/1131>. Acesso em: 05 jul. 2022. GARCIA, A. dos S. Desigualdades raciais e segregação urbana em antigas capitais: Salvador, cidade d’Oxum, Rio de Janeiro, cidade de Ogum. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009. GARCIA, A. dos S. Relações de Gênero, Raça, Classe e Desigualdades Sócioocupacionais em Salvador. In: Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Florianópolis, 2010. Anais… Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em: <http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1275930508_ p. 33 Entrevistas Arquiteturas e cidades no Atlântico Negro, raízes africanas e (re)invenções na diáspora Entrevista com Fábio Macêdo Velame Quem entrevista: Céline Veríssimo DAMG/UPT, PPGPPD, CAU e MALOCA / UNILA, ¡DALE! / UFBA João Soares Pena ¡DALE! / UFBA, UNEB Murad Jorge Mussi Vaz DEAAU / UTFPR, ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA Fábio Velame Fábio Macêdo Velame é um dos nomes mais expoentes no Brasil quando se trata de arquiteturas afro-brasileiras. Ele fez sua formação da graduação ao doutorado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde é professor desde 2008. Além de sua atuação como docente, ele está à frente da Superintendência de Meio Ambiente e Infraestrutura (SUMAI), órgão responsável por obras de manutenção e conservação do ambiente edificado da instituição. Desde a graduação Fábio Macêdo Velame tem trabalhado com questões etnico-raciais, centrando seus esforços na construção de uma trajetória preocupada com a valorização da herança africana e na cultura afrodiaspórica materializadas, por exemplo, nos terreiros de candomblé. Tendo enfrentado dificuldade para tratar de questões étnico-raciais em arquitetura em uma época em que isso não era, ainda, um grande debate, hoje ele é uma referência na academia, orientando pesquisas que têm contribuído para o avanço dos campos da arquitetura e do urbanismo. Nesta entrevista, Fábio Macêdo Velame nos conta sobre sua trajetória acadêmica e profissional, o porquê de ter escolhido se dedicar às questões étnico-raciais em arquitetura e urbanismo e revela quem são suas referências. Ele comenta sobre os projetos que tem desenvolvido na UFBA, as parcerias com universidades do continente africano e aponta caminhos para uma descolonização da arquitetura e do urbanismo. p. 39 Você é um dos poucos docentes negros da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e, pelas questões que vem abordando, tem dado uma contribuição fundamental ao campo. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional, sobre seu alinhamento teórico, sobre como e a partir de que perspectivas você fundamenta a sua atuação. Minhas trajetórias acadêmicas e profissionais se entrelaçaram, alimentadas pela minha militância negra no estado da Bahia. Formei-me em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2003, mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA com pesquisas sobre arquiteturas de terreiros de Candomblé e suas relações com a cidade. Construí uma carreira profissional, como arquiteto urbanista, voltada para apoio e ações em comunidades negras em Salvador e no estado da Bahia. Entre 2006 e 2008, integrei a equipe do convênio entre o Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Fundação Cultural Palmares (FCP) referente ao projeto de reconhecimento do patrimônio cultural material e imaterial afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares, de levantamentos históricos, antropológicos e arquitetônicos de templos religiosos de matrizes africanas na Bahia, com o objetivo de viabilizar seus processos de tombamento junto ao IPHAN. v.2 n.1 p. 36-57 2023 ISSN: 2965-4904 Entre 2007 e 2008, participei do projeto de Mapea1 mento dos Terreiros de Candomblé de Salvador, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAO) da UFBA, com o objetivo de viabilizar a regularização fundiária e criar um banco de dados para implementação de políticas públicas. Esse trabalho teve continuidade em 2009 na elaboração e planejamento dos Mapeamentos dos Terreiros de Candomblé do Recôncavo Baiano e Baixo Sul. Em 2010, realizamos o acompanhamento de projetos e obras de 53 templos religiosos de matrizes africanas de várias nações, através do convênio entre Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU), Superintendência de Construções Administrativas do Estado da Bahia (SUCAB) e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPROMI); a Cartografia Étnico-Social da Rede de Comunidades Quilombolas de Laje dos Negros do Sertão Baiano e a Cartografia Étnico-Social de Templos Religiosos de Matrizes Africanas da Bahia através da Secretaria de Combate a Pobreza e Desenvolvimento do Estado da Bahia ( SEDES), com objetivo de construir bancos de dados para projetos de habitação e equipamentos sociais de combate a pobreza no estado. Em 2011, realizamos o inventário arquitetônico dos terreiros de Candomblé do Recôncavo Baiano nos municípios de Cachoeira e de São Félix pela Fundação Pedro Calmon, com o objetivo de viabilizar a regularização fundiária, registros e tombamentos pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC). Entre 2012 e 2013, elaboramos as Cartografias Étnico-Sociais das comunidades quilombolas de Maragojipe e Cachoeira através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público Federal (MPF), a FCP e o IPHAN como contrapartida dos impactos do empreendimento do Polo Naval em São Roque do Paraguaçu, o qual teve como objetivo instruir os processos de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para titulação das terras, reconhecimento de patrimônios culturais afro-brasileiros e produção de material didático em atendimento à Lei n° 10.639/2003 - que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira -, o qual foi distribuído nas escolas municipais e estaduais de todo o Recôncavo Baiano. Atuamos ainda no desenvolvimento de projetos arquitetônicos para comunidades de terreiros e de quilombos no estado. Em 2008, ingressei como professor permanente da Faculdade de Arquitetura da UFBA (FAUFBA) e, a partir dessas experiências profissionais na militância negra, começamos a construir, a partir de projetos de extensão, Atividades Curriculares em Comunidades e Sociedade (ACCS), cursos, disciplinas e pesquisas no campo das ‘’relações étnico-raciais, estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos’’ na área de Arquitetura e Urbanismo no Brasil, uma ação conjunta e pioneira na UFBA frente ao cenário nacional. Em 2013, começamos de forma institucionalizada a militância negra dentro do currículo e do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA: realizamos o 1ª Curso de Arquitetura Afro-brasileira abordando as arquiteturas dos quilombos, p. 41 terreiros de candomblé, blocos afro, afoxés, maracatus e congadas; realizamos uma sequência de ACCS com o título ‘’Arquiteturas do Quilombo Salamina Putumuju’’; criamos e institucionalizamos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), em 2014, o grupo de pesquisa EtniCidades: grupo de estudos étnico-raciais em arquitetura e urbanismo, sediado na FAUFBA. O objetivo do EtniCidades consiste no desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão voltados para as arquiteturas afro-brasileiras; cidades africanas: arquiteturas e urbanismo em África; diáspora africana no Atlântico negro: cidades e arquiteturas afrodiaspóricas nas Américas; relações étnico-raciais e arquitetura, urbanismo e cidade; e racismo e cidade: segregação étnico-racial, violência institucional e resistências urbanas. A partir da criação do grupo EtniCidades, criamos a primeira disciplina optativa oficial no currículo de um curso de Arquitetura e Urbanismo no Brasil voltada para as questões étnico-raciais: Arquiteturas Afro-brasileiras: discursos, representações e projetos. Como professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFBA), a partir de 2016 criei as disciplinas Relações Étnico-Raciais em Arquitetura, Urbanismo e Cidade; Cidades Africanas: Arquitetura e Urbanismo Contemporâneo em África; e Diáspora Negra e Cidade: Arquiteturas Afrodiaspóricas entre Áfricas e Américas. Trouxemos em 2020 o professor Henrique Cunha como professor visitante e criamos as disciplinas ‘’Bairros Negros: a forma social negra no Brasil’’ e ‘’Urbanismo Africano: 6000 anos dos povos africanos construindo cidades’’. A partir de 2015, anualmente, realizamos o Seminário Salvador e Suas Cores, que já em sua 8ª edição e vem problematizando a produção da cidade, arquitetura e urbanismo no Brasil a partir do negro, suas relações com a diáspora negra no mundo atlântico e, principalmente, com o continente africano, com a vinda e participação de professores de diversas áreas que problematizam as cidades em África, e arquitetos e urbanistas africanos, vieram professores e pesquisadores de Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Nigéria, e Benin. Assim, organizamos e participamos de eventos de Arquitetura e Urbanismo na África como o Fórum Internacional e Arquitectura de Angola, junto ao Centro de Estudos e Investigação Científica de Arquitectura (CEICA), da Universidade Lusíada de Angola (ULA), a convite da Arquiteta e Urbanista Ângela Mingas. p. 42 Recentemente, entre 2019 e 2021 realizamos seminários abordando, ainda, arquiteturas indígenas, acampamentos ciganos, capoeira e cidade, branquitude e cidade, e mulheres negras e cidades afrodiaspóricas. Estabelecemos também convênios para o desenvolvimento de projetos e obras de restauro em terreiros de candomblé tombados como patrimônio cultural pelo IPHAN e junto à SEPROMI para a promoção da igualdade étnico-racial, combate ao racismo e de defesa dos direitos dos povos tradicionais. Em 2020 realizamos uma missão à África pelo programa CAPES PRINT da UFBA junto com universidades públicas da Nigéria com pesquisa sobre arquitetura e cidades históricas desse país, tais como Oyo, Ilê Ifé, Ibadan, Oxobô e Ejibo. Nessa missão organizamos a 1ª Conferência Brasil-África e África-Brasil: compartilhando entendimentos sobre a diáspora negra no Novo Mundo, em Lagos, Nigéria, junto ao Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Lagos (LASUCAS). Ainda fruto dessa missão construímos convênios de cooperação acadêmica, científica e cultural com a Universidade de Ajayi Crowther, em Oyo, Universidade de Lagos Akoka, Universidade Estadual de Lagos e Palácio Real do Afin de Oyo, que tem como objetivos: colaboração e apoio técnico, acadêmico e científico para pesquisa do patrimônio cultural da cidade de Oy, no que tange ao conjunto do seu patrimônio material e imaterial, visando à instrumentalização dos processos de tombamento nacional da cidade de Oyo para o Ministério da Informação e da Cultura da Nigéria e como Patrimônio da Humanidade para a UNESCO; intercâmbio de estudantes de cursos de graduação e de pós-graduação; colaboração entre professores e pesquisadores no que concerne ao desenvolvimento de projetos de extensão e de pesquisa; promoção de eventos científicos; orientação e coorientação de dissertações de dissertações de mestrado e teses de doutorado; participação em bancas examinadoras; e permuta de material bibliográfico. Atualmente, coordeno a área de arquitetura e urbanismo da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), atuo como pesquisador do CEAO/UFBA, sou, membro da Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABEA) e integro o grupo de pesquisa Patrimônio e Identidades: pesquisa multidisciplinar em relações étnico-raciais e estudos africanos do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (POSAFRO) da UFBA. Como líder, no grupo EtniCidades desenvolvemos pesquisas com orientação de iniciação cientifica e orientações de especializações, mestrados e doutorados com recortes nas relações étnico-raciais, estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos, além de ações extensionistas que articulam as comunidades negras com órgãos públicos, como os tombamentos e registros de terreiros, festividades e territórios negros no IPHAN, IPAC e Fundação Gregório de Matos (FGM), projetos de reformas de terreiros de candomblé, projetos de habitações em comunidades quilombolas, institucionalização de territórios negros, como o Parque em Rede Pedra de Xangô (SILVA, 2019). Meu caminho, Odú, ocorreu a partir da minha militância negra, que condicionou a minha carreira profissional e traçou a minha trajetória acadêmica. p. 43 Esses trabalhos foram e vêm sendo desenvolvidos buscando rupturas, ampliações e diálogos epistemológicos afrocentrados, afrorreferenciados e afrodiaspóricos a partir das teorias do Pan-Africanismo (William Du Bois, Booker T. Washington, Marcus Garvey, Kwame Nkrumah, Frantz Fanon), do Movimento da Negritude (Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Léon-Gotran Damas, René Maran, Birago Diop), do Afrofuturismo (Jean-Michel Basquiat, Janelle Monáe, Lu Ain-Zaila, Fábio Kabral, Octavia E. Butler), do Afrocentrismo (Malefi Kete Asante, Ama Mazana, Reiland Rabaka, Mark Christian, Elisa Larkin Nascimento), da Filosofia Africana Contemporânea (Cheik Anta Diop, Abel Kouvouama, Achille Mbembe, Amadou Hampaté Bá, Banza Mulundwe, Bibi Bakare-YuSuf, Dedier Malherbe, Emanuel Chukwudi Eze, Gerson Machedo, Odera Oruka, Jean-Godefroy Bidima, Joseph Omeregbe, Kwane Gyeke, Kwane Wiredu, Marie Paulino Eboh, Marimba Ani, Mogobe Ramose, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, Reiland Rabaka), e dos Afro-Brasileiros que se debruçaram sobre o racismo, a diáspora negra e a produção sócio-cultural do povo negro no Brasil (Manoel Querino, Edson Carneiro, Abdias do Nascimento, Clovis Moura, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Mestre Didi, Julio Braga, Adrelino Campos, ANTONIA Garcia, Vilson Caetano). Mas, além dessas vertentes teóricas e pensamentos afrorreferenciados, nos debruçamos nas bibliotecas de carne, alma e coração da população negra presente nos quilombos, terreiros de candomblé, maracatus, blocos afro, afoxés, samba de roda, rodas de capoeira, congadas, marujadas, reisados e folguedos a partir de suas cosmo-percepções, éticas, valores e estéticas. A discussão sobre as implicações das dinâmicas raciais e do racismo na produção da cidade é recente no campo da arquitetura e do urbanismo. Você fez sua graduação em arquitetura e urbanismo entre fins dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Seu trabalho de conclusão de curso foi “Liberdade: a Salvador negra”. Como era a discussão sobre raça na Faculdade de Arquitetura da UFBA e em outras escolas do Brasil nesse período? p. 44 Naquela época as discussões étnico-raciais tanto na FAUFBA como em outras escolas de arquitetura do Brasil eram inexistentes. Inclusive, foi uma grande dificuldade conseguir um professor que orientasse esse trabalho. Depois de muitas tentativas e conversas com vários professores, tive como orientadora a professora Naia Alban, cuja sensibilidade e visão da diversidade cultural baiana colaborou de forma fundamental para o desenvolvimento do trabalho. Essa inexistência era evidente não só nos currículos dos cursos, eventos, pesquisas e projetos de extensão em andamento, mas também nas programações dos Encontros Nacionais de Estudantes de Arquitetura (ENEAs) da época. Isso decorreu da baixa representatividade e presença de estudantes e professores negros nas escolas de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Falamos de uma época antes das cotas raciais de acesso às universidades públicas no Brasil e da implementação das ações afirmativas em escala ampliada na sociedade brasileira. Quando adentrei a universidade, entravam cerca de 120 alunos por ano. Em minha turma eram dois negros: eu e mais um. As universidades eram o lugar da elite brasileira. Cerca de 15 anos após as cotas raciais, temos uma diversidade social e étnico-racial grande, com alunos quilombolas, indígenas, ciganos, imigrantes, LGBTQI+, negros e negras nas universidades. Com a ampliação das ações afirmativas de cotas raciais para o ingresso na pós-graduação e em seguida para professores e técnicos administrativos, a cara e a natureza da universidade pública brasileira mudou substancialmente, enriquecendo-a com diversidade e produzindo transformações estruturais nos cursos, em disciplinas, currículos, pesquisas e extensões através de uma demanda e pressão que vêm de estudantes, técnicos e professores negros. No texto “Que tal raça!”, Aníbal Quijano (2000), define a raça como o instrumento de dominação mais eficaz inventado nos últimos 500 anos. Neste sentido, o giro decolonial compreende raça como um instrumento de dominação que é forjado com a invasão das Américas, centrando-se, sobretudo, nos povos originários latino americanos, mas que dialoga pouco com a diáspora africana. De alguma forma a teoria decolonial atravessa seu trabalho? Quais são as possibilidades de interação e contribuição entre os estudos afrobrasileiros e o giro decolonial? A teoria decolonial atravessa o meu trabalho a partir dos pensadores afrodiaspóricos dos anos de 1950, 1960 e 1970, com obras e autores negros importantes que problematizaram, anteriormente e pioneiramente, a relação entre colonialidade, racismo e capitalismo como ‘’Discurso sobre o Colonialismo’’ de Aimé Césaire ([1955] 2020), da Martinica; “A África deve unir-se”, ‘’A Luta de Classes em África’’, “Conscientismo: Filosofia e Ideologia para a Descolonização’ e ‘’Neocolonialismo: o último estágio do Imperialismo’’, de Kwame Nkrumah (1977a; 1977b; 1964; 1967), de Gana; e ‘’Peles Negras, Máscaras Brancas’’ e ‘’Os Condenados da Terra’’ de Franz Fanon (1968; 2008), de Martinica e Argélia. Esses são pensadores e obras que desvelaram o projeto da modernidade, calcada no colonialismo e no racismo a partir da violência, da desumanização, da objetificação e da subalternização das populações negras na África e na diáspora negra no Atlântico, bem como suas implicações econômicas, culturais, sociais e psicológicas no espaço do mundo colonial. p. 45 Ao se debruçar sobre a produção do conhecimento arquitetônico e urbanístico, como você considera que o conceito de raça tem sido mobilizado? Quais são os desafios para o enfrentamento da hegemonia moderno-colonial na arquitetura e no urbanismo brasileiros? O conceito de raça começou a ser problematizado na arquitetura e urbanismo muito recentemente. Somente na última década ela tomou um vulto e importância pelo acesso de alunos e professores negros às universidades, pela implementação de políticas públicas voltadas para os povos e comunidades tradicionais, que demandaram a atuação de arquitetos e urbanistas em projetos de habitação, equipamentos sociais de educação e saúde e em saneamento básico, assim como a realização de eventos, extensões e o surgimento, em escala e quantidade, de pesquisas nas relações étnico-raciais no Brasil tanto em arquitetura, urbanismo, planejamento urbano, patrimônio e cidade. A FAUFBA e o PPGAU/UFBA tornaram-se o epicentro desse processo no país com grupos de pesquisa e extensão que já labutam nesse campo há quase uma década. Os maiores desafios na problematização do conceito de raça na arquitetura e urbanismo no Brasil são de três ordens. A primeira consiste na falta de uma conscientização e letramento racial na formação escolar de alunos no ensino básico, fundamental, médio e universitário no Brasil. A educação tem vindo a criar grandes lacunas na formação cidadã e precisa se posicionar na compreensão social do problema estruturante do racismo na sociedade brasileira. A segunda é a pouca problematização do racismo em suas diversas escalas e facetas: racismo estrutural, institucional, ambiental, religioso, simbólico, lingüístico, algorítmico e recreativo tanto nos currículos do curso como nas disciplinas optativas e obrigatórias de história e teoria da arquitetura, urbanismo e cidade, de disciplinas de projetos arquitetônicos, de desenho urbano, de planejamento urbano, de tecnologias e expressões gráficas. A terceira é que, somente a presença no currículo não é suficiente. Torna-se necessário extensões, ampliações, diálogos e rupturas epistemológicas afrocentradas, afrorreferenciadas e afrodiaspóricas a partir das cosmo-percepções, éticas, valores e estéticas dos grupos étnico-raciais que compõem a diversidade multicultural do país e que produzem as cidades e arquiteturas, numa reflexão sobre como o racismo produz cidade e, num movimento inverso, como a cidade reproduz o racismo. p. 46 As disciplinas de teoria e história da arquitetura e do urbanismo costumam ter uma bibliografia bastante centrada nos cânones europeus que pouco dialogam com a realidade das periferias urbanas brasileiras. Por outro lado, a literatura sobre cidades na África, pouco explorada nas escolas brasileiras, pode nos ajudar a compreender nossos processos urbanos tanto pela dimensão do espaço construído quanto pelos usos cotidianos. Como você avalia essa ausência na formação dos arquitetos e urbanistas brasileiros? Nossa formação acadêmica em arquitetura e urbanismo até há pouco tempo era completamente centrada numa perspectiva eurocêntrica, reproduzindo uma lógica colonial, como se só a Europa e, posteriormente, os Estados Unidos da América, constituíssem civilizações e o centro do mundo. Demos continuidade à tradição hegeliana de que povos que não possuem consciência de si são desprovidos de razão e, portanto, não possuem história e, por conseguinte, não constituem civilizações. Estudamos, no Brasil, como se só houvesse arquitetura e cidade nos países centrais do capitalismo, sem nos debruçarmos sobre as arquiteturas e cidades pré-colombianas, africanas, asiáticas e da Oceania. Estas regiões do globo possuíram povos que constituíram reinos, impérios e civilizações seculares e até milenares que foram lançados ao esquecimento pela hegemonia européia. São povos e civilizações que produziram epistemologias próprias e ciências nos mais diversos campos, como matemática, química, física, astronomia, medicina, construção, literatura, artes, dentre outros. O projeto moderno eurocêntrico fez tabula rasa da diversidade humana em todas as escolas, materializando seu projeto de hegemonia e ideário de humanidade. Nos bancos das escolas de arquitetura e urbanismo no Brasil - um país que recebeu a metade dos africanos escravizados na diáspora durante quatro séculos, que foi o último país do mundo a abolir a escravidão e tem metade de sua população declarada afrodescendente -, ainda não se estuda o Antigo Egito, os impérios da Núbia e de Axon, os grandes reinos da África Subssariana e do Saara, como o Mali, Ghana, Bérbere, Almoravida, Songhay, nem os reinos bantus da África Central, como o grande Reino do Congo, Luango, Kagongo, Matamba, Ovibundu, ou os importantes impérios da África Ocidental, como os Fanthi-Ashanti, o Dahomé, o Haussá e o poderoso império de Oyó, tampouco os reinos da África Oriental e Austral, tais como os importantes impérios Swahile e Zulu. Isso reflete por si só um processo violento de dominação e opressão colonial. Estudávamos, até pouco tempo atrás, os templos religiosos da antiguidade à contemporaneidade, em cada período histórico do ocidente. Desde o Partenon, na Grécia, à Basílica de São Pedro, em Roma, Notre Dame, em Paris, na França, até a Capela de Ronchamp, de Le Corbusier. Mas não tínhamos uma aula ou visita sequer sobre terreiros de candomblé numa cidade como Salvador que, aliás, tem a alcunha de Roma Negra, por ser a cidade mais negra fora da África, e que conta com 1400 p. 47 terreiros no seu espaço urbano. Terreiros, inclusive, reconhecidos como patrimônios nacionais pelo IPHAN desde 1984, quando se deu o Tombamento do Terreiro Casa Branca, mas que até recentemente não adentravam as salas de aula da faculdade. O estudo das arquiteturas e cidades africanas é fundamental para o entendimento das cidades brasileiras, sobretudo dos seus bairros negros e populares que constituem a maior parcela dos espaços das cidades brasileiras. A maioria dos bairros negros das cidades, malmente chamados de favelas, ocupações, invasões, assentamentos subnormais (eufemismos de linguagem do racismo à brasileira), foram oriundos, em boa parte, de três elementos geradores: quilombos; habitações de escravos de ganho, de aluguel e libertos; e terreiros de candomblé. Eram arquiteturas afrodiaspóricas que continham cosmo-percepções, éticas, valores e estéticas que ora permaneceram, ora foram ressignificadas, ora recriadas nos bairros negros contemporâneos das cidades brasileiras. É importante entender aqui também os bairros étnicos africanos, tais como as Tabankas na Guiné e na Guiné-Bissau; os Compunds ou Egbés no Togo, no Benim e na Nigéria; as casas Musgum nos Camarões; e os Musseques em Angola para identificarmos aquilo que têm de comum e de diferente com os bairros negros no Brasil. Desse modo, compreender as continuidades, permanências, atualizações, perdas, rupturas e reelaborações nos dois lados do Atlântico Negro. Na continuidade da questão anterior, a reflexão sobre arquitetura e urbanismo no Brasil tem se constituído sobre uma série de lacunas teóricas, metodológicas e epistemológicas em relação a um conhecimento situado. Quais são os aspectos que você considera centrais para repensar os currículos de nossas escolas nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão? p. 48 O primeiro ponto é um retorno: um encontro com a sociedade, com os anseios, demandas e necessidades sociais, culturais e cidadãs, reconhecendo a diversidade da sociedade brasileira. Nesse sentido, a extensão joga um papel central, deslocando a pesquisa e o ensino para outra esfera. Uma mudança profunda e radical nos currículos não se dará apenas com a introdução desses conteúdos (raça, etnia, gênero, sexualidade, etc...) nas disciplinas obrigatórias ou com a criação de optativas, mas com rupturas e alargamentos epistemológicos. Para tal, a extensão precisa ser a espinha dorsal dos cursos de arquitetura e urbanismo no Brasil. Essa mudança só será possível quando tivermos um ensino extensionista. Quando os alunos se defrontarem sistematicamente com a realidade social, com encontros paulatinos com a diversidade, com os problemas reais da sociedade e desenvolverem estudos, análises, propostas, projetos e planos em meio a conflitos, tensionamentos e disputas é que poderão sair do atual abstracionismo. Uma vez envoltos num emaranhado de complexidades sistêmicas atravessadas pelas questões de classe, raça, gênero, sexualidade, religiosidade, idade, pessoas com deficiência, dentre outros marcadores sociais, os alunos poderão ter uma formação mais ampla, com teorias, conceitos, metodologias e epistemologias que, sendo mobilizadas, construídas e tensionadas no fazer cidade, formarão arquitetos e arquitetas e urbanistas com uma real formação cidadã. 2 Considerando que, segundo o CAU, as mulheres representam 61% dos profissionais em arquitetura e urbanismo no Brasil, por que os projetos mais conhecidos são de autoria de homens brancos? Como você vê os impactos desse quadro na arquitetura e nas cidades brasileiras? Como enfrentar essa disparidade de gênero e raça? Isso decorre da nossa realidade colonial, na qual o patriarcado e o racismo constituem duas engrenagens fundamentais e centrais de perpetuação dos privilégios da branquitude. Isto está impregnado na estrutura da sociedade brasileira, na qual a colonialidade e a branquitude ocupam os espaços de poder, direção e os principais postos de comando nos setores público e privado. Essa realidade colonial, racial e patriarcal impacta no pensar e na produção de cidades hierarquizadas, segregadas, pseudofuncionais, serviçais, onde a reprodução do capital, através do mercado imobiliário e da mais valia do solo urbano, reproduz desigualdades espaciais racializadas nas cidades brasileiras. O enfrentamento dessa realidade requer o aprofundamento das políticas de ações afirmativas visando a equidade de gênero nos setores públicos e privados. Graças à organização de estudantes negros e negras em coletivos estudantis nas escolas de arquitetura do país essas questões são constantemente pautadas em suas respectivas unidades. A implementação dessas políticas nos órgãos e instituições de classe, como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), tem sido pautada pela organização profissional dos arquitetos negros e negras em coletivos, como ocorreu, por exemplo, no projeto Arquitetas Negras, criado por Gabriela de Matos. Portanto, o caminho, Odú, é mobilização, organização, divulgação e ação política na luta pela implementação da pauta racial e de gênero em todas as esferas do campo da arquitetura e urbanismo. A produção do conhecimento que mais circula, sobre cidades e urbanização africana, é conduzida por agendas centradas no Norte Global, não necessariamente abrindo espaço para um reconhecimento plural das especificidades do continente africano. Como você avalia a produção do conhecimento africano ou sobre África e suas possibilidades de trocas com América Latina e, especificamente, com o Brasil? p. 49 O Brasil fará em 2022 cerca de duzentos anos de independência, no meio a uma conjuntura e momento histórico de plena retomada do projeto colonial, estamental e escravocrata do passado. O que dizer dos países do continente africano, que têm em média cinquenta anos de independência, seguida de inúmeros golpes e guerras civis, incentivados pelos países centrais como forma de manterem sob suas égides a relação de colonialidade, exploração e dominação? Existe um movimento na África contemporânea chamada ‘’Renascença Africana’’ ou ‘’Levante da África’’, oriunda de uma estabilidade política, institucional e econômica das duas últimas décadas. Mas, na realidade, constitui uma “Nova Partilha da África’’ em zonas de influências de estados e empresas à luz da globalização, do neoliberalismo e do neocolonialismo, proveniente de um novo ciclo de acumulação do capitalismo norte-americano, europeu, indiano, coreano e chinês. Assim, mantém, aprofunda e ressignifica antigas espoliações no continente no que tange aos recursos minerais (carvão, madeira, água, gás, petróleo, ouro, diamante, metais, etc...), associado à exploração de novos mercados como o agronegócio e à indústria do turismo de massa na África Oriental; mercado de tecnologia da informação (TIC) na África Ocidental e Central; e o mercado imobiliário em várias regiões do continente. p. 50 Na última década, vimos o surgimento de projetos e construções das megacidades africanas, inseridas na lógica da competitividade global decorrente do neocolonialismo e da Nova Partilha da África, como por exemplo a nova capital administrativa do Egito; La Cité Du Fleuve na República Democrática do Congo; The Eko Atlantic City na Nigéria; The Appolonia City e The Hope City em Gana;The Kigamboni City e The Safari City na Tanzânia;The Konza Technology City e The Tatu City no Quênia;The Ebene Cyber City nas Ilhas Maurício; e The Modderfontein New City na África do Sul. A maioria desses projetos são desenvolvidos por escritórios de arquitetura e urbanismo americanos, europeus ou asiáticos e quando há presença de africanos, estes tiveram sua formação nos países centrais, reproduzindo a lógica de dominação eurocêntrica. Entretanto, há um movimento político de arquitetos e escolas de arquiteturas e urbanismo no Senegal, Gana (ArchiAfrika) e Angola (CEICA), liderado pela arquiteta angolana Ângela Mingas, que coordena o Fórum Internacional de Arquitectura na África. Essa rede de escolas de arquitetura e profissionais em África está levantando críticas a essas megacidades, assim como à lógica neocolonial apoiada pela perspectiva neoliberal de produção de cidades. Em alternativa, buscam processos, metodologias, epistemologias e projetos participativos nos bairros étnicos das cidades, com as populações chamadas de assimiladas e, notadamente, os chamados ‘’indígenas’’, que constituem sobremaneira a maioria dos bairros étnicos das metrópoles e cidades de médio porte do continente africano, que migraram do campo para a cidade durante o período colonial, durante as guerras de independência ou guerras civis. As trocas no campo da Arquitetura e Urbanismo entre África e Brasil começaram a se intensificar nos últimos anos, sobretudo através do Seminário Salvador Suas Cores, organizado pelo grupo EtniCidades, da FAUFBA. Essa relação vem se estreitando com a vinda de arquitetos e urbanistas africanos, assim como pesquisadores das cidades africanas das áreas de antropologia, sociologia, história e geografia de Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Nigéria e Benin para participação anual nesse Seminário; com a realização de convênios de cooperação técnica e acadêmica entre o EtniCidades/FAUFBA e universidades nigerianas: a Universidades de Lagos, em Akoká, a Universidade Estadual de Lagos e a Universidade de Oyó; com a realização de missões acadêmicas do EtniCidades à África. Também destaco a montagem da rede de pesquisas sobre o patrimônio afrodiaspórico entre o EtniCidades/FAUFBA, CEAO/UFBA, Instituto do Mundo Africano (IMAF), da École des hautes études en sciences sociales (EHESS Paris I), e Universidade Abomey-Cavali, do Benin. Você tem realizado um trabalho fundamental sobre arquitetura de terreiros, sobre comunidades quilombolas e sobre arquitetura africana na diáspora. Esses espaços se caracterizam pela construção anônima, ou seja, não partem de um projeto assinado por um arquiteto, pois costumam ser auto-construídos pela própria comunidade. A falta dessa assinatura faz com que muitas pessoas não vejam essas edificações como arquitetura. Você enfrentou alguma resistência na academia quando resolveu estudar a arquitetura de terreiros de candomblé? Quais foram ou são ainda seus maiores desafios? O projeto político e acadêmico que tracei foi a construção de uma narrativa que põe em evidência, em seu devido lugar de importância, as arquiteturas afro-brasileiras. Eu defino as arquiteturas afro-brasileiras como sendo aquelas edificadas pelos negros no Brasil, pelos africanos e seus descendentes, através de processos diaspóricos impostos pela escravidão como forma de sobrevivência social, cultural e política, constituindo lugares de resistência, existência, ressignificação e criação da cultura negra no Brasil. Foram compostas em suas espacialidades por temporalidades, cosmovisões, cosmo-percepções, princípios, processos, valores e estéticas afrocentradas, afrorreferenciadas e afrodiaspóricas. As arquiteturas afro-brasileiras são compostas pelos territórios negros da fuga, resistência, existência e outras formas de vida, maioritariamente constituídas por: quilombos, terreiros de candomblé, templos religiosos p. 51 de matrizes africanas, blocos afro, afoxés, maracatus, congadas, reisados, folguedos, casas de samba de roda, casas de maculelê, escolas de capoeira, escolas de samba, centro de funk, hip-hop, entre outros. Esse projeto político e acadêmico consiste em colocar negros e negras numa posição de centralidade na produção das arquiteturas, territórios e cidades brasileiras, abordagem ainda lacunar e incipiente na arquitetura e urbanismo no Brasil. Combater as diversas modalidades de racismo que constituem e atravessam a sociedade brasileira: o racismo estrutural, institucional, ambiental, simbólico e religioso que funcionam pela mecânica do “racismo à brasileira”, caracterizado pela dissimulação que opera no corpo social através das engrenagens maquínicas do eufemismo da linguagem, do mito da democracia racial, da ideologia do branqueamento, da lógica do colorismo e do amalgamento em outros marcadores sociais (classe, gênero, sexualidade, religiosidade, regionalidade, idade, etc.). Esse projeto coletivo no âmbito do EtniCidades/ FAUFBA teve seus diversos aquilombamentos. p. 52 Quando fui realizar a minha seleção de mestrado, por exemplo, com um projeto para estudar a arquitetura de terreiros e suas relações com a cidade, alguns membros da banca me perguntaram por que iria estudar aquela arquitetura, uma vez que não tinha valor algum e na concepção deles ‘’eram um monte de casinhas espalhadas sem valor arquitetônico’’, ‘’construções precárias’’, ‘’não viam a relevância do tema e dessas arquiteturas’’. Rebati de forma contundente e incisiva e graças à fala, análise e ponderação da professora Odete Dourado, que estava na banca de seleção, freqüentadora do Ilê Axé Opô Afonjá, houve um ‘’esclarecimento’’ da importância dessas arquiteturas para os demais membros da banca. Destaco ainda a importância da professora Odete Dourado no cenário nacional no campo da teoria e crítica do restauro e, notadamente, nas reflexões e trabalhos sobre os processos de patrimonialização dos terreiros de Candomblé e seus impactos na área do patrimônio. Logo após esse processo seletivo, ela se tornou a minha orientadora de mestrado e doutorado, a qual eu devo a minha formação acadêmica, dando-me régua e compasso. Nesse sentido, o trabalho realizado serviu para compor todo o processo do tombamento desse terreiro (Omo Ilê Agboulá de Culto aos Egum) no IPHAN durante os 10 anos em que o processo foi instruído, fornecendo plantas, mapas, entrevistas e fotografias e culminou na viabilização do tombamento, transformando o terreiro em Patrimônio Cultural do Brasil. Posteriormente a pesquisa foi publicada em livro (VELAME, 2019). Em 2020 a FAUFBA firmou um termo de cooperação técnica junto ao IPHAN para o restauro do Omo Ilê Agboulá, do Roça do Ventura e do Alaketu. A restauração do Omo Ilê Agboulá foi realizada dando dignidade e cidadania ao povo de santo da Bahia. Quando surgiu o questionamento sobre a não natureza arquitetônica do terreiro de candomblé no processo seletivo de mestrado, o que estava por trás da pergunta era a concepção clássica de boa parte das escolas de arquitetura do país, herdeira da Missão Francesa trazida por Dom João VI, de que o que difere a arquitetura da mera construção é sua dimensão artística, sua condição como obra de arte, ou seja, um princípio estético. O que rege esse princípio estético é um cabedal de concepções eurocêntricas que vão do figurativo ao abstrato, de caráter eminentemente visual, plástico e perceptível. O que está no fundo da questão é o conceito de belo, no campo da estética, no universo dos valores e da percepção, do que pode ser considerado obra de arte ou não e, consequentemente, o que pode ser considerado ou não arquitetura, sempre numa perspectiva eurocentrada. O que está em disputa é o conceito e a narrativa sobre o belo, a estética e a própria arquitetura. Os terreiros de candomblé trouxeram esse debate entre patrimônio material e imaterial e, sobretudo, o tensionamento entre o que é ou não arquitetura, porque os conceitos de belo, estética e, por conseguinte, arquitetura do povo de santo são de outra natureza, regidos pelas cosmo-percepções, processos, éticas, valores e estéticas próprias dessas comunidades. Nelas, o axé e seu sistema dinâmico de alimentação, conservação, potencialização e distribuição são o que atribui valor, beleza e edifica arquiteturas. No contexto nacional, como você avalia as pesquisas centradas na temática dos territórios afrodiaspóricos? Podemos falar da produção de um conhecimento que começa a desenvolver seus próprios parâmetros a partir do acúmulo já produzido, ou se tratam ainda de iniciativas isoladas? Esses estudos começam com os primeiros africanos que aqui chegaram na condição de pessoas escravizadas pelo tráfico negreiro criminoso. Houve resistência e, principalmente, a transmissão de conhecimentos ao longo de gerações dessas pessoas no âmbito desses territórios negros. As pesquisas sobre territórios afrodiaspóricos já vêm de longa data, desde Nina Rodrigues, no final do século XIX, aos chamados “Estudos Afro-Brasileiros’’, também no campo da antropologia, da sociologia, da história, da literatura, da música e das artes plásticas que já possuem um acúmulo de pesquisas que se iniciaram no século XIX, atravessaram o XX e chegam ao século XXI com várias vertentes e correntes teóricas. Esses estudos são centrados nos quilombos, terreiros de candomblés, mocambos, clubes negros, presença negra nas cidades, agremiações carnavalescas negras, capoeira, samba, catolicismo de preto, congadas, dentre outros. p. 53 Mas o espaço, o território, a arquitetura e a cidade sempre foram colocados, nesses campos disciplinares, como pano de fundo, de apoio, de cenário dos processos sociais estudados. Foram as disciplinas espaciais da geografia, arquitetura e urbanismo que colocaram a arquitetura, a cidade e o território, a partir dos anos de 1980, em uma posição de protagonismo. Essa importância revelou-se em uma relação umbilical com as dinâmicas sociais e históricas, nas quais as relações étnico-raciais na sociedade e territórios afrodiaspóricos se retroalimentam. Esses estudos pioneiros oriundos da geografia, arquitetura e urbanismo constituem trabalhos pontuais, isolados e militantes na luta por direitos dos povos dos territórios afrodiaspóricos e de embate no âmbito acadêmico. Mas foi a partir da implantação das cotas na graduação há 15 anos, com a entrada sistemática e em quantidade de professores negros e negras nas universidades, com o ingresso na pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado) e da primeira geração de egressos das cotas, que o campo das disciplinas espaciais da geografia, arquitetura e urbanismo ganharam musculatura, com o desenvolvimento de pesquisas, extensões e eventos que tratam das relações étnico-raciais, estudos africanos e afro-brasileiros nos territórios afrodiaspóricos. p. 54 Vêm surgindo coletivos de estudantes negros de graduação, grupos de pesquisas que tratam das questões étnico-raciais, coletivos de pesquisadores negros, redes de pesquisa e colaboração, publicações de livros, coletâneas. Nas associações e entidades de classes profissionais a pauta étnico-racial vem ganhando espaço com políticas institucionais. Como exemplo disto, só no EtniCidades/FAUFBA já foram realizados seminários sobre arquiteturas indígenas, presença ciganas nas cidades, mulheres negras e cidades afrodiaspóricas, branquitude e cidade, dois seminários internacionais com países africanos, o Fórum Internacional e Arquitectura de Angola junto a CEICA/ULA em Angola, o Simpósio Brasil-África e África-Brasil junto ao LASUCAS, da Universidade do Estado de Lagos, na Nigéria, além do nosso evento principal: o Seminário Salvador suas Cores que irá completar este ano a sua oitava edição. Tendo se iniciado em 2015, o Salvador e Suas Cores desenvolveu os seguintes temas: Espaço Urbano e Segregação Étnico Racial (2015); Turismo Étnico e Imagens Urbanas (2016); Arquiteturas Afro-brasileiras - Um Campo em Construção (2017); Cidades da Diáspora Negra: Laços África-Brasil (2018); Racismo, Diáspora e Cidade em África e Brasil (2019); Ensino, Pesquisa, Extensão das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil e África (2020); Por Uma Agenda Antirracista para as Cidades Brasileiras, Africanas e da Diáspora Negra nas Américas (2021). A FAUFBA e o seu programa de pós-graduação, o PPGAU/UFBA, com o conjunto de suas disciplinas, extensões, seus professores e grupos de pesquisa: EtniCidades coordenado por Fábio Macêdo Velame; Lugar Comum, coordenado por Ana Fernandes juntamente com Glória Cecília Figueiredo e Gabriela Leandro Pereira; ArqPop, coordenado por Márcia Sant´Anna; e Margear, coordenado por Tais Rosa, constituem o epicentro desse processo no país. Outras iniciativas importantes estão surgindo com grande potência na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), através do Grupo de Estudos Maloca, coordenado por Andréia Moassab; o LabRaça, na USP, coordenado por Ana Cláudia Barone; o IAU-USP, com Joana D´Arc; a UNB com Carlos Henrique; a UNIME, com Maria Estela Ramos Penha, dentre outros no país. Mas, há ainda muito o que avançar e construir, recuperando décadas de atraso nos estudos das relações étnico-raciais, estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos no Brasil no campo da arquitetura e urbanismo e, principalmente, empreendendo um movimento político de formação de arquitetos e urbanistas antirracistas. É possível decolonizar a arquitetura e o urbanismo? Neste sentido, quais são os desafios que estão colocados para arquitetas, arquitetos e urbanistas? Sim, é possível descolonizar a arquitetura e o urbanismo, mas não será uma tarefa fácil, nem rápida. Será um processo longo, demorado, feito passo a passo, com muitos embates, conflitos, tensionamentos e muitas frentes, mas necessário para a construção de uma universidade plural, para formar arquitetos e urbanistas antirracistas, para o combate ao racismo em todas as suas dimensões, para a construção de uma sociedade com justiça social e racial. Os grandes desafios passam pela luta da permanência dos estudantes cotistas nas universidades públicas na graduação e na pós-graduação, pelo letramento racial do corpo docente, discente e técnico nas faculdades de arquitetura e urbanismo no Brasil. Também passa pelas mudanças dos currículos e dos projetos político pedagógicos dos cursos de arquitetura e urbanismo, partindo de uma perspectiva antirracista. É, ainda, fundamental a implementação de políticas antirracistas dentro das associações e órgãos de classe, além do letramento racial e de políticas antirracistas em instituições privadas e órgãos públicos de atuação de arquitetos e urbanistas. Principalmente, é preciso haver a construção de um ensino extensionista, na qual a extensão seja o eixo estruturante e a espinha dorsal das faculdades de arquitetura e urbanismo no Brasil. A estrada da liberdade não tem fim, mas é nela que repousa a justiça, a dignidade e a esperança. p. 55 Notas GOODY, J. O roubo da história. São Paulo: Contexto, 2012 1 HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África I. Metodologia e Pré-história da África. Brasília: Unesco, 2010, p. 167-212. Cf.: Os resultados do projeto estão disponíveis em: http://www.terreiros.ceao.ufba. br/. 2 Cf.: O Censo dos Arquitetos e Urbanistas do Brasil está disponível em: https://www. caubr.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/Censo_CAUBR_06_2015_WEB.pdf HOUNTONDJI, P. J. Sur la “philosophie africaine”: Critique de l’ethnophilosophie. Paris: Maspero, 1977. KODJO, E.; CHANAIWA, D. Pan-africanismo e libertação. In: MAZRUI, A. A. (org.). História Geral da África, Vol. VIII – África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p. 909-936. LOPES, N. A enciclopédia da diáspora africana. São Paulo: Selo negro, 2004. Referências BRUNSCHWING, H. A Partilha da África Negra. São Paulo: Perspectiva, 1971. CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D’Salete. 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A especificidade pedagógica da luta quilombola de Ilha de Maré, Salvador, Bahia ' Entrevista com Nega (Marizélia Carlos Lopes) Quem entrevista: Francine Cavalcanti POSGEO / UFBA Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira RAU+E / EtniCidades / UFBA Paula Regina de Oliveira Cordeiro UNEB, POSGEO / UFBA NEGA Marizélia Carlos Lopes A convite do grupo ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, a entrevista que apresentamos debate o “Direito ao Território” (ESCOBAR,2015), a partir da 1 ontologia , tendo por base as práticas sócio-político-espaciais do território tradicional quilombola de Ilha de Maré, localizado no Município de Salvador, Bahia, através da interlocução com o Estado Brasileiro, no que compete ao campo político institucional 2 de luta por direitos fundamentais . O olhar sobre a “ilegitimidade” do Estado Brasileiro em seu caráter colonial, tão 3 estruturante do paradigma moderno-colonial sobre o “Estado de Direitos” é confrontado, neste trabalho, a partir do relato de uma referência baiana e nacional da luta quilombola denominada Marizélia Carlos Lopes, ou como a mesma se autodenomina, “Nega”. Para os fins que o presente trabalho representa, respeitaremos sua forma escolhida de autoapresentação. “Nega” é a quinta geração de uma família negra rural e pescadora localizada no território de Ilha de Maré, situado no município de Salvador, Bahia. Ela é militante do Movimento Nacional de Pescadoras e Pescadores e uma das fundadoras desse Movimento. Já a Ilha de Maré (Ver Fig 01), seu território de referência político cultural ancestral, é composto por comunidades quilombolas e pesqueiras que resistem a processos de opressão e de violação de direitos desde o período colonial. A Ilha de Maré faz parte do arquipélago da Baía de Todos os Santos e se configura como bairro 4 da cidade de Salvador, desde 2017 . Por força constitucional, trata-se integralmente de 5 dominialidade da União, já que se constitui de ilha costeira sem sede de município . 6 Segundo o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação -RTID, 2017 , peça técnica, antropológica, cartográfica e fundiária, fundamental para a política institucional de reconhecimento do direito quilombola ao território, a Ilha de Maré, atualmente, é distribuída em 11 comunidades tradicionais pesqueiras: Neves, Itamoabo, Santana, Botelho, Porto dos Cavalos, Praia Grande, Maracanã, Bananeiras, Caquende, Ponta Grossa e Martelo. Constituem um total de 644 hectares de extensão territorial e 404 famílias a serem beneficiadas pela regularização fundiária das terras ocupadas. Destas comunidades, 06 (seis) se autodeclaram remanescentes de quilombos e 04 (quatro) são certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), encontrando-se em fase de tramitação processual de regularização territorial junto à Secretaria do Patrimônio da 7 União (SPU) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desde 2004 . p. 61 A partir de dados do censo étnico racial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), se constata que a Ilha de Maré é classificada como o bairro mais negro de Salvador. Contudo, embora seja um território de belezas e diversidades naturais e culturais, além da exclusão social que impõe desigualdade racial para os moradores, o mesmo é afetado por grave poluição e contaminação química, gerada por indústrias internacionais instaladas nas proximidades da comunidade durante a ditadura militar, entre as décadas 1960 a 1970, quando foi implementado o Polo Industrial de 8 Aratu na região metropolitana de Salvador . As comunidades da Ilha, que vivem conforme uma identidade tradicional pesqueira, estão expostas a graves viola9 ções de direitos e ao Bem Viver , violências físicas, morais 10 e psicológicas, sofrendo contaminação química crônica , que provocam danos irreparáveis à saúde e ao modo de vida tradicional, com mortes e doenças, afetando aos habitantes de todas as idades e não apenas crianças e idosos. v.2 n.1 p. 58-91 2023 ISSN: 2965-4904 O Estado brasileiro tem sido omisso diante dessa realidade, conivente com as irregularidades praticadas pelas grandes empresas e insensível diante do sofrimento das comunidades afetadas. Segundo o dossiê elaborado pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP/ BA e a Colônia de Pescadores de Z-4 de Ilha de Maré para denunciar este crime ambiental ao Conselho Nacional de Direitos Humanos entre anos de 2014 e 2017, os estudos ambientais feitos pelo Estado e pelas empresas são maculados por interesses políticos. Muitos encaminhamentos de competência dos órgãos reguladores e de fiscalização ambiental e de ocupação não são cumpridos, os processos de regularização fundiária dos territórios tradicionais da ilha transitam nos órgãos competentes há mais de uma década sem perspectiva de avanço, e o pouco que se caminha institucionalmente para uma garantia de direitos, via judiciário, transita na esfera de medidas ‘compensatórias’ sem controle social, longe dos principais canais de mídia e, portanto, sem visibilidade para a sociedade brasileira. Neste sentido, a luta pelo território de Ilha de Maré, diante da violação dos direitos humanos à vida, à saúde, à educação e ao acesso à terra, traz para o campo da esquerda brasileira um caráter pedagógico fundamental. Principalmente porque evidencia que o avanço na garantia dos direitos fundamentais não está associado apenas a conjunturas político-institucionais. Ao contrário, as décadas de governos de esquerda no Brasil foram também o período de maior acirramento do conflito vivido pelo território pesqueiro e quilombola de Ilha de Maré. É por isso que a conversa que se segue com “Nega” traz para o leitor, elementos da luta afrodiaspórica, especificamente brasileiros. Esperamos que a leitura a seguir sensibilize o leitor assim como as autoras do presente trabalho. Com o propósito de incluir todos os sujeitos que atuaram nessa entrevista, nos apresentamos brevemente: Francine Cavalcanti é geógrafa, especialista em Direito Urbanístico pela PUC/ MG (2011), mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA (2013) e doutoranda em Geografia pelo IGEO/UFBA. É membra dos Grupos Costeiros (UFBA). Atua há 15 anos em políticas públicas institucionais de regularização fundiária de interesse social como servidora federal da Secretaria do Patrimônio da União, órgão do executivo brasileiro vinculado atualmente ao Ministério da Economia. Atua também em projetos de assistência técnica e assessoria popular em territórios urbanos e rurais. Luana Figueiredo é arquiteta e urbanista especialista em Habitação e Direito à Cidade pela Residência Profissional (RAU+E) da UFBA (2014); mestre pelo PPGAU (2019) e professora colaboradora na RAU+E. Pesquisadora do grupo EtniCidades, com foco em políticas habitacionais para comunidades tradicionais, quilombolas e rurais. Trabalha com projetos de assistência técnica e assessoria popular para comunidades urbanas e rurais. Paula Regina Cordeiro é geógrafa, doutoranda e mestra em Geografia pelo IGEO/ UFBA; especialista em Habitação e Direito à Cidade (UFBA/2014) e professora substituta da Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Membra dos Grupos Costeiros (UFBA), NEA (UFRB), NEG (UNEB). Pesquisadora de Geografia Africana e dos Povos e Comunidades Tradicionais; Cartografia e fundadora da AYO Cartografia. Do ponto de vista metodológico, a entrevista que segue se divide em 4 (quatro) eixos principais, quais sejam: 1º) Identidade Quilombola e Território: sujeito individual e coletivo ancestral; 2º) Corpo-política (GROSFOGUEL, 2012), da luta pelo “Direito ao p. 63 Território”: organização social X conflitos histórico-sócio-ambientais; 3º) Limites da institucionalidade diante do racismo estrutural do Estado brasileiro; 4º) Leitura de conjuntura e caráter pedagógico da luta quilombola de Ilha de Maré. Foram utilizados recursos de entrevista oral, pesquisas bibliográficas, materiais cedidos pela entrevistada, áudios de Whatsapp e edição dos conteúdos transcritos. O objetivo de se estruturar em eixos essa entrevista foi proporcionar uma melhor leitura ao traduzir para a forma escrita os diálogos realizados. O material foi revisado e devidamente aprovado por Nega. Figura 01: Mapa de Localização das Comunidades Quilombolas de Ilha de Maré na BTS. Fonte: Google Earth 2021, Elaboração: OLIVEIRA, Luana e CORDEIRO, Paula. p. 64 Eixo 1: Identidade quilombola e território: sujeito individual e coletivo ancestral Luana: Marizélia, agradecemos muito a oportunidade de conhecê-la e de conversarmos um pouco. Para iniciar você poderia nos contar um pouco da sua história e se apresentar? Eu sou Marizélia Carlos Lopes, mais conhecida por ‘Nega’, e gosto desse apelido. Quem me ofertou esse apelido foi minha bisavó Ana, ela chamava meu pai de Nêgo, aí quando eu nasci ela disse que eu era muito parecida com ele, e disse, o nome dela vai ser ‘Nega.Aqui na comunidade é meu apelido, e todo mundo me chama de ‘Nega’. E os amigos, as pessoas, eu gosto que também me chamem assim, então não tem problema. Eu sou mulher, negra, pescadora. Sou filha de Vilma do Nascimento Menezes Lopes e Ernandes Carlos Lopes. A mãe de pai é uma das pessoas de referência na minha vida, minha vó Lurdes. Ela tem traços indígenas, a pele mais negra…. Eu também conheci meu bisavô Cândido, minha bisavó Maria, meu bisavô Fernandes e minha bisavó Augusta, e se tem uma coisa que eu tenho de lembrança da minha infância e eu gosto, é ter conhecido meus bisavós. Eu cresci ouvindo as histórias e os contos contados pelo meu bisavô Fernandes. Ele era alto, um negro lindo e ele também cumpria um papel importante na Comunidade. Ele era o enfermeiro, o médico, quem tinha o conhecimento de cuidar de todas as pessoas, fazia os curativos quando alguém se machucava ou se feria com a arte da pesca, anzol, ele que resolvia. Meu bisavô tinha um conhecimento tão grande, e eu sou muito feliz de ter conhecido e vivenciado, esse tempo. Eu ainda era menina, mas eu lembro muito dele. Assim, as mulheres da minha família, todas elas são muito guerreiras. Minha avó Lurdes casou com meu avô Beca, o nome dele era José Carlos, o pai de pai, ele largou deixou minha vó e foi conviver com outra senhora, e ele e meus tios eram muito jovens, meu pai tinha 14 anos, o segundo mais velho... Então minha avó criou e educou 07 homens, mariscando, vendendo quitutes. E aqui na comunidade não tinha quem soubesse torrar o amendoim tão perfeito igual a ela. E também tem a história de minha avó Dunga (Clarice do Nascimento Menezes), que criou também 11 filhos, com muita dificuldade, com meu avô… E essas mulheres, mãe e minhas tias, todas guerreiras que cuidaram da gente. E tem uma coisa muito p. 65 bonita na família, que eu trago como herança, é que a gente se cuida, né? Então os filhos das minhas irmãs não é meu sobrinho, só meu sobrinho, é filho também. Os filhos das minhas primas, dos meus primos, são meus sobrinhos e a gente cuida de cada um. Então essa coisa na comunidade, todas as crianças ‘é da comunidade’, isso não existe fora de comunidade tradicional. Então, a gente por exemplo, eu tô com 51 anos e só teve 01 afogamento de criança, porque todo mundo cuida de todo mundo. Luana: Você se refere à comunidade como parte de uma grande família…Na medida em que você vai falando de si, aparecem ao mesmo tempo, elementos de identidade coletiva importantes na compreensão do território de Ilha de Maré. Você poderia aprofundar um pouco mais essa relação individual e coletiva de afirmação do território? Poderia nos contar mais sobre seu território e sua comunidade? Então, quando eu me apresento nos lugares que a gente tem falado, nos espaços de luta, eu me apresento como Marizélia Lopes, mulher negra, pescadora, que vive em comunidade tradicional. Então ser essa mulher é um desafio, sabe? Mas ao mesmo tempo, se eu tivesse que nascer de novo eu não viveria sem a comunidade tradicional. A relação que eu tenho, que nós temos, com o território, e é por isso que a gente faz luta, é uma relação difícil de explicar, porque é uma relação ancestral, então não começa comigo. É aqui que estão as minhas referências. Se eu comecei a entrevista falando de mãe, de pai, de minha avó, dos meus bisavôs, é porque são eles minha referência. Se eu tivesse que sair da comunidade, por algum motivo e ir pra cidade, eu deixaria de ser Marizélia Lopes, a ‘Nega’ que carinhosamente foi batizada por minha avó, que tem seus vínculos com a terra construídos a partir da experiência de minha mãe, pai, avós e bisavós, e seria mais uma ‘nega’ (negra) de Salvador, mais uma estatística de negras que foram expulsas de seus territórios originários no passado e são hoje engolidas pela complexidade dos problemas da cidade. Essas negras foram perdendo suas referências com suas comunidades e foram sendo engolidas por outras referências que não são as nossas. p. 66 Então, ser mulher de comunidade tradicional é saber ser uma liderança, uma militante que faz lenha, que pesca, que marisca, que carrega água, que conhece o tempo da maré, que faz beiju, que faz pamonha, que cuida de filho, que cuida de neto. Então, ser mulher, ser mulher negra de comunidade tradicional, é pertencer a essa relação profunda e ancestral com o território, e com as pessoas desse território. Eu conheço cada um que vive em Ilha de Maré, eu conheço cada beco, eu conheço cada criança, então isso, a gente só vai ter, morando em comunidade. Então a riqueza e a liberdade que a gente tem na comunidade não existe em outro lugar. Agora a gente não tá livre das influências do capital, né? Essa ideia do que é meu e não é do outro é influência do capital. Por isso que a afirmação do território é importante, porque a ideia central é o que é meu é também do outro, é nosso. E isso é importante, por exemplo, porque a gente não passa fome, tem dor maiordo que você ver um vizinho passando fome? Então uma das coisas que mais me orgulha de ser de comunidade pesqueira é que a gente não passa fome porque somos guiados pela natureza. Sobre as histórias da comunidade, meu bisavô contava que ele nasceu aqui mas seus pais vieram de uma comunidade de Cachoeira, não me recordo o nome, chegaram aqui fugidos, ele disse que andaram por muitos dias e fugidos de Cachoeira. Atravessaram de barco pra Ilha [de Maré] em Porto dos Cavalos, que é a costa mais próxima do continente, mas vieram de Cachoeira andando. Mas quando eles chegaram aqui, meu bisavô conta que os pais deles escutaram 11 que já tinha algumas famílias fugidas do engenho Wanderlei Pinho . Então minha vó Lurdes contava que quando ela era menina, ela alcançou ainda uma carreira de pedra, um muro de pedra que os primeiros moradores fizeram como um jeito de se proteger, de se proteger um pouco, assim dos capitão do mato e tal. Então meus bisavós já nasceram aqui e já tem muitos anos, meu bisavô Fernandes, ele morreu com 103 anos, e ele contava que ele nasceu aqui na comunidade. Ele morreu tem uns trinta e poucos anos, ano 2000... Se tem 30 anos, foi 1990…Então, imagine? Ele nasceu um pouco antes da abolição. Então os mais velhos contam que as primeiras famílias vieram dessa parte, né? Da parte norte da ilha: onde tem Bananeiras, Maracanã, Porto dos Cavalos, Martelo e Ponta Grossa. Tanto do museu Wanderley Pinho quanto também de Cachoeira, das bandas de Cachoeira. A comunidade de Praia Grande, tem uma história, que a gente não aprofundou, mas tem relatos de moradores, que os primeiros habitantes, eles conseguiram escapar dos navios negreiros. E assim Praia Grande é uma das comunidades que quando ela seca a praia, ela seca toda, então os negros que conheciam que ali era raso, que o canal estava próximo das coroas, os mais velhos contam que teve muitos negros que fugiram do navio. Então, essa Ilha de Maré tem muita história relacionada ao período da escravidão no Brasil. p. 67 Eixo 2: Corpo-política - da luta pelo “direito ao território: organização social x conflitos histórico-sócio-ambientais Francine: ‘Nega’, seu relato sobre sua identidade coletiva e individual de afirmação do território é extremamente rico para a produção de um conhecimento geopoliticamente afrodiaspórico, uma vez que localiza seu 12 ‘lugar de fala’, (RIBEIRO, 2012) a partir de sua experiência vivida e sua própria historicidade enquanto mulher negra quilombola. Pautado em 13 uma perspectiva de aprofundar ‘corpo-políticamente’ o que a luta quilombola representa para você, gostaríamos de compreender a organização do território de Ilha de Maré a partir dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha. Quando você identifica os primeiros conflitos e em que medida as comunidades vão se organizando para acessar a política institucional de reconhecimento dos direitos quilombolas, promovidos pelos 14 Governos Lula e Dilma? Olha, desde cedo, quando eu tinha 17 anos eu já tava participando de uma assembleia, assinando ata e a gente já estava pensando no que fazer para sair daquela situação de exploração. Eu já tinha muito ‘escuro’ na minha cabeça que vivíamos sob uma condição de exploração desde pequena. A gente tem até, aqui, essa ata do primeiro sindicato rural de Salvador se não me engano, em torno do ano de 1987. A gente cresceu ouvindo que a gente vivia nas terras do fazendeiro, o coronel Maia. Eu lembro que eu ficava muito triste, porque pai dava um duro danado, e aqui tinha muitos saveiros, e a produção pesqueira era gigante aqui em Ilha de Maré, e a gente ter que dividir com os ditos donos da terra. A pesca era vendida mais nas Feiras Livres. Também levava de saveiro, para o comércio que era maior em São Joaquim, mas também para Ribeira, Paripe como até hoje, a produção é menor, mas em todas as feiras tem alguém de Ilha de Maré vendendo o seu produto, da pesca ou da agricultura, ou artesanato. p. 68 Tinha muita banana também, não é à toa que a gente tem esse nome de Bananeiras, quem acabou com a produção da gente foi a contaminação. Mas a gente tinha uma produção grande de bananas, então plantava de tudo, mesmo bem menina eu ia para a roça com pai e era toneladas de tomates, de cana, uma produção incrível, abacate, banana, manga, … Mas agora, a gente infelizmente tem que comprar manga, porque a gente perdeu com a contaminação. Então, sabe, me incomodava muito a gente ter que dar um pau danado pra ter a fartura de comida que a gente tinha, aqui todos nós da família inteira trabalhava, e aí ter que o fazendeiro, ele fazia questão de na época da colheita, ele colher os frutos melhores, e dava uma tristeza muito grande ter que ver pai, e meu avô, o tempo todo ter que passar por aquele processo, vivendo o tempo todo naquela situação. Mas, ao mesmo tempo a gente pensava: ‘Mas a terra não é de pai ?‘A terra não é de meu avô? Será que é justo o que esse fazendeiro faz?’. Assim, que a gente pague, mas pague o que é justo pra nós. Isso incomodava muito. E no final, a gente era convencido por eles mesmos, (pai e avô), de que era justo, a terra é de ‘não sei quem’. E a gente ficou um tempão na mão das famílias, da família Maia, na mão da Fazenda Maria José, que era aqui em Bananeiras, a gente ficou um tempão nessa situação. Outra coisa que nos chamava bastante atenção, principalmente de nós que éramos mais novos, era que a gente não tinha onde fazer casa, e a gente não podia fazer casa. E que se fizesse casa… E isso eu tô falando de muito recente, até 2002/2003 as famílias pagavam arrendamento porque construiu casas. Então quando chegou em 2002 a gente foi surpreendido pela família Maia dizendo que tinha vendido para um grupo de advogados a fazenda, a fazenda Martelo, que incluía um pedaço daqui de Bananeira. Que tinha vendido para esse grupo de advogados e que a partir daquele momento a gente ia ter que passar a pagar arrendamento para aquele pessoal, e que a gente também, além de pagar o arrendamento, eles aumentaram o valor, e aquilo foi a gota d’água. E aí em 2003, quando já não aguentava mais essa agonia de pressão de fazendeiro, a gente começa a fazer reuniões para saber como é que a gente ia dar conta disso. A primeira ideia foi não aceitar a pressão, mas não sabia como fazer. E eu tô aqui pulando etapas, porque tiveram casas com ameaça de serem desmanchadas, e a gente ia para o enfrentamento, para não deixar. Então posso dizer que sempre teve conflito em Ilha de Maré, pelo acesso à nossa terra, pelo direito de produzir livremente, só que não tinha tanta visibilidade, mas sempre teve [luta]. E aí, a gente se junta com esse pessoal que estava passando também por muitas situações, que teve pessoas que foram presas porque enfrentou essa família, de fazendeiros Maia. E aí foram presos, e tiveram suas mercadorias destruídas na feira, chegou policial para dizer que tinham roubado e tal, e então a gente se junta para p. 69 fazer reuniões, e é nesse período de 2002 para 2003, que é quando Luiz Inácio Lula da Silva chega no poder, e a gente sabe da notícia desse processo de certidão quilombola, dos direitos quilombolas. E aí, a gente começa a cutucar os mais velhos, né? E meu bisavô nessa época já tinha falecido em [19]90, e em 2002/2003 a gente começa a resgatar com os mais velhos que tinha, as histórias. Como foi que a gente chegou aqui e tal. E a gente coloca tudo no RTID de Ilha de Maré. Todas essas histórias que a gente conseguiu resgatar, e eu particularmente fui me encantando muito pelas histórias, e até hoje quando a gente vai conversar com os mais velhos, eles trazem e é muito doído para eles, lembrar de muita coisa, muita… situações difíceis assim, que passaram. Então, quando a gente começou essa discussão de comunidade remanescente de quilombo, eu lembro que o povo tinha muito medo, e achava que iria sair briga com os supostos donos da terra. Então os pequenos latifundiários começaram a dizer, “eles querem tomar minha terra”... e a gente dizia, a ideia não é essa, pelo contrário, é ampliar, e tal… Mas como os fazendeiros espalharam essa notícia, de dizer que a gente queria tomar as terras deles, as pessoas que tinham pequenos lotes de famílias, começaram a se sentir ameaçados… E aí teve comunidades que não quiseram fazer o enfrentamento. E por isso, as comunidades certificadas hoje são Bananeiras, Maracanã, Porto dos Cavalos, Ponta Grossa e Praia Grande. As comunidades que ainda não são certificadas são as comunidades de Neves, Santana, Botelho, Caquenge… O pessoal fala que tem uma relação mais com os holandeses, que chegaram por aqui, na época da guerra, tem outras histórias da ilha de Maré que conta mais dessa parte. Tanto que desse lado as pessoas são mestiças, a maioria é negra, mas tem algumas pessoas brancas. Então é mais difícil fazer também esse debate nessas comunidades porque eles não se reconhecem como quilombolas, mas a gente sabe que o racismo faz isso, né? Tira nossa história das cabeças das pessoas. E faz achar que porque tem a pele mais clara e influência holandesa não é quilombola. Então o medo mexe muito com a cabeça das pessoas, né? p. 70 Mas hoje se você perguntar a eles, eles se arrependem, quando começam a chegar os direitos, né? O povo vai tendo mais confiança…Por ser comunidade remanescente de quilombo, se lamentam, e estão em processo de certificação. A comunidade de Botelho já pediu a certidão e estão nesse processo. Francine: ‘Nega’, sua leitura sobre essa relação da organização do território diante dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha evidencia um processo muito particular e ‘escuro’ (CARNEIRO, 2011) de defesa do território, como você muito bem coloca. Ou seja, é nessa relação profunda da comunidade com a natureza e com a terra que o povo se sustenta, mas muito além disso, reproduz valores e práticas que existem e resistem há gerações, então tem um caráter muito particular da força ancestral do saber artesanal de se relacionar com a terra. E outra questão importante que você traz é perceber que esse conflito pelo direito ao território é historicamente relacionado ao processo de expropriação da terra. Então não é a política institucional dos governos Lula e Dilma que mobiliza o território de Ilha de Maré a se organizar, mas ao contrário. Ao reconhecer que a luta preexistente do território pelo direito à terra e aos seus modos e valores de referência político cultural se tornam política de Estado, encontram um caminho de conquista de direitos pela institucionalidade. Como a gente sabe que este mesmo período destes governos também foram o período de acirramento dos conflitos mais pautados na questão ambiental, gostaríamos que você comentasse um pouco mais como se deu a organização do território a partir dos processos de contaminação do solo, da água, do ar... Eu tenho uma imagem que fica na minha cabeça, que pai me contou… Quando ele começa a identificar o Porto de Aratu como uma ameaça a nossa vida, aos nossos modos de vida… Pai disse que ele era menino quando meu avô Candido na década de [19]70, [19]60 e poucos, quando começam a aparecer as primeiras luzes onde hoje é o Porto de Aratu. E ele perguntou, ’meu avô o que é aquilo? ’, e meu bisavô respondeu para ele, ‘ali é o fim da vida da gente’. Então, imagine na década de[19] 70, em plena ditadura, ele ter essa consciência de que ‘é o fim’, ali acabou a vida da gente… e ele disse que sentiu muito medo.Trazendo para o contexto da chegada da Petrobras, gente vocês não fazem ideia das histórias que tem com a chegada da Petrobras aqui em Ilha de Maré. Vou contar algumas. A Petrobras chega na década de [19]60,[19]70. Mais ou menos na mesma época do Porto de Aratu, um pouco antes. Então assim, primeiro que a Petrobras, como todos os empreendimentos, chega com o discurso de que vai trazer o desenvolvimento e riqueza para comunidade…Só que na verdade o que trouxe não foi bem assim. Tem um jovem na comunidade, uma das lideranças que a gente tem aqui. Ele sofre muito e não gosta de falar da Petrobras…Porque o irmão dele morreu dentro de um Dique que a Petrobras fez, um lago. Tudo aconteceu em um dia, que não tinha água, porque no verão faltava água nas fontes, a mãe foi nesse Dique para lavar roupa e p. 71 levou o irmão. Esse irmão se afogou, e ele viu o irmão se afogar sem poder fazer nada para salvá-lo. Esse Dique, feito pela Petrobras dentro do território. Então a Petrobras vem com esse discurso de trazer riqueza, mas na realidade trouxe morte. Trouxe dor para a comunidade. Outra história de dor são a dos filhos da Petrobras, dos funcionários da empresa que chegam para trabalhar na comunidade e se relacionam com as mulheres, e deixam os filhos para trás... E essa história é muito comum em Ilha de Maré. Várias mulheres na comunidade do Martelo, Ponta Grossa e Porto dos Cavalos, elas têm filhos da Petrobras. Isso porque a mão de obra daqui não foi aproveitada, a mão de obra das pessoas de Ilha de Maré, a Petrobras trouxe os homens de fora. Para vocês terem uma ideia, a Petrobras tem poços nas comunidades de Praia Grande, Porto dos Cavalos, Martelo e Ponta Grossa. E não foi em qualquer lugar que foram cavados esses poços. Eles têm uma grande extensão, e são dentro da roça da gente, do espaço que a gente tinha. E ainda que a gente plantasse de meeiro, era a roça que a gente plantava. Como os nossos avós e nossos bisavôs não eram considerados donos da terra, então esses fazendeiros da família Maia, negociaram esses espaços, mas sem os moradores saber. E assim, as roças, as casas, os moradores, tudo foi negociado pela Família Maia como ‘propriedade da Petrobras’, então um dos primeiros conflitos com a Petrobras foi esse. A Petrobras, além de fazer os seus poços, para fazer eles, ela precisa abrir caminho mata adentro, tem esse impacto, eles abrem a estrada, colocam cascalho, cortam a mata e tal… E depois tem os riscos de contaminação né? Eu conto sempre a história dos meus sobrinhos, quando eles foram catar goiaba, e um deles encontrou lá uma chavezinha e abriu uma das válvulas desse poço… E a gente viu o petróleo saindo sem proteção nenhuma Então assim, o impacto dessas empresas chegando em nosso território é cruel. Porque a gente tem que conviver com as dores, com os cheiros e os danos dessas coisas… Todos os pés de mangueira espada morreram, secaram todos os pés e a gente tinha fartura de manga antes, então a gente atribui à contaminação. p. 72 Outra questão importante de lembrar é que algumas pessoas foram indenizadas e saíram, especialmente as famílias da comunidade de Martelo. Mas logo depois elas voltaram mais para cima do território… E assim, os dutos da Petrobras acabaram passando pela frente da casa das pessoas… E olhe, não é uma relação simples, por mais agressão que tenha tido, a gente não consegue se desassociar, sair dali e não voltar mais. Vocês sabem que até pode sofrer um processo de indenização, e sair, mas tem comunidades que depois voltam, e continuam ali resistindo, porque viu que foi um erro, o que foi feito. Assim a comunidade de Martelo, é um desse povo. Não foram muitas famílias, o pessoal fala que foram umas 06 famílias indenizadas pela Petrobras, mas quando tem seus filhos e encontram dificuldade de moradia, vão morar onde tinham referências. Nos lugares de onde saíram, e assim o conflito continua… Outro impacto muito grande foi o local onde a Petrobras fez o descarte. Era um manguezal, eu lembro, e que eles danificaram esse manguezal e que agora ele não cresce mais, ele fica ‘todo nanico’. Em 2012 a gente pediu para fazer um estudo para ver se esse manguezal estava contaminado, e a mesma coisa com a água do dique, que a gente percebe que muda de cor, e até hoje não entregaram o resultado para a gente. Mas mesmo sem estudo concluído a gente sabe que esse mangue ‘nanico’ tá contaminado, porque a gente lembra quando criança, a quantidade de siri de mangue que a gente catava lá. A gente aproveitava e catava os siris enquanto mãe e pai estavam cortando as bananas, e a gente ficava o dia todo na roça… Hoje, a gente não faz mais isso, o mangue ficou muito miúdo, ficou raso, e a potência que era do pescado já não tem mais. E tem também os poços que estão dentro do mar, e até no mar eles disputam com a gente. Tem um lugar que é de descarte de resíduos, que sabe lá de quê, dos resíduos da refinaria. Nesse lugar eles cavaram um tanque, dentro do mar, é um buraco gigante e a gente chama essa área de ‘lama podre’. Quando a maré enche, ela levanta e fica boiando. Essa ‘lama podre’, a gente deu esse nome. Vocês não imaginam o medo que a gente tem dessas coisas que a poluição trouxe, mas ainda assim é um lugar que a gente marisca, que a gente pesca, pai transferiu um medo para gente, ele disse, que quando minha irmã mais velha tinha meses de nascida, teve uma explosão na refinaria Landulfo Alves que diz que foi um horror, assim, muito medo. Em 2013/2014 teve outra explosão, que está registrada no filme documentário 15 ‘No Rio e no Mar” , e pelo filme vocês vão perceber como a gente ficou com medo, por ter os relatos também do que já aconteceu. p. 73 Então, assim, os conflitos que a comunidade vem sofrendo tem me modificado bastante, porque eu costumava ser mais calma, eu era mais orientada pelo vento, pelo tempo da maré, mas aí quando a gente abre os olhos para as violações de direitos a gente vai se modificando. Então eu me modifiquei muito depois da consciência da violação dos meus direitos e do meu território. Quando a gente começa a enxergar que a ganância do capital é tão grande a ponto de causar racismo, que adoece, que mata, que oprime, que enlouquece. Quantas pessoas na comunidade foram adoecendo e deixando de ter tantas garantias de direitos que era pra ter? É tudo muito triste. Pra vocês terem uma ideia, a Ilha de Maré tem 14 poços ativos e os de gás já têm ligação direta para a Refinaria Landulfo Alves, juntando os que estão em terra no território, ainda ativos e o que está no mar. Luana: O racismo estrutural enraizado na nossa sociedade reproduz padrões coloniais muito evidentes na sua fala. Na perspectiva de um novo sujeito social, definido por uma identidade política de direitos coletivos (ARRUTI, 2003) “nas comunidades remanescentes de quilombo” preconizada 16 na ADCT da CF 88 , a gente percebe que as práticas sociais de determinados valores culturais racistas permanecem. A ideia de remanescente de quilombo, por exemplo, coloca a questão quilombola como ‘congelada’ no período da escravidão, e as comunidades negras que se reconhecem como descendentes dos africanos, aqui escravizados, precisam a partir desses processos de luta, enfrentamento e resistência demonstrar aos fazendeiros, e ainda mesmo que tardiamente à sociedade, que o quilombo histórico, não se encerrou oficialmente em 1888. Nesta perspectiva de ter que lidar com o racismo estrutural na interlocução com o Estado Brasileiro por direitos, gostaríamos que você avaliasse a organização das comunidades da ilha em relação às políticas institucionais de reconhecimento do território? Então, a gente que viveu essa perda de direitos pela contaminação, a gente sofreu muito, sabe? Mas assim, a gente nunca aceitou as condições de vida que a gente vivia, né? Então, quando a gente via, essas empresas muito próximas, enriquecidas, cheias de dinheiro, às custas da nossa soberania alimentar e do nosso bem viver, a gente se incomodava muito de ser tão próximo de Salvador e a gente não ter as garantias das políticas públicas. p. 74 Água mesmo é muito recente. O acesso a água tem muito poucos anos, tem 23,24 anos que chegou água encanada em Ilha de Maré. Energia tem trinta e poucos anos, 35 anos que chegou em Ilha de Maré. E a gente sempre com os mais velhos, com todo mundo, a gente fazia abaixo-assinados em época de eleição que os mais velhos levavam para entregar aos vereadores, deputados que se aproximavam em época de eleição, e nada das políticas públicas e infraestrutura chegarem. Então sempre teve esse incômodo. Mas aí a gente também precisa reconhecer, que antes a gente tinha esse incômodo, mas para as comunidades tradicionais as informações sobre os direitos, elas não chegaram logo, na verdade hoje a gente sabe que nos foi sempre negado pelo Estado Brasileiro. Então a gente consegue acessar as informações sobre os direitos que a gente tinha, com a chegada do CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores, que chega na comunidade fazendo um diagnóstico, na verdade algumas pessoas, porque antes não tinha CPP na BTS (Baía de Todos os Santos), e aí uma das comunidades pesqueiras que eles escolheram para fazer um levantamento da situação, e um diagnóstico foi Ilha de Maré, e aí eles começaram esse processo de mobilização das comunidades. A CPP chega aqui em [19]99, 2000. Neste período eles fizeram o levantamento, o diagnóstico da ocupação e dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha (Ver Fig 02). Na verdade, o objetivo do levantamento/trabalho era criar uma equipe da pastoral aqui na BTS. Então fizeram esse levantamento, apresentaram esse diagnóstico, e então eles começaram a pontuar alguns exemplos que a gente não via como ameaça. Ou melhor, a gente via a ameaça mas não sabia o que fazer, né? Tinha aquela imagem, aquela ideia de que por ser uma contaminação realizada por grandes empresas do governo e multinacionais, a gente não tinha força.... que era o caso do Porto de Aratu, a Refinaria, etc. E aí também trouxeram, a CPP, as informações, por exemplo, de que era possível sim reverter esse quadro, esses conflitos territoriais que antes a gente achava que não tinha como reverter. Foram eles que trouxeram, e apresentaram para nós, e que foi muito importante, e na verdade foi fundamental na chegada deles, os caminhos institucionais do Ministério Público, da Defensoria Pública, que antes a gente não sabia, que existiam esses caminhos. E é durante esse período também que chega a notícia da possibilidade da certidão quilombola, no primeiro governo Lula. E tanto que nós somos uma das primeiras comunidades certificadas, aqui em Porto dos Cavalos, e Praia Grande. Nós fomos as comunidades que tiveram a certidão logo, 2004 a gente consegue a certidão de remanescente de quilombo. p. 75 Então a gente já estava mais ou menos organizado, em 2004. Foi neste período que a gente teve a formação feita pelo CPP, a formação de conhecimento dos nossos direitos, que a gente ia brigando, e foi quando também, nesse período a gente retomou a colônia, que antes foi fundada por pescadores, e naquela época quem estava eram empresários, então a gente retoma a colônia e faz todo um processo de organização em torno da pesca. Então é muito bonito esse processo de organização, neste período porque vai se somar às articulações que a gente travou para o processo de certificação e elaboração do RTID. Então, eu já falei né? As comunidades que foram certificadas foram Bananeiras, Porto dos Cavalos, Ponta Grossa, Praia Grande e Maracanã, que são as comunidades reconhecidas pelo Estado. Porque infelizmente tem uma questão muito chata como comunidade quilombola, que é essa necessidade de ter que provar o tempo todo que é quilombola, ter que apresentar documento de certificação, mas Ilha de Maré toda é um quilombão, né?” Então eu não gosto, eu tenho uma dificuldade muito grande… Assim, eu acho um absurdo a gente ‘ter que’ aceitar de que o Estado, ele tem a necessidade de o tempo todo ficar - eles precisam - pois não basta eu dizer que eu sou negra, e que eu sou Marizélia e moro na comunidade, eles precisam que eu tenha uma certidão. Eu tenho que ter um RG, um CPF. O Estado precisa dizer ‘quem eu sou’, eu tenho que ter um número, eu tenho que ser identificado, e continua aquela mesma coisa, assim, na minha opinião. ‘Nega’ é de quem, né? ‘Nega’ é do Estado? Pertence ao Estado? Então eu tenho essa dificuldade muito grande de aceitar esse comportamento do Estado, não basta para o Estado, para o País, que para a gente garantir os nossos direitos, não basta se auto reconhecer, tem que constantemente provar quem eu sou, mas quem eu sou não vale nada pra eles, pra eles somos números. p. 76 Figura 02: Mapa da BTS Identificando Ilha de Maré e os Conflitos Territoriais. Fonte: Campo 2013-2021, INCRA 2017; Elaboração: CORDEIRO, Paula Regina. Eixo 3: Limites da institucionalidade diante do racismo estrutural do Estado Brasileiro Francine: ‘Nega’, seu relato até aqui traz uma lucidez política incrível para refletirmos sobre o ‘direito ao território’, ou como aprendo com suas palavras e algumas autoras do feminismo negro, traz uma leitura política extremamente ‘escurecida’, (CARNEIRO, 2011), de organização social e sobre os caminhos da institucionalidade na luta por direitos. Gostaríamos, então, de aprofundar com você um pouco mais a reflexão sobre os limites da institucionalidade. Você nos traz como foi importante a articulação e organização do MPP, o apoio e parceria da CPP, a construção do RTID, o processo de mobilização da comunidade na elaboração deste relatório, então tem um lado positivo da institucionalidade né? Que é alcançar algumas etapas da luta por conquistas de direitos. Mas seu olhar sobre a lógica de operar a institucionalidade do Estado é preciso e cirúrgico. Principalmente quando você pauta o racismo como estruturante do Estado. Então será que você poderia nos contar um pouco mais sobre como você vê esses caminhos da institucionalidade? O que é bom neste processo de se organizar para alcançar um reconhecimento institucional e até onde a gente pode ir para não cair na mesma arapuca, digamos assim, que outros já caíram? p. 77 Na verdade é isso mesmo, a gente enxerga a institucionalidade como instrumento que a gente precisa se apropriar para garantia dos nossos direitos…Porque assim, eu lembro de menina quando pai ouvia a voz do Brasil no rádio, com meu pai e meus avós, que a gente realmente precisa que se faça uma reforma agrária. Então assim, essa discussão da reforma agrária, ela é muito antiga, da importância da reforma agrária. E aí, entendendo com eles, a gente ficava pensando, será que realmente a questão da reforma, se ainda tinha alguma dúvida sobre o negócio, e tinha toda aquela discussão que era o MST que nos pautava, e aquela coisa de tomar terra… e pra nós sempre foi aquela coisa… a terra é de quem trabalha nela, né? Não tem dono, e os mais velhos diziam: ‘Deus quando criou a terra, ele não vendeu a ninguém’. Então porque é que tem dono? E a gente ficava naquele incômodo, sempre ficamos incomodados. Independente, de quem, antes de chegar às organizações, porque antes da CPP veio a igreja católica, que tinha umas freiras católicas, que trabalham orientadas pelas orientações de Paulo Freire, e de outras pessoas mais populistas também. Mesmo antes dessas pessoas chegarem, a gente se incomodava, mas não sabia o que fazer e como fazer. Então o lado bom da institucionalidade é que a gente aprendeu como ir pro enfrentamento. Eu lembro também de outra experiência que foi quando a comunidade toda se juntou porque tinha um fazendeiro que não queria que uma família daqui da comunidade, finado João e Dona Joana, não queria que eles construíssem a casa deles. Então, tinha uma casa de barro e a casa já estava muito ruim, os fazendeiros queriam que eles fizessem a casa de taipa no mesmo lugar. Mas eles diziam que não conseguiam fazer a casa de taipa no mesmo lugar, porque aí a gente vai morar aonde? E foi fazer em outro lugar, e chegou esse fazendeiro cheio de capangas, querendo derrubar a casa dele, e a comunidade toda se juntou, e não deixou. Então assim, se organizar e aprender sobre nossos direitos é importante para gente se entender como gente, pra exigir o que é nosso por direito, pra não ficar esperando do Estado esse reconhecimento. p. 78 Agora, essas políticas que foram pensadas e implementadas pelos gestores, aí na época de Lula. Essas políticas, a gente sempre viu como instrumentos, que a gente precisa se apropriar, para a garantia desse direito, né? Para a gente sempre foi muito certo de que a terra era pra gente trabalhar. De que o território era pra gente viver. Então, assim, ‘direito ao território’ é isso, é viver o que a gente sempre viveu, é manter nossas referências ancestrais.Por fim, acho importante dizer que a gente tem feito luta mas não tem saneamento básico ainda, não tem calçamento, não tem praça, não tem nada dessas garantias de direito de políticas públicas. O que melhorou um pouco foi o atendimento no PSF, que chegou um médico e uma equipe... Tem a escola, que é mais organizada que fica na comunidade de Praia Grande mas que é pra atender a todas as comunidades até a oitava série. Fora isso a limpeza é precária, não tem garantia de água encanada, energia elétrica de qualidade. Então a gente tem feito luta mas vem as mínimas das mínimas coisas. Francine: A forma como você lê os limites da institucionalidade evidenciam caminhos que tencionam o status quo capitalista do “Estado de Direitos”: a relação do uso da terra pública enquanto valor inegociável, em detrimento da relação de propriedade; a omissão dos órgãos na garantia dos direitos fundamentais; a recusa do estado de tutela política na interlocução com o Estado. Ouvir assim seu relato e suas reflexões nos apontam elementos para perceber como o racismo mascara o campo político da luta institucional pelo “Direito ao Território”. Você poderia aprofundar a reflexão sobre Racismo e “Estado de Direitos”? O que se espera do Estado? - que cumprisse o seu papel, que regularizasse e titulasse as terras quilombolas, e a terra da gente, mas o que a gente vê na prática, a depender dos interesses, não anda. Tem um projeto político, que em ilha de Maré não pode avançar as políticas públicas, não pode avançar a regularização do território, não pode avançar porque na verdade Ilha de Maré precisa continuar sendo a senzala. Então onde sempre esteve os casarões, é onde estão as estruturas para manter os herdeiros, e os senhorzinhos, …Os herdeiros dos donos de engenho ricos. Jussara Rêgo, em sua tese de doutorado, ela chama a atenção disso, que a gente ficou impressionado, o quanto foi preciso assim, identificar, que onde eram os engenhos, foram construídas, agora, as estruturas que continuam nos oprimindo (RÊGO, 2018). E assim, a gente vai continuar defendendo que precisa fazer uma limpeza no nosso território, e o que tiver de conflito precisa sair, como por exemplo, os dutos da Petrobrás. Mas a gente sabe que a máquina que opera é para que a gente não se sinta gente. A gente não tem que se sentir vitorioso, a gente não tem que se sentir grande, né? Porque se não a gente vai ter o poder, e o poder não cabe ao povo preto e pobre. O poder tem que continuar sendo garantido para os brancos. p. 79 Então as estruturas do Estado não foram criadas para atender as demandas do povo preto. Tem alguns procuradores que até nos escutam, mas não conseguem agir na velocidade que a comunidade precisa. Eles dizem que tem que cumprir vários ritos para ser no tempo em que a instituição atua, e aí, a gente denuncia por décadas a mesma situação e ainda tem nossos processos arquivados. Então, o TAC, (Termo de 17 Ajuste de Conduta) , por exemplo, ele foi celebrado sem a parte mais interessada. Se fosse depender das empresas nunca existiria um ‘ajuste de conduta’, então quem solicitou a assinatura deste termo foi a gente. E aí, o Ministério Público Estadual (BA) do Meio Ambiente, na 6ª promotoria, eles tocam o acordo com as empresas sem a presença da gente. Então vocês vejam, o MPE-BA, ao nosso pedido, assina um acordo com as empresas e ignora a nossa presença. Então não é interessante a gente ser protagonista, não é interessante a gente defender nosso povo, nosso território. A própria promotora de justiça nos disse que não conseguiríamos tirar o Porto de Aratu, então que era para a gente se adequar a essa realidade. Então quer dizer: mesmo que o Porto de Aratu nos mate, diminua nossa potência de existência, nosso tempo de vida, contamine o ambiente que a gente vive, ainda assim, não cabe a nós decidir sobre o que tem que acontecer com estas empresas. O que tem que ser considerado é que o país precisa crescer. O desenvolvimento precisa acontecer. p. 80 Luana: Ampliando o debate trazido por Francine, um dos principais tensionamentos do Bem Viver está no diagnóstico de que na América Latina, esse modelo desenvolvimentista que se propõe como desenvolvimento econômico está estruturado em três elementos, considerados como a causa dos principais problemas do qual padecem as sociedades latino americanas: a alienação, a desigualdade e a insustentabilidade (20) (Cubillo-Guevara et all, 2016). O primeiro deles trazido por Fran, é o sistema econômico mundial capitalista, sustentado não apenas na propriedade privada como também no mercado, sendo este, herdeiro da ordem econômica mundial que o estruturou à nível global, que é a colonização. Esse rearranjo do sistema mundo eurocentrado se fundamenta também no antropocentrismo, no domínio do homem sobre a natureza, e não como parte dela. O resultado das diversas combinações possíveis e perversas dessa fórmula está retratado em seus relatos. O etnocídio é uma das formas de extermínio das comunidades tradicionais, eliminando a perspectiva da reprodução e permanência da comunidade em seu território original, e principalmente a eliminação dos seus modos de vida tradicionais, como a pesca, evidenciada nos crimes ambientais relatados. Em toda a sua fala você gradativamente pontua aspectos que questionam esse modelo socioeconômico de desenvolvimento proposto e a relação com todo o aparato estatal… e podemos perceber a profundidade da sua crítica não a um governo especificamente, mas a um padrão hegemônico (mundial) ao qual estamos todos submetidos, onde contraditoriamente, quem vive da terra e é conectado à ela nas suas mais plurais dimensões, (SANTOS, 2018), “paga” a conta dos que vêem a terra apenas como mercadoria, como recurso a ser explorado. Você pode “escurecer” um pouco mais essa reflexão sobre a relação RACISMO X DESENVOLVIMENTISMO para nós? Outro dia eu estava numa ‘live’ numa escola daqui de Ilha de Maré, e um aluno que perguntou o que era racismo institucional … e, bem esse termo para a gente é muito novo, e eu expliquei do jeito que eu entendo: Desenvolver, sem reconhecer que já tem um povo que desenvolve, e esse povo ele não pode ser consultado, ele não deve ser consultado, porque não cabe a esse povo a decisão de que, o que é que entende como desenvolvimento e a esse povo não cabe a decisão de que naquele lugar, não caberia esse modelo de desenvolvimento. A nós não é dado o direito de que não cabe esse modelo, e os argumentos é que precisa crescer, precisa crescer e desenvolver o país, e aí dane-se que se para crescer, e desenvolver, dane-se que seja para matar um povo (suspira). Então esse racismo além de ser estrutural, ele consegue ser tão perverso que essa estrutura ela vem num formato de um rolo compressor, passando por cima de todas e de todos, e que na maioria das vezes, com o aval do estado, que aí são os órgãos ambientais, tanto estadual como federal, que se precisar matar, mate. Mate de fome, mate de angústia, mate de sofrimento, mate de dor, mate de tristeza. Mate. Mas o desenvolvimento, ele precisa acontecer … porque tem que estar no topo. A Bahia ela tem que estar no topo, de mais empresas, mais emprego, mais renda, mais, mais, e tem que estar no primeiro lugar, e é um pouco isso. Gente, eu queria muito não enxergar esse racismo, queria muito, não identificar que existe esse racismo, queria muito não perceber que somos tão massacrados sabe? Tem sido muito difícil para mim ver, centenas de pessoas vivendo como se nada estivesse acontecendo, centenas de pessoas não enxergando esse racismo. E pessoas que são orientadas pelas empresas, são orientadas pela mídia, que são orientadas pelo próprio sistema mesmo. p. 81 Eu queria muito, não carregar tanto esse peso de enxergar o racismo. O racismo ele adoece, ele entristece, ele modifica a gente.Eu me lembro de quando que eu era muito tímida, e que eu quase não falava com as pessoas direito, eu gostava muito de rir, eu gostava muito de ouvir as histórias de pai, e dos meus avós, de meu bisavô. E mesmo eu vendo que eles estavam sendo explorados, eu não sabia que era o racismo. Eu ficava muito, era muito de frequentar a igreja com eles, mesmo que as orações fossem na rua, porque aqui não tinha estrutura, mas eu ficava assim pedindo a Deus que meu pai trabalhasse menos, que meus avós fossem felizes, que não precisasse trabalhar tanto … eu ficava agoniada quando via minha mãe, minhas avós, minhas tias … quando chegavam da maré, ter que cuidar de casa, ir para a fonte pegar água, e fazer lenha, e catar marisco e cuidar da gente. E eu não entendia que era racismo aquela situação. Não entendia que não ter água potável, não ter energia … eu não entendia que era racismo. Não entendia que era racismo na época das eleições, o povo da cidade, os brancos da cidade, virem na comunidade juntar o povo e dizer que para melhorar alguma coisa, precisava votar neles. Eu não entendia que era racismo quando eu via o Porto de Aratu, e as empresas numa potência, e eu ficava pensando o quanto que deve ser rico, porque tem muitas lâmpadas, muito barulho, muito gasto… eles devem ser ricos, muito ricos. E o que chega para nós? Eu não entendia que era racismo. E eu não entendo até hoje, como se perpetua esse racismo, que são contemplados, pelas empresas, pelos governantes, que alguns deles até são assessorados pelos pretos, e que tem, cumprem o papel de conivente com esse racismo, e que faz o discurso que é contra o racismo, e aí, assiste de longe os ataques que as empresas fazem a esse povo que é preto e que é pobre, e que a única coisa que nos move é pelo direito à vida. 18 Continua o INEMA , vendendo a nós, a nossa comunidade aos brancos, ofertando a nossa comunidade, e algumas vezes deve até mostrar a beleza das mulheres, o encanto da comunidade… e a cultura do nosso povo. Esse racismo que ele tem como aliado a contaminação que nos mata. A gente vai continuar brigando, mas a contaminação nos mata, e vai favorecer o projeto político do racismo. p. 82 Eixo 4: Leitura de conjuntura e caráter pedagógico da luta quilombola de Ilha de Maré Francine: Sua fala é uma verdadeira aula, ‘Nega’. Nos faz pensar na conjuntura macropolítica atual. Em como o discurso desenvolvimentista fomentou a plataforma política do Estado Brasileiro rumo a um extremismo neoliberal. Porque se pararmos para refletir sobre o contexto macro político atual brasileiro a partir do projeto desenvolvimentista de ‘progresso’ assegurado historicamente em nosso país, mas com potencial ressignificação e reestruturação do capitalismo no Brasil assentada nesta pauta ao longo dos governos Lula e Dilma, principalmente quando a gente parte de projetos petrolíferos, de mineração, etc, fica evidente para o leitor, como a luta quilombola de acesso à terra foi invisibilizada, subestimada, cooptada e até mesmo ignorada quando se pauta seus princípios de existência e identidade na afirmação política. Você trouxe até aqui poderoso relato sobre sua trajetória de afirmação identitária e territorial, passando por uma reflexão profunda sobre a organização das comunidades da Ilha de Maré e sua interação com a institucionalidade na luta por direitos. Finaliza sua reflexão trazendo elementos fundamentais para refletirmos sobre ‘como caminhar pela institucionalidade’ a partir do tensionamento de aspectos estruturantes do Estado Brasileiro como a propriedade privada, o racismo e o próprio projeto desenvolvimentista de governo. Seria possível, então, encerrarmos esta entrevista com sua análise de conjuntura sobre nossa macropolítica? Luana: Gostaria de complementar a pergunta de Francine te pedindo para trazer um recado para quem está na luta hoje por terra. Qual o seu recado para os mais novos? Para quem está começando a ter consciência de seus direitos? Sobre análise de conjuntura política, a gente costuma dizer que a gente tá até ‘marcada’, eu, Edielson, Elionice, Rose, aquela galerinha nossa. O povo não gosta de chamar a gente pra fazer análise de conjuntura da política quilombola porque sabem que a gente vai falar mal do PT. Então pra eles, é melhor que a gente não vá. Tem uma frase que a gente costuma usar muito que è ‘Entre a esquerda e a direita estão os territórios em conflito’. Então, eu costumo ter o cuidado de dizer que não é uma questão de votar em Lula ou não votar, a questão é: Porque o PT não fez e não faz autocrítica? Porque muito do que a gente sofre foi por conta do que o PT fez... E na minha avaliação, acho que tem uma contribuição muito grande do PT para chegada p. 83 desse Bozo. Então fico muito incomodada com essas lideranças que agem e falam como se não tivessem contribuído em nada com esse governo de hoje. Os desmontes que estão vendo hoje nas políticas públicas foram apoiados por essas lideranças, porque a gente sabe que a omissão também é apoio. E aí, nós do Movimentos dos Pescadores, podemos falar disso, o Movimento Indigena, também pode, assim como os quilombolas também, ao mesmo tempo que os anos de governo PT trouxeram uma série de políticas públicas que beneficiaram a população mais vulnerável, a gente pode fazer uma lista dos equívocos que eles fizeram. Tomadas de decisão assumidas pelo PT que destruíram com a vida de muitos territórios tradicionais. Então, assim, a gente pode trazer a análise de conjuntura para aqui na Bahia sob a gestão de Jacques Wagner, que diminuiu a poligonal da RESEX da Bacia do Iguape em função da construção ilegal do Estaleiro Enseada do Paraguaçu, que abriu precedente para o que está acontecendo agora com a RESEX de Canavieiras. Quantas comunidades pagaram muitas vezes com a própria vida o preço do desenvolvimento e dos interesses dos grandes empresários? Eu fui a uma reunião governamental nos últimos momentos de Dilma no poder e vi o Ministro de Meio Ambiente pegar todas as solicitações de criação de RESEX e tratar as poligonais das comunidades como um bolo e fatiar os pedaços das fazendas dos latifundiários. Então, quem começou com o desrespeito às poligonais de delimitação dos territórios tradicionais? Quem criou a lei anti-terrorismo que arrefeceu vários movimentos sociais foi a gestão de Dilma. Quem tá licenciando a duplicação do Porto de Aratu? Quem começou o processo de leiloar a Refinaria Landulfo Alves, gerando tantos conflitos entre os petroleiros? Quando não era governo do PT conseguimos engavetar o licenciamento da duplicação do Porto de Aratu, mas mesmo com todos os impactos socioambientais tão nocivos para nossos territórios, o PT passou por cima com esse licenciamento. Então, assim, é muito difícil pra nós, para os territórios tradicionais, não fazer o debate do desenvolvimentismo. E agora, com esse Bolsonaro no poder, o PT quer vir pra nós com esse mesmo discurso ruim com Lula, pior sem ele? Na verdade, provavelmente todos os partidos de esquerda se tivessem chegado ao poder fariam o mesmo porque a questão é estrutural. p. 84 A gente tá cansado desse debate, a gente ouve isso desde o governo Dilma. Enquanto isso, as mesmas alianças que geraram essas tomadas de decisão continuam sendo feitas. Então, assim, o que é que vai ser negociado nessa forma de fazer política, às custas de nossos territórios, às custas de nossas vidas? Porque os ruralistas continuam com seus interesses garantidos. A Katia Abreu esteve no governo Dilma e continua no apoio a Lula. Ela acabou com a vida da gente quando esteve na gestão do Meio Ambiente. E aí quando a gente começa a fazer a crítica ao partido é comum a gente ouvir que Rui Costa é de uma tendência mais próxima aos empresários, só que pra mim não interessa, se é PT, se é partido dito de esquerda. E depois, a gente que tá na luta há muito tempo, a gente sempre ouviu o discurso de que o Brasil precisa crescer. E historicamente quem cresce são os mesmos de sempre, e sempre às custas das comunidades, destruindo a vida da gente, diminuindo o tempo de vida da gente. É muito cruel, nosso pescado está ameaçado em nome do desenvolvimento. Esse modelo posto de desenvolvimento só faz a gente perder. A gente perde nossas terras, a gente perde nossa saúde, a gente perde nossa cultura, as nossas referências. A gente perde as nossas vidas. Pra nós é só perda. Quem ganha é o partido que recebe financiamento de campanha da OAS, da Odebrecht, Braskem, Dowchemical, Dias Branco, Petrobrás, etc, ganham as empresas que têm seus interesses e lucros garantidos. O Estado trabalha a serviço dos partidos e das empresas. Você vê: o INEMA, trata a política ambiental como um balcão de negócios. Eles ficam o tempo todo rifando as comunidades com o discurso de que não pode barrar o desenvolvimento do país. Então essa leitura política de desenvolvimento do Estado e das empresas não nos representa. Então, o que eu acho é que nosso movimento precisa fazer uma avaliação com os outros movimentos e apresentar as propostas das comunidades pro Lula pra ver o que ele vai se comprometer. Aí vamos pra cima. E depois, o partido tem crescido em termos de representatividade negra, eles são colocados em cargos importantes mas em troca têm que fazer o discurso do Estado. São os negros que o Estado cooptou pra diluir a luta da negrada. O que é a 19 SEPROMI , gente? Eles servem pra encenar uma atuação pra acalmar o conflito mas nunca conseguem atender aos interesses do povo negro. E isso foi o que aconteceu 20 com a SEPPIR também na esfera federal. Se eles sabem que vai acontecer algum levante do povo negro eles são acionados pelo Estado para calar a boca e a voz do povo negro em conflito. Então, o que eu tenho falado muito pra quem vem depois é que a luta que a gente faz é pra reduzir o medo que a gente vive. O medo de não poder plantar, de não poder pescar, o medo de ver nosso povo passar fome, ver nosso povo adoecer. p. 85 Eles continuam enriquecendo até hoje em cima da miséria e da exploração do nosso povo. Como é agora o caso do Projeto Bahia Terminais, que não se contenta em destruir o manguezal, e quer destruir as pessoas que vivem do manguezal. A mesma coisa pra Braskem, a Petrobras, etc. Então o meu recado para os mais jovens é que precisamos continuar a luta para reduzir o medo do poder da ganância, que vêm dos herdeiros da Casa Grande, dessa opressão que é histórica. Luana: Não podemos deixar de registrar a admiração e a honra de poder fazer essa entrevista, e reconhecer o privilégio da oportunidade de entrevistar uma liderança com a qual a gente se identifica e reconhece os mesmos valores éticos, sociais e ambientais. Para nós é muito importante que outras pessoas te conheçam e se reconheçam, e ainda mais, que subvertam suas referências de pessoas europeizadas, milionárias e famosas por nada em especifico, por pessoas reais e éticas. A beleza e a força da fala de uma mãe, uma avó, uma mulher lutadora que está defendendo os direitos da sua comunidade, e além, o direito a outros modos de vida. Ao mudar as nossas referências, nós mudamos também os nossos padrões de atitude, ajustamos nossos valores, nossos ideais. Para nós (a luta quilombola) é a luta do povo real que resiste e está fazendo a transformação pela e na terra, não é a luta institucionalizada pautada nos discursos de esquerda ou direita, é essa luta que está aqui. Notas 1 p. 86 A ontologia é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da realidade, a essência das coisas. Para filosofia política a dimensão ontológica se constitui da capacidade de se perceber a natureza, a essência da política, ou ainda, a forma como a sociedade se institui e estabelece suas relações. Neste sentido, o presente trabalho comunga com as ideias de Arturo Escobar (2015) sobre as práticas sócio-político-espaciais dos territórios originários. Para o autor elas são um caminho de problematização do ‘direito ao território’, uma vez que, ao valorizar e defender seus saberes e modos de vida, tensionam e evidenciam a ilegitimidade do projeto globalizador neoliberal de construção do mundo capitalista liberal e secular. Para o autor, muitas comunidades indígenas, afrodescendentes e camponesas podem ser vistas como avançadas nas lutas ‘ontológicas’, isto é, adotando a defesa de seus modos de vida como pauta inegociável na interlocução institucional com o Estado Brasileiro na luta por direitos. Tais lutas podem ser interpre- tadas como contribuições importantes para as transições ecológicas e culturais dirigidas para um mundo no qual caibam muitos mundos (o pluriverso). Mais detalhes, ver Escobar (2015). 2 Direitos fundamentais são aqueles inerentes à proteção do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Elencados na Constituição Federal Brasileira, possuem a mesma finalidade que os direitos humanos. A diferença se dá no plano em que são instituídos: se os direitos declaram, as garantias fundamentais asseguram. (BRASIL, 1988, art. 5º). 3 No Brasil, a democracia no “Estado De- mocrático de Direito” é chamada de democracia representativa, uma vez que esta é exercida pelos partidos políticos, sendo a Constituição Federal de 1988 seu principal ordenamento jurídico. O conceito de “Estado Democrático de Direito” é oriundo dos princípios básicos do liberalismo: a) defesa da propriedade privada; b) liberdade econômica (livre mercado); c) mínima participação do Estado nos assuntos econômicos da nação (governo limitado); d) igualdade perante a lei (estado de direito), (Dallari, 2003, pg. 94). Tais princípios são pauta inegociável na interlocução com a sociedade civil na garantia de direitos constitucionais. Neste sentido, para os fins do presente trabalho, evidencia-se a ilegitimidade do “Estado de Direitos” pelo seu caráter colonial de poder. 4 A Lei º 9278/2017 ampliou o número de bairros de Salvador de 36 para 163. Com a mudança, as três ilhas que pertencem a Salvador - Maré, Frades/Santo Antônio e Bom Jesus dos Passos - foram oficializadas como bairros, conforme referências. 5 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 20, define os bens da União. 6 O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID, é uma peça técnica administrativa realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, em processos de titulação e regularização fundiária quilombola. 7 Por força da Constituição Federal Brasileira o patrimônio da União pertence a todos os brasileiros e é administrado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Entre as competências da SPU incluem-se, entre outras, a incorporação e regularização do domínio dos bens; sua adequada destinação; além do controle e da fiscalização dos imóveis. Elas estão descritas no art. 31 do Decreto nº. 9.035, de 2017. Já o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma autarquia federal, cuja missão prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. 8 A partir da década de 1950 são implementados na Baía de Todos os Santos, na área de abrangência da Ilha de Maré (Salvador, Simões Filho e Candeias) mais de 250 atividades industriais, com diversas empresas e polos industriais, entre elas a: Petrobras com campos de pesquisa e lavra de petróleo (1940/50); Refinaria Landulfo Alves (1959); Terminal Marítimo de Madre de Deus (1950); Centro Industrial de Aratu (CIA)(1960), Porto Organizado de Aratu-Candeias (1975), Polo Industrial de Camaçari (1978), entre diversas empresas químicas e petroquímicas que exploram o local e atuam nos polos, como a Dow Chemical e a Braskem (Fonte: Dossiê Ilha de Maré, 2015 e sites: https://www.codeba. com.br/eficiente/sites/portalcodeba/pt-br/ porto_aratu.php) 9 O Bem Viver é um conceito originado a partir dos conceitos de sumak kawsay em kichwa e suma qamaña em aymara, traduzidos (aproximadamente) como vida em plenitude, ao conviver, ao estar. Longe de ser um conceito p. 87 uniforme ou definido, a proposta do Bem Viver se apresenta como visões de uma vida harmônica entre seres humanos e natureza, “uma vida que ponha no centro a autossuficiência e a autogestão dos seres humanos vivendo em comunidade”. (ACOSTA, 2016, p.39) Se apresenta também como uma alternativa aos modos de vida capitalistas na perspectiva indígena latino-americana, assumido na constituição da Bolívia e do Equador como os direitos da Mãe Terra. 10 Para mais detalhes sobre a contaminação química, ver “No Rio e no Mar”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XpeSNi1gJmA, conforme referências. 11 O engenho de açúcar Wanderley Pinho, atualmente Museu do Recôncavo Wanderley Pinho é um casarão do período colonial brasileiro, erguido em 1760. Localizado no distrito de Caboto, município de Candeias é considerado um dos poucos locais do recôncavo baiano a ter sua arquitetura original preservada. Mais detalhes em: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Museu_do_Rec%C3%B4ncavo_Wanderley_Pinho. Acesso em 05 de outubro de 2021. 12 p. 88 A ideia de “lugar de fala” é originalmente trazida por Djamila Ribeiro (2012), ao fazer a crítica à colonialidade da produção de conhecimento que invisibiliza saberes e vozes de grupos e sujeitos políticos tratados na sociedade patriarcal capitalista como inferiores. Essa invisibilidade de sujeitos e vozes mantém as mesmas condições históricas e estruturais de opressão. Sendo assim, a ideia do “lugar de fala” tem como objetivo oferecer visibilidade a sujeitos cujos pensamentos foram desconsiderados durante muito tempo. Dessa forma, ao tratarmos de assuntos específicos a um grupo, como racismo e machismo, pessoas negras e mulheres possuem, respectivamente, lugar de fala. Isto é, podem oferecer uma visão que pessoas brancas e homens podem não ter. Desse modo, para a finalidade que o presente trabalho se propõe, evidencia-se na entrevista o “lugar de fala” de Marizélia Lopes, ou ‘Nega’, como gosta de ser tratada, para aprender, entender e respeitar a luta da entrevistada pelo seu território enquanto carácter pedagógico para outras lutas. 13 Para o pensamento decolonial afrodiaspórico a narrativa a partir da ideia de “corpo-política” e “geopolítica” do conhecimento permite a possibilidade de acessar múltiplas e heterogêneas reações e resistências contra as hierarquias raciais, assim como projetos de afirmação e reexistências da população (GROSFOGUEL, 2012, pg.15). A ideia de “corpo-política” do conhecimento que se evidencia aqui encontra muitas referências no feminismo negro brasileiro e anglosaxônico. Parte do corpo da mulher negra como epicentro das demandas sociais e de construção política de direitos. 14 Em 2004 é promulgado o Decreto nº 4887 que regulamenta o artigo 68 da ADCT da Constituição Federal, instituindo instrumentos jurídicos inovadores para o processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas. 15 16 Disponível em:https://www.youtube.com/ watch?v=XpeSNi1gJmA. Acesso em: 27 set. 2021. A Constituição Federal de 1988, no artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) define: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. (BRASIL, 1988, p.143). 17 O Termo de Ajuste de Conduta é um documento utilizado pelos órgãos públicos, em especial pelos ministérios públicos, para o ajuste de condutas contrárias à lei. Na fala de Nega, a mesma se refere ao TAC, promovido pelo Ministério Público da Bahia, firmado entre MPE/BA, INEMA, IBAMA, COFIC, CODEBA, ANTAQ, PARANAPANEMA S.A, BRASKEM e Município de Salvador para regularização do licenciamento ambiental, do Porto Organizado de Aratu-Candeias, em Salvador, na data de 04 dez 2015. 18 INEMA: Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, órgão de licenciamento e fiscalização ambiental do Governo do Estado da Bahia. 19 SEPROMI: Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, órgão do Governo do Estado da Bahia responsável pelas ações afirmativas para o povo negro no estado. 20 SEPPIR: Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Referências AMARAL, C. H.C. Poluição Atmosférica em Comunidades residentes próximas a Áreas Industriais: Um indicativo de injustiça ambiental. Dissertação –Pós-graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021. ARRUTI, J. M. P. A. 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Termo de Ajuste de Conduta (TAC) celebram o MPE/BA, INEMA, IBAMA, COFIC, CODEBA, ANTAQ, PARANAPANEMA S.A, BRASKEM e Município de Salvador para regularização do licenciamento ambiental, do Porto Organizado de Aratu-Candeias. Salvador, 04 dez 2015. MOVIMENTO DOS PESCADORES E PESCADORAS ARTESANAIS (MPP-BA). Dossiê Denúncia da Contaminação Química das Comunidades Tradicionais Pesqueiras e Quilombolas de Ilha De Maré. Ilha De Maré, Salvador – Bahia, 2014. RÊGO, J. C. de V. Ilha De Maré Vista De Dentro: Um Olhar a partir da Comunidade de Bananeiras/ Salvador-Ba. Tese (Doutorado Geografia) – Programa de Pós Graduação em Geografia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2012. SANTOS, A. B. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 - 51, 2018. NO RIO E NO MAR (Documentário). Direção: Jan Willem Den Bok e Floor Koomen. Produção: Krista Nota e Herma Van Boven. 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Posteriormente, os exploradores subiram a Serra de Ouro Preto, inaugurando outras duas formas de extração aurífera, dentro das galerias subterrâneas e pelo desmonte hidráulico. A cidade de Ouro Preto destacou-se pela riqueza aurífera e se destaca pela riqueza expressa em seu conjunto arquitetônico e urbano remanescente do período colonial – com suas ruas de pedra, casarios, palácios e igrejas. Sua “redescoberta” se deu em abril de 1924, ou seja, logo após a semana de arte moderna de 1922, pela caravana denominada Viagem de Descoberta do Brasil que contou com a liderança de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, com afã de construir uma identidade nacional brasileira. Seguidamente, a cidade foi declarada Monumento Nacional em 1933 e, em 1938, seu conjunto urbano foi tombado pelo recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Trata-se, ainda, da primeira cidade a receber o título de patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 1980. A partir de então, foi construído um entendimento sobre Ouro Preto como exemplar histórico da cultura brasileira, sobretudo pela sua riqueza e beleza arquitetônica e urbanística, em especial pelas igrejas barrocas. No entanto, ao vangloriar Ouro Preto por sua riqueza colonial, exaltando suas conquistas e feitos materiais, em especial seu conjunto arquitetônico e urbanístico, ficam ocultados os horrores presentes neste período, incluindo toda a violência (física e simbólica). A escravização de pessoas trazidas do continente africano e outras p. 95 originárias das Américas foi também acompanhada da exploração predatória da natureza. Ouro Preto, por outro lado, também é símbolo das lutas e dos feitos dos povos africanos escravizados. Neste processo de construção histórica sobre os territórios colonizados, objetivando uma interpretação gloriosa da colonização em prol de uma definição de uma identidade nacional, se escondeu a perversidade da colonização, além das contribuições das populações escravizadas na formação do Brasil que conhecemos. No campo teórico, alguns pesquisadores já apontavam para a necessidade de construção de um outro olhar sobre nossa história, como o historiador africanista Alberto da Costa e Silva (2009) ao defender que a “África civilizava a América”, e a historiadora Beatriz Nascimento (1974) dizendo que esta “outra” história só pode ser contada pela população negra. Esses estudos corroboram com a realidade da formação histórica de Ouro Preto: esta cidade (e sua região), só existe como a conhecemos pela riqueza do ouro descoberto e extraído pelos corpos e saberes da população oriunda da diáspora africana. O historiador negro Manuel Quirino (1918) aponta que a descoberta da “primeira folheta de ouro encontrada na margem do Rio do Funil, em Ouro Preto, coube a um preto bandeirante [...] quem quer que releia a história verá como se formou a nação, que só tem glória no africano que importou” (QUIRINO, 1918, p. 148-157). v.2 n.1 p. 92-103 2023 ISSN: 2965-4904 É neste contexto de invisibilizações, tanto das violências coloniais, quanto do apagamento das contribuições dos povos escravizados e afrodescendentes, que surge, e insurge, o Coletivo OuTro Preto, a partir da Mina Du Veloso, bem como das pesquisas nos campos da engenharia, da história e da filosofia sobre o legado da população oriunda da diáspora africana para a construção de Ouro Preto e região, conforme descrito nesta entrevista ao engenheiro civil e militante social Du Evangelista. É sobre uma outra história ouro-pretana, onde se pretende tornar visíveis e superar as violências coloniais e a importância da diáspora africana na cidade de Ouro Preto que o Coletivo OuTro Preto repousa, propondo ressignificar o passado para construir futuros possíveis. OuTro Preto é antes do respiro, a gritante necessidade de transgressão da narrativa histórica oficial. Mais enfaticamente, a junção de forças que nos autoriza e legitima, neste instante, a atear fogo, quebrar paradigmaticamente o estatuto do escravo, que sustenta, até a atualidade, um discurso de verdade oficial que se guia por uma 2 mentalidade racista. Movimento OuTro Preto Até o ano de 2005 constava na bandeira do município de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil, o dizer em latim Proetiosum tamen nigrum, que significa “precioso ainda que negro”, fazendo referência ao aspecto do ouro coberto por óxido de ferro encontrado na região no final do século XVII. Tais dizeres, que perduraram na bandeira desde 1930, foram removidos como resultado da luta de atores do movimento negro da região, uma vez que a expressão à negritude era depreciativa. Este é um exemplo simbólico que as violências coloniais persistem até a atualidade, mas, como em toda a história, tais violências não passaram, e não passarão impunes. No entanto, até mesmo as lutas e vitórias da população negra ouro-pretana ainda hoje sofrem com a usurpação do protagonismo pelos que estão no poder, como contado por Du Evangelista. Ele mostra-nos que as violências não cessaram, como também não cessaram as resistências, sublinhando que o movimento negro e o Coletivo OuTro Preto são, mais do que nunca, necessários. A cidade é nossa! vem MOVIMENTAR nosso território, por uma 3 OUTRA Ouro Preto possível e necessária! Movimento OuTro Preto O chamado acima foi feito em mais um momento de luta do coletivo para discutir os rumos da cidade, numa altura em que iria acontecer uma audiência pública para revisão do Plano Diretor de Ouro Preto. Foram diversos encontros para discutir as reivindicações, o que gerou um manifesto buscando garantir maior participação popular e um direcionamento das políticas urbanas, ambientais e de preservação do patrimônio cultural para resolução dos problemas e anseios da população negra e periférica. p. 97 Neste sentido, e partindo da compreensão de que a luta institucional também seria importante, o Coletivo OuTro Preto organizou recentemente uma candidatura coletiva para a Câmara Municipal de Ouro Preto, que contou com a participação de Du Evangelista, Sidneia Santos, Douglas Aparecido e Freda Amorim, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições do ano de 2018. Apesar de não terem sido eleitos, movimentaram a cena política ouro-pretana, apontando para as questões da negritude e da Serra de Ouro Preto, periferia da cidade, onde estão localizadas as moradias da maioria da população trabalhadora e, também, o lugar onde se situam as antigas estruturas da mineração. É com todo este “caldo” político-cultural que esta entrevista, entende que Ouro Preto, a partir do OuTro Preto, é, sim, uma cidade africana fora da África, pois foi construída por saberes e corpos oriundos do continente africano. O que se reivindica não é só a ressignificação e valorização desta história, mas também que esta cidade seja assumida e valorizadamente preta, porque entendemos que esta, e seu ouro, também lhes foram usurpados, para além da liberdade e vidas de gerações de mulheres e homens africanos. Para iniciarmos nossa conversa, gostaria que você falasse um pouco de como surgiu o Movimento OuTro Preto. 4 p. 98 O Movimento OuTro Preto surgiu após a construção da Mina Du Veloso , um espaço de visitação turística e também centro cultural, no bairro São Cristóvão. Em 2014, quando essa mina já estava em funcionamento e recebendo pessoas do mundo todo, houve um encontro de três ouro-pretanos – que no caso fui eu, Du Evangelista, a Sidnéa Santos e o Douglas Aparecido – de diferentes áreas do conhecimento: eu sou engenheiro civil, a Sidnéa é historiadora e o Douglas é filósofo. E a partir do trabalho na Mina, de revisitar o espaço da galeria, entendê-la como grande obra de arte e de engenharia, a partir de todos os conhecimentos que estão ali dentro, é que nós começamos a conceituar esse movimento, o OuTro Preto. Temos outra visão sobre os povos negros que vieram para o Brasil, que leva em consideração as capacidades e os conhecimentos que eles trouxeram da África para cá. Apesar de todo o processo desumano da escravidão, esses povos trouxeram muito conhecimento que já detinham e já praticavam em suas terras de origem. Eles vêm para cá com todo esse conhecimento e fazem essa obra fantástica de engenharia... Então, a partir do reconhecimento desse espaço, começamos a desenvolver esse conceito de OuTro Preto, dando ênfase aos legados trazidos por esses povos africanos: a importância e o protagonismo dos povos negros, principalmente nas importantes ações de mineração, metalurgia e construção civil. Afinal, toda a cidade de Ouro Preto é construída não só com mãos negras, mas sobretudo com muitos conhecimentos africanos – como por exemplo, a técnica de usar utilizar barro como material de construção (pau-a-pique). Como todas as cidades de origem colonial – construída com base na escravização de populações indígenas e africanas –, Ouro Preto é marcada por um histórico de violências físicas e simbólicas. Como exemplo de violência simbólica, consta que até 2005 a bandeira da cidade carregava os dizeres Proetiosum tamen nigrum – “precioso ainda que negro” –, fazendo referência ao aspecto do ouro coberto por óxido de ferro no final do século XVII. Tais dizeres, que perduraram na bandeira desde 1930, foram removidos como resultado da luta de atores do movimento negro da região, que também denunciam a opressão e a marginalização da população negra e de seus saberes na atualidade. Quais outros exemplos de violências físicas e simbólicas ainda existem na atualidade? Como você avalia estas violências em relação à população negra de Ouro Preto? Apesar do último movimento dessa troca dos dizeres da bandeira, é preciso dizer que esse resultado foi impulsionado pelo movimento negro que se opôs a essa escrita, despertou para esse ponto e fez uma luta no legislativo que forçou o então prefeito Angelo Oswaldo (PMDB) a fazer essa mudança. O problema é que, hoje em dia, o Ângelo Oswaldo se apresenta como o grande realizador dessa redesignação, quando na verdade quem fez todo o trabalho, toda a movimentação e a mobilização foram as pessoas dos movimentos negros de Ouro Preto. Então, mesmo nessa troca dos dizeres da bandeira, houve uma apropriação dessa luta. Outro ponto que a gente pode ver de violência simbólica em Ouro Preto é o da identidade negra negada pelo urbanismo: se você olhar o nome das ruas da cidade, os nomes de ruas valorizando figuras negras são muito poucos, enquanto que vários escravagistas têm nomes de ruas importantes na cidade e são valorizados até hoje pelos órgãos públicos da cidade. Outro aspeto é que a população negra de Ouro Preto de hoje tem muito pouco acesso a informações sobre o legado do povo negro. Desde que lançamos a Mina Du Veloso, a gente vem lutando para reverter isso, mostrando a importância dos povos negros no nosso município, no país e no mundo, porque a diáspora africana levou conhecimentos desenvolvidos ao longo de milênios, na África, para outras partes do mundo e isso nunca é valorizado. p. 99 5 Ouro Preto é uma cidade com 66,7% de população negra (IBGE ). Como estão as condições de vida dessa população negra nos dias atuais? Há heranças do período colonial? As condições são péssimas. Segundo os próprios dados do IBGE, mais de 25% da população da cidade, com esse grande contingente negro, vive abaixo da linha da pobreza, com menos de meio salário mínimo por mês. Essa é a herança desse período de exploração em Ouro Preto, dos negros após a abolição ficarem relegados à sua própria sorte, sem oportunidade. E como fruto, desse processo escravizador, ficou o racismo, que impede que as pessoas negras ascendam socialmente na estrutura econômica e social. Nessa grande massa de pessoas com baixos níveis econômicos, a grande maioria é a população negra. Isso é por causa da herança colonial do racismo. Considerando que a cidade se formou a partir da extração de ouro, tendo sido o seu conjunto arquitetônico e urbanístico representativo do período colonial tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1938, e foi declarada como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1980, como você enxerga as ações institucionais de preservação do patrimônio cultural na cidade? O patrimônio que representa a diáspora africana, como se encontra nesse conjunto? Como vocês avaliam as influências da colonialidade nestas ações? Qual é a paisagem produzida pela colonialidade? Seria possível construir uma outra paisagem das cidades coloniais? O IPHAN é o responsável pela proteção e pela preservação do patrimônio cultural, mas não levou em consideração outros fatores para se fazer a preservação de Ouro Preto. Então a cidade sempre foi patrimonializada a partir de uma visão eurocêntrica dos processos ocorridos, aqui, na região. O IPHAN cuida especificamente para cuidar dessa “pérola barroca fora da Europa”. p. 100 Mas, como diz o Douglas Aparecido, antes de ser uma pérola barroca fora da Europa, Ouro Preto era uma máquina africana de extrair ouro. Esse outro lado da história é muito pouco falado! O patrimônio ligado à história da mineração e à presença dos povos negros em Ouro Preto é totalmente negligenciado e abandonado. Basta ver que todas essas ações de valorização do património ligado à mineração, que são essas antigas minas de ouro abertas à visitação, são iniciativas particulares dos proprietários de terrenos – incluindo a Mina Du Veloso – para valorizar e ressignificar esses espaços para o turismo e a geração de renda, e também para recontar a história do nosso município. As ações do IPHAN em relação ao patrimônio deixado pelos povos africanos, aqui, são praticamente nulas. Por exemplo, desde 2006 foi proposto um parque no Morro da Queimada, e até hoje quase nada foi feito. O Morro da Queimada é um trecho da Serra de Ouro Preto que ficou muito conhecido pela chamada Revolta de Felipe dos Santos – o que, aliás, é outra forma de apagar a presença africana em Ouro Preto, já que, na verdade, se tratou de uma revolta de vários negros que ocupavam esse espaço, dos quais boa parte morreu nessa queimada. Assim, Felipe dos Santos foi tido como mártir e a revolução leva seu nome até hoje, nos livros de história. O Morro da Queimada é uma parte de Ouro Preto que tem muitas estruturas ligadas à mineração e é um verdadeiro parque arqueológico, histórico e cultural. Porém, o IPHAN pouco ou nada faz para preservar essa história. Basicamente, a ação do órgão se restringe à chamada Zona de Proteção Especial (ZPE), não havendo qualquer valorização do entorno. A paisagem construída no período colonial, simbolizada na arquitetura de casarios, na verdade, se expande por toda a serra. Várias marcas que nós temos, nas encostas da Serra de Ouro Preto, são devidas às atividades de mineração, de extração do ouro. Uma outra forma de mostrar as “cidades coloniais” – embora eu não goste desse nome – é voltar no passado antes da invasão europeia. Porque aqui haviam os Cataguases, grandes agrupamentos de pessoas viviam aqui, com uma outra cosmovisão e com uma outra forma de vida na natureza. Ficaram por aqui por milhares de anos... Essa história, que se chama de colonial, é recente. 6 O Manifesto OuTro Preto, publicado no portal Terreiro de Griôs, explica que o ponto inicial do movimento foi a descoberta dessa invisibilização da riqueza e dos saberes oriundos da diáspora africana na história oficial da colonização, os quais foram extremamente importantes para a conformação da cidade de Ouro Preto e para a construção do que chamamos de mundo moderno. Gostaria que você falasse um pouco deste tema e de como a colonialidade contribui para o apagamento das epistemologias africanas no Brasil. Ainda, se você avalia que o pensamento decolonial contribui para romper com o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de “epistemicídio’’. O pensamento decolonial é fundamental para a gente poder desconstruir tudo que o Estado brasileiro nos impôs ao longo do tempo. Auxilia a mostrar que, antes da chegada dos invasores colonizadores, já existia conhecimento em todo esse território e que, com a vinda dos negros africanos escravizados para cá, houve também uma migração de conhecimento muito grande. O problema é que as histórias sempre são contadas pelos dominadores e vencedores. É nessa maneira de contar a história, sem destacar a importância dos outros povos, e apagando esse sujeito, que eles trataram com o escravo e a sua condição de produtor de conhecimento, que acontece o epistemicídio. Aqui mesmo, em Ouro Preto, onde todos os trabalhos foram realiza- p. 101 dos por mãos negras – todos! –, durante todo o processo de formação acadêmica nunca é falado aos estudantes da importância dos povos negros na construção da cidade. Fica parecendo que o negro só serviu como força de trabalho, não trazendo conhecimento algum... Quando a gente começa a pesquisa na Mina Du Veloso, vai entendendo que todas as técnicas e todos os conhecimentos para extrair esse metal precioso da terra, vêm com os povos negros, que já eram detentores desse saber, a mineração, lá na África e não o perderam durante a travessia tenebrosa do Atlântico. Chegando aqui, eles vão deixar esse patrimônio escavado e esculpido em rocha, a materialidade dessa genialidade africana. No bairro de São Cristóvão, há diversos pontos onde a gente pode ver todas as estruturas da mineração que mostram a engenharia e o conhecimento para escavar aquedutos por quilômetros para transportar água por efeito da gravidade, para fazer o desmonte da encosta para poder acumular o material, para a apuração do ouro mais fino que a gente tem dentro das rochas (uma espécie de ouro em pó do qual para fazer a separação da massa mineral precisa haver um conhecimento muito grande). Todo esse conhecimento foi sendo lapidado ao longo de milênios lá na África. Isso está aqui, no nosso território, mas nunca é mostrado: é por esse epistemicídio, que tiraram do negro e dos povos indígenas as suas contribuições para nossa cultura e para nossa sobrevivência. Como engenheiro civil, eu estudei na Escola de Minas da UFOP e, lá dentro, durante meu período de graduação, nunca fui apresentado à história dessa forma. Sempre se falava que saía muito ouro aqui de Ouro Preto, que o ouro saía dessa ou daquela forma, mas não se falava quem havia trazido essa contribuição, o conhecimento para poder lidar com um metal tão nobre e que ao longo de toda a história da humanidade fascinou e fascina o ser humano. Esse ser, que lida com o ouro, não pode ter a história contada da forma como vem sendo contada nos livros oficiais da história oficial, nos quais o negro é sempre tratado no segundo plano, como um ser inferior e sem condições de produzir conhecimento e ciência. O movimento OuTro Preto, então, tem como objetivo básico e principal, essa ressignificação, para que possamos entender que somos descendentes de pessoas que tinham conhecimentos fantásticos na engenharia e na arquitetura. p. 102 Notas 1 O Manifesto OuTro Preto foi acessado em 07/03/2022: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html 2 O Manifesto OuTro Preto foi acessado em 07/03/2022: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html 3 Manifesto do Coletivo OuTro Preto apresentado na Audiência Pública para discussão da revisão do Plano Diretor do município de Ouro Preto pode ser acessado em sua página do Instagram: https://www.instagram.com/ outro_preto/ 4 5 http://minaduveloso.com.br/ Dados extraídos do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Acessado em 12/01/2021: https:// sidra.ibge.gov.br/Tabela/3175 6 O Manifesto OuTro Preto foi acessado em 12/01/2021: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html p. 103 artigos A presença negra no interior paulista - Brasil Joana D’Arc de Oliveira IAU / USP Vitor Daniel Menck IAU / USP A presença negra no interior paulista - Brasil Resumo Este trabalho analisa a presença negra no interior paulista tendo como objetos de observação e interpretação os municípios de São Carlos e Americana. Para tal, aborda a presença das africanidades na história e cultura brasileira, destacando as ações empreendidas pelo Estado e pelas elites nacionais, para estereotipar, marginalizar, criminalizar e subjugar as populações negras. Destaca as ações de resistências empreendidas por homens e mulheres negros para garantirem sua subsistência e a manutenção de seus saberes culturais. As análises pautam-se num referencial teórico interdisciplinar, que transita na arquitetura, urbanismo, geografia e história e também em dados angariados por meio do emprego da história oral. Por fim, descortina as histórias, estratégias e memórias das populações negras comumente ocultadas. Palavras-chave: Presença negra. Memórias Negras. Territorialidades Negras. São Carlos-SP. Americana-SP. La presencia negra en el interior de São Paulo - Brasil Resumen Este artículo analiza la presencia negra en el interior de São Paulo teniendo como objetos de observación e interpretación los municipios de São Carlos y Americana. Para ello, aborda la presencia de las africanidades en la historia y la cultura brasileñas, destacando las acciones realizadas por el Estado y las élites nacionales para estereotipar, marginar, criminalizar y subyugar a las poblaciones negras. Destaca las acciones de resistencia emprendidas por hombres y mujeres negros para asegurar su sustento y el mantenimiento de sus conocimientos culturales. Los análisis se basan en un marco teórico interdisciplinario, que atraviesa la arquitectura, el urbanismo, la geografía y la historia, y también en datos recopilados mediante el uso de la historia oral. Finalmente, desvela las historias, estrategias y recuerdos de las poblaciones negras comúnmente escondidas. Palabras clave: Presencia negra. Recuerdos negras. Territorialidades negras. São Carlos-SP. Americana-SP. The Black presence in the interior of São Paulo - Brazil Abtract This paper analyzes the black presence in the interior of São Paulo having as objects of observation and interpretation the municipalities of São Carlos and Americana. To this purpose, it addresses the presence of Africanities in Brazilian history and culture, highlighting the actions taken by the State and national elites to stereotype, marginalize, criminalize and subjugate black populations. It highlights the actions of resistance undertaken by black men and women to guarantee their livelihood and the maintenance of their cultural knowledge. The analyzes are based on an interdisciplinary theoretical framework, which runs through architecture, urbanism, geography and history, and also on data collected through the use of oral history. Finally, it unveils the stories, strategies and memories of black populations commonly hidden. Keywords: Black presence; Black Memories; Black Territorialities; São Carlos-SP; Americana-SP. Introdução bordar as heranças africanas nas culturas materiais e imateriais nos países da América Latina tem sido algo recorrente na atualidade, porém quando nos referimos às áreas de arquitetura e urbanismo destacamos que tais abordagens ainda estão em fase inicial e necessitam de ampliação. Contribuindo para esse processo, vimos desenvolvendo análises do espaço urbano, a partir de uma perspectiva africanista e decolonial, identificando e registrando a presença negra no interior paulista. A No intuito de compreender as características socioculturais de herança africana que colaboraram para o desenvolvimento do Brasil, analisamos o continente africano a partir de uma visão decolonial, rompendo com a abordagem colonialista e estereotipada que reduz o continente a aspectos negativos. A África é 1,7 vezes maior que a América do Sul e é demograficamente dividida em duas regiões, separadas pelo Deserto do Saara. Ao norte, tem-se a África Branca ou África Árabe, onde vivem os árabes-berberes, e ao sul tem-se a África Negra, de onde vieram os negros para o Brasil e, portanto, foco deste artigo. Diversas sociedades e etnias compõem o continente e cada uma possui sua individualidade cultural, onde são faladas mais de mil línguas. Munanga (2009) explica os conceitos de sociedade, cultura e sua relação. Como sociedade considera-se um grupo de pessoas autossuficientes e cumpridoras de suas necessidades materiais e psicológicas, formando uma unidade com limites bem definidos. Já por cultura, o autor define: v.2 n.1 p. 106-131 2023 ISSN: 2965-4904 Uma cultura é um conjunto complexo de objetos materiais, comportamentos e ideias, adquiridos numa me- dida variável pelos respectivos membros de uma dada sociedade. As duas entidades são correlativas: uma sociedade não poderia existir sem cultura, essa herança coletiva transmitida de geração em geração e que permite aos descendentes não poder reinventar todas as soluções. Uma cultura supõe a existência de um grupo que a cria lentamente, a viva e a comunique (MUNANGA, 2009, p.29). Segundo Weimer (2014), etnograficamente a população africana está dividida em oito grandes linhagens: os nilotas, os hamitas, os nilota-hamitas, os sudaneses, os bacas, os bantos, os koikoi e os san. No contexto brasileiro, os processos de mestiçagem dos africanos escravizados tornam difícil discernir a origem étnica das populações afrodescendentes do Brasil atual, porém é possível fazer uma análise a partir das semelhanças das contribuições culturais e linguísticas africanas que resistiram até os dias de hoje. Os povos com maior presença no Brasil foram os bantos e sudaneses, com destaque aos bantos por chegarem primeiro e em maior número, cujos povos compõem a África Central e Austral (Camarões, Gabão, Congo, República Democrática do Congo, Zâmbia, Zimbábue, Namíbia, Moçambique e África do Sul). Foram eles os responsáveis pela reconstrução do modelo africano de “quilombo”, que vem de kilombo e remete a uma instituição sociopolítica e militar que no Brasil era uma forma dos escravizados e livres se oporem à estrutura escravocrata pela implantação de outra estrutura política. Dentre as diversas contribuições materiais e imateriais bantas, Munanga cita as vastas contribuições na língua portuguesa falada no Brasil, cujo vocabulário apresenta muitas palavras de origem banto que são utilizadas sem consciência de sua origem por todos os brasileiros, como bunda, quitanda, caçula, marimbondo, quiabo, jiló e cachimbo, além da contribuição religiosa com o candomblé da Bahia que se espalhou por todo território nacional. Na cultura material, os bantos e sudaneses deixaram diversas contribuições, como instrumentos musicais: tambores de jongo (tambor e candongueiros), ingono ou ingomba, zambé, cuíca e urucungo. Na escultura, os bantos deixaram suas marcas nas figas de madeira e nos objetos de ferro. Na mineração eles introduziram a bateia. Elementos culturais bantos estão presentes também nos congos, quilombos, coco, jongo, maculelê, maracatu, bumba-meu-boi e capoeira, destacando-se o samba, um dos gêneros musicais populares mais conhecidos e que constitui uma das facetas da identidade cultural brasileira. p. 111 Weimer (2014) ressalta que, na arquitetura, a imigração forçada de negros africanos reduziu e simplificou as diversas tipologias habitacionais presentes no continente africano, porém resistiram diversos aspectos dos costumes, principalmente os relacionados às atividades ao ar livre e o emprego da taipa. A história do Brasil é marcada por uma série de conflitos entre a população negra africana detentora de saberes e a população branca europeia exploradora, além dos povos nativos. Segundo Cunha (2019), os processos de formação básica da cultura nacional ocorreram de forma diferente para a população africana devido às ações de opressão exercidas pelos portugueses à remanescente cultura e tradição africana. Um desses processos está diretamente ligado à urbanização brasileira no século XX, que conserva relações de poder herdadas do sistema escravista criminoso, readaptando-o ao período do pós-abolição, quando foram criadas políticas que desqualificaram as populações negras da cidade e fortaleceram as estruturas de poder da população branca. Na contemporaneidade, 85% da população brasileira vive em meio urbano, que se configura como lócus de intensas e conflituosas relações sociais. Devido à lógica urbanística e certas políticas públicas que ignoram a existência e/ou as particularidades da população negra, esta é colocada em um processo de desqualificação social e marginalização espacial. Os lugares da população negra são lugares fora das ideias do pensamento urbanístico brasileiro por diversas razões e tem como consequência uma política pública de prejuízos sociais, econômicos, culturais, políticos e educacionais para esse grupo. (CUNHA, 2019, p.22). Nesse contexto, surge o tema dos bairros e cidades negros que, segundo Cunha (2019, p. 10) são “áreas geográficas de existência de formas de vida da população negra, obstruídas e limitadas pelas estruturas do racismo estrutural antinegro”. É na cidade e nos bairros que são produzidas a identidade individual e a coletiva, mas atreladas à tradição eurocêntrica, afastando, desde a abolição, traços da cultura e tradição negra. p. 112 A urbanização brasileira imprime conceitos europeus que formalizam uma dualidade entre centro e periferia, caracterizada por um “não lugar” em que é escassa a presença do planejamento urbano, dos equipamentos e espaços públicos. É nesses espaços que se concentra a população negra sob nomes como cidade clandestina, cidade irregular, cidade informal, cidade periférica, como um processo sistemático de inclusão precária das populações negras na sociedade brasileira. Segundo Chalhoub (2004), as cidades brasileiras no pós-abolição eram espaços de notável presença negra devido ao grande número de trabalhadores e comerciantes antes escravizados, que ocupavam espaços de uso coletivo, como as habitações denominadas como cortiços. As políticas sanitaristas advindas das dificuldades higiênicas desses espaços e as epidemias serviram de pretexto para justificar as remoções sistemáticas dessas populações dos centros urbanos, transferindo-os para áreas periféricas desprovidas de sistemas públicos. Nesse sentido, foram definidos lugares como sinônimos de áreas de maioria afrodescendente, como é o caso de mocambos, arrabaldes, favelas, alagados, palafitas e outras denominações. (CUNHA, 2019). Com o processo abolicionista em andamento, foram trazidos milhares de imigrantes europeus, de maioria italiana, para “substituir” a mão de obra negra escravizada, acompanhada de um discurso progressista de que europeus civilizados trariam sua cultura para ajudar a desenvolver a nação, além de formular uma teoria racial onde a população europeia etnicamente superior iria, através da miscigenação, branquear a população. As metas da política da república eram impor uma nação homogênea, moderna, no sentido europeu e sem antagonismos entre a população negra e branca, eliminando as marcas do passado do escravismo criminoso e ignorando os conflitos acumulados durante a sua existência, sem, contudo, fazer nenhuma concessão política, econômica ou social às “classes sociais” afrodescendentes herdeiras desfavorecidas do regime político passado. (CUNHA, 2019, p. 33). Entre todas as perseguições sofridas pelas populações negras nesse processo, destaca-se a forma como sua tradicionalidade e cultura foram reprimidas e criminalizadas, muitas vezes por forças policiais que as caracterizavam como baderna, desordem, degeneração moral, atraso social, pois estavam distantes do ideal da civilização europeia. Tais perseguições se estendiam às práticas religiosas do Catimbó, Candomblé e Umbanda, além de formas de socialização como batuques, samba, pastoris, maracatus, bumba meu boi, marabaixo, maxambombas, mamolengos, teatro de rua e danças em salões. p. 113 Não há espaço na cidade civilizada de maneira europeia para a presença africana, isso se manifesta, segundo Rolnik (1989), em um código de posturas municipal (de São Paulo), em 1886, que proíbe diversas práticas presentes nos territórios negros da cidade, como as quituteiras, pois “atrapalham o trânsito”; os mercados devem ser transferidos, pois “afrontam a cultura e conspurcam a cidade”; os pais-de-santo não podem trabalhar, pois são “embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural.” É importante ressaltar que os negros não foram seres passivos nesses processos. Desde o período escravista já se organizavam em sociedades e irmandades negras que se consolidaram no pós-abolição com atividades culturais e recreativas, incluindo publicações em jornais, produção literomusical e teatral, passeios, piqueniques e bailes em fins de semana em salões alugados ou em sedes próprias. Foram eles os principais responsáveis pelo desmanche da escravidão e pela conquista de seus espaços no pós-abolição e por, mesmo diante dos inúmeros projetos de exclusão, manterem vivas muitas das tradições e traços culturais africanos que formulam uma das principais bases culturais do país. Nessa perspectiva, tornam-se fundamentais os mapeamentos e registros das estratégias culturais e territoriais empreendidas por negros e negras após o fim do sistema escravista. Frente aos projetos de exclusão e marginalização empreendidos pelo Estado e sociedade civil branca, esses homens e mulheres desenvolveram um rol variado de estratégias de resistência. Nas Américas, onde outrora foram escravizados, estes sujeitos se apropriaram de parcelas dos territórios urbanos e rurais para edificarem seus espaços de morar e neles puderam manifestar suas crenças, tradições e práticas culturais. Para além dessas manifestações, esses territórios se consolidaram como quilombos, onde a organização interna proporciona a subsistência, a proteção e os ensinamentos religiosos e culturais. Neste artigo, apresentamos o mapeamento da presença negra no espaço urbano, tendo como objetos de análise os municípios de São Carlos e Americana. Ambos os municípios localizados no interior do Estado de São Paulo (ver Figura 1. p. 114 Figura 1 - Mapa de Localização dos Municípios de São CarlosSP e Americana-SP. Fonte: Vitor Menck, 2021. São Carlos: história e presença negra O município de São Carlos integrava, em meados do século XIX, o promissor Oeste Paulista no que tange à produção cafeeira e, assim como outros locais, empregou a mão de obra escravizada para os trabalhos na lavoura e no espaço urbano. Com as proibições ao tráfico transatlântico de escravos, os fazendeiros recorreram ao tráfico interprovincial, tendo no Estado da Bahia seu maior mantenedor. Mesmo que já houvesse experiências com outras formas de trabalho, o negro escravizado foi fundamental para o funcionamento do sistema econômico e social do município. Emília Viotti da Costa (1998) afirma que a maioria das fazendas abertas no Oeste paulista, já nos idos de 1860, continuou a usar escravos como a principal força de trabalho. Na mesma perspectiva, Warren Dean (1977) aponta que a convivência do trabalhador contratado e o escravo não impediram que o número de escravos aumentasse consideravelmente em Rio Claro, o que também pode ser observado em São Carlos, pois em 1874 o número de escravos era de 1.568, passando para 2.464 em 1877. Oito anos depois, de acordo com “Apuração Geral da População Escrava da Província de São Paulo”, de 1885, São Carlos possuía um total de 3.725 escravos, sendo destes 2.228 homens e 1.498 mulheres. p. 115 No pós-abolição, ao escolher o espaço urbano para vivenciar a sua liberdade arduamente conquistada, como nos apontam inúmeros historiadores, tanto o homem negro como a mulher negra tiveram que elaborar uma série de estratégias de resistência para driblar a conjuntura social, política, econômica e cultural excludente que se solidificou com o fim da escravidão. A conquista de direitos e a afirmação da cidadania tornaram-se um exercício diário para esses sujeitos que elaboraram e reelaboraram mecanismos de integração e defesa. O exercício da autonomia e a liberdade de ir e vir representavam, sem dúvida alguma, a vivência da liberdade para os libertos que, tanto no meio urbano como no rural, adotaram ocupações e modos de vida apoiados em seus anseios, conhecimentos e experiências. Em São Carlos, não podemos afirmar quantos negros escolheram a cidade ou o campo imediatamente após a abolição do sistema escravista, pois não possuimos nenhum documento que registre tais informações. Porém, dezenove anos depois, apoiados no Recenseamento Populacional de 1907, levantamos que dos 38.642 indivíduos recenseados no município, 4.816 foram declarados negros, sendo 3.815 pretos e 1.001 mulatos, ou seja, 12% da população são-carlense era formada por negros. Esse percentual pequeno, em comparação ao número de indivíduos de cor branca, encontra explicação em diversos fatores, dos quais Walter Fraga Filho (2006) aponta, para o caso da Bahia, mas que pode ser plenamente vislumbrado em São Carlos: o anseio da população negra após a abolição em retornar para sua terra natal, ou para onde estavam presentes membros de suas famílias, cruelmente separados pelo tráfico interprovincial que sustentou notadamente a escravidão no interior paulista até às vésperas da abolição. Outro elemento que contribuiu para o aumento da população branca e a diminuição da negra foi a imigração europeia, fortemente impulsionada pelo Estado e os fazendeiros locais, preocupados com a substituição da mão de obra escrava, mas também movidos pelo desejo de branqueamento da população brasileira. De qualquer maneira, no total, havia uma presença significativa de negros em São Carlos em 1907 e dos 4.816 indivíduos, 3.487 moravam no meio rural, exercendo inúmeras atividade nas diversas propriedades agrícolas do município ou como pequenos proprietários rurais, e 1.329 moravam no espaço urbano, ocupando um rol diversificado de profissões. p. 116 Como podemos perceber, a população negra que habitava o município de São Carlos em 1907 estava majoritariamente concentrada no meio rural, demonstrando que o campo também era uma opção de escolha para esses sujeitos, que podiam permanecer e voltar de acordo com suas vontades e necessidades. Segundo Hebe Mattos (1987), os negros libertos eram atraídos pela vida no campo por diversos fatores, dentre eles o desejo pela manutenção da família, dos laços de parentesco e amizade, o cumprimento de acordos e contratos trabalhistas, o conhecimento dos serviços executados, o acesso à moradia e a um pequeno pedaço de terra para plantações de alimentos e criação de animais, que eram usadas para o consumo familiar e, em alguns casos, também comercializadas. No munícipio, estes fatores certamente influenciaram os 3.487 indivíduos a optarem pela vivência de suas liberdades no meio rural, colocando por terra o discurso de que os negros deram preferência à vida no meio urbano no pós-abolição. Isso, porém não significa que ex-escravos de São Carlos tenham permanecido no campo após a abolição, pois os negros que habitavam o meio rural em 1907 podiam perfeitamente ser migrantes que para cá vieram motivados por inúmeros fatores. De qualquer maneira, acreditamos ser de extrema valia conhecermos os motivos que levaram uma pequena parte da população negra a escolher a cidade. Em 1907, o município de São Carlos era regido pelo Código de Posturas que foi aprovado em 1905. De acordo com Renata Priore Lima (2008), esse código foi definido pela lei municipal de número 58 e mantinha muitos aspectos dos Códigos anteriores, trazendo, no entanto, uma mudança, segundo a autora, muito significativa para a cidade, a saber, o estabelecimento dos limites da área rural e urbana, sendo esta última subdividida em cidade e subúrbio. A cidade neste período já contava com alguns loteamentos mais populares, distintos e afastados dos espaços ocupados pela elite local e que perfaziam os arredores da igreja matriz, os quais, segundo Bortolucci (1991), eram ocupados por majestosos casarões ecléticos dos barões do café que ali mesclavam costumes rurais e urbanos. Para as classes mais pobres foram criados, logo após a abolição da escravidão, os bairros Vila Nery, Pureza e Izabel, os quais, a nosso ver, surgiram em resposta ao medo das elites de que ocorresse uma migração em massa dos libertos para o espaço urbano com o fim da escravidão. Assim, evitando que eles ocupassem a região central, trataram logo de lotear espaços distantes para que os mesmos pudessem se estabelecer longe do perímetro elitizado. Certamente foi a partir da preocupação com o “perigo” que os libertos representavam para a elite branca, como destacou Maria Helena Machado (2010) em seu livro “O Plano e o Pânico’’, que surgiram os primeiros loteamentos no município, desprovidos de qualquer tipo de infraestrutura e embelezamento. De acordo com Recenseamento Populacional produzido em São Carlos em 1907, o espaço urbano do município era formado pelos bairros Centro, Vila Izabel, Vila Pureza, p. 117 Vila Nery, Botafogo e Subúrbios, os quais agregavam, em maior ou menor número, homens e mulheres negros, que somavam 47% dos moradores na Vila Pureza, 41,71% na Vila Izabel, 30,13% na Vila Nery, 12,43% no Centro e 12,27% nos subúrbios. Ocupavam, assim, em maior ou menor número, todo o espaço urbano, se concentrando, porém, com maior representatividade nos bairros Vila Pureza, Vila Izabel e Vila Nery. Desses bairros, homens e mulheres deslocavam-se diariamente para exercerem suas atividades profissionais na região central da cidade. Comumente desempenhavam atividades informais, tendo em vista que o racismo estruturante vigente fechava as portas ao trabalho formal para a maioria da população negra. Diante desse cenário, eram eles sapateiros, pedreiros, marceneiros, cozinheiros, vendedores ambulantes; e elas, lavadeiras, empregadas domésticas, vendedoras ambulantes, dentre outras. Vale salientar que, apesar de ocuparem espacialmente locais distintos no espaço urbano de São Carlos, os homens e mulheres negros compartilhavam trajetórias similares e driblavam a sociedade republicana, tão racista quanto a imperial e a colonial. Os desafios que se colocaram eram materializados nas dificuldades de acesso ao trabalho formal, à educação e a outros direitos básicos, como saúde, moradia e alimentação. Eram destinadas aos negros e negras as atividades consideradas degradantes pelos brancos nacionais e muitos imigrantes. Além disso, enfrentavam a perseguição e criminalização de suas crenças, hábitos e práticas culturais. Estas, porém, como nos sugere vasta documentação, eram realizadas tanto no espaço doméstico como no espaço da rua. A rua era considerada o espaço da liberdade, mas de uma liberdade controlada, cerceada, constantemente monitorada. Mesmo assim, negros e negras recriaram seus espaços de vivência e encontros no espaço urbano, tais como clubes negros, escolas de samba e igrejas de santos negros. Dos locais negros da cidade de São Carlos - SP que podiam ser usufruídos podemos destacar a Igreja de São Benedito (ver Figura 2) que, além de ser um espaço destinado aos cultos católicos, era o local para a realização do footing negro em seu adro. Inaugurada no final do século XIX, foi um dos primeiros lugares negros urbanos registrados no município. Símbolo da cultura e da resistência negras, ela foi cogitada pela irmandade de São Benedito. Sobre a sua fundação, nos conta a historiadora Leila Massarão (2013, p.1): p. 118 Em 1890, João Antônio Xavier, sacristão da Matriz e responsável pela Irmandade de São Benedito solicitou à Câmara Municipal a doação do terreno para a cons- trução de uma capela em homenagem ao santo. Efetivada a doação teve início a construção da capela, com trabalhadores negros e brancos trabalhando conjuntamente e sob a coordenação do construtor italiano Domingos Marra. Em 1892, porém, por falta de recursos a obra foi paralisada, sendo retomada pouco depois pelos esforços em angariar doações do Tenente Francisco Cabral e Benedito José Gomes (ex-escravo, devoto de São Benedito). A primeira capela de São Benedito foi, assim, inaugurada em 30 de junho de 1897. Figura 2: Igreja São Benedito. Fonte: Acervo FPMSC. São Carlos. A praça de São Benedito, que abrigava a igreja e o jardim envoltório, tornou-se espaço de encontro da população negra, que passou também a frequentar o Cine Teatro São José, inaugurado nas primeiras décadas do século XX, defronte ao pátio da igreja. Vale salientar que esses locais também eram frequentados por brancos, majoritariamente imigrantes, que estabeleciam relações mais amistosas com os negros e negras da cidade. p. 119 Figura 3: Baile de carnaval no Clube Flor de Maio, década de 1960. Acervo Odila dos Santos Aguiar. p. 120 Figura 4 - Vista do Casarão do Salto Grande. Fonte: Vitor Menck, 2021. Além da igreja, diante da impossibilidade de frequentar os clubes brancos locais, foram inaugurados alguns clubes negros na cidade, que culminaram na fundação do Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio no ano de 1928 (Ver Figura 3). Foram responsáveis por sua criação trabalhadores negros empregados na Companhia Paulista de Estradas de Ferro. A construção de sua sede, cuja pedra fundamental foi lançada em 15 de novembro de 1948, demarcou espacialmente a consolidação do clube na cidade. Nesse local, negros e negras, divertiam-se nos finais de semana, em dias festivos e datas comemorativas. Dentre os eventos marcantes estavam o carnaval e o concurso de rainha do clube. Além disso, assim como grande parte dos clubes negros no país, o Flor de Maio atuou diretamente no desenvolvimento educacional de seus frequentadores. O Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio, fundado na cidade de São Carlos no dia 4 de maio de 1928, é sem sombra de dúvidas a materialização local desta injunção – da luta social dos afrodescendentes e da Companhia Paulista de Estradas de Ferro – que tanto contribuiu, material e simbolicamente, para o desenvolvimento de nosso município. Sua idealização e edificação representam não só um importante capítulo da história da população negra em São Carlos como também do papel social desempenhado pelas companhias ferroviárias no interior paulista através da conformação de uma “elite negra” mais cônscia de seus direitos e valores. Desempenhando um papel fundamental no processo de ressocialização e afirmação cultural da população negra na cidade de São Carlos, o Grêmio desde cedo ultrapassou o aspecto meramente recreativo e demonstrou sua vocação educacional e inclusiva, criando, ainda na década de 1930, uma escola de ensino primário aberta também para a população não afrodescendente (LOPES, 2011, p.1). Por mais que esses locais fossem usados por uma parcela significativa da população negra, vale destacar que era no espaço doméstico, formado pela casa e quintal, que esses sujeitos encontravam espaço para manifestarem suas crenças, culturas e transmitir os seus saberes. A configuração do quintal como um lugar de resistência da gente negra é discutida no livro “Da senzala para onde? Negros e negras no Pós-abolição em São Carlos-SP (1880-1910)” (OLIVEIRA, 2018). p. 121 Figuras 5 e 6: Engenho Salto Grande. Fonte: Hércules Florence, 1843. Aquarela sobre papel. Coleção Cyrillo Hercules Florence. p. 122 Por fim, podemos afirmar que esses sujeitos se estabeleceram para além dos limites definidos pelas elites brancas e se apropriaram dos espaços das ruas, de alguns espaços públicos da cidade e de seus espaços de morar. Driblando uma constante conjuntura de discriminação e marginalização racial e espacial, eles se fixaram no núcleo urbano de São Carlos, fomentando a economia e a cultura locais, ainda que suas vivências estivessem mais restritas aos seus pares. Americana: história e presença negra Americana surge por volta de 1777 como distrito de Campinas, a partir de um povoamento nas áreas férteis entre os rios Jaguari e Atibaia, que formam o rio Piracicaba, onde vão sendo plantadas lavouras de cana-de-açúcar. Em 1799, a coroa portuguesa faz a doação da sesmaria da região, chamada de Salto Grande, a Domingos da Costa Machado, que durante as décadas seguintes dividiu suas terras entre seus herdeiros e vendeu outras áreas. Nessas terras foram construídas diversas fazendas, das quais a principal delas era a Fazenda Salto Grande (Ver Figura 4), no território adquirido por Manoel Teixeira Vilela. Tal propriedade foi edificada em 1810, por mão-de-obra negra escravizada em taipa-de-mão e taipa-de-pilão, para a armazenagem de cana-de-açúcar. Estima-se que a Fazenda Salto Grande chegou a abrigar 223 negros escravizados, uma das maiores da região, ainda que no inventário de Antônio Manoel Teixeira, filho de Manoel, constem mais de 400 escravizados (TREVISAN et al., 2019). Pouco se sabe sobre a trajetória dos negros escravizados trazidos por Manoel Teixeira Vilela, mas é possível afirmar suas atuações na formação econômica da cidade, além de sua presença nas atividades agrícolas e outros serviços. Segundo a União de Negros pela Igualdade (UNEGRO,2017), com a chegada dos imigrantes italianos para trabalhar nas lavouras, as senzalas adjacentes ao casarão foram destinadas a eles, colocando os negros em choças de pau a pique mais distantes que a senzala. Carlos Lemos (1999) apresenta em seu livro “Casa Paulista” importantes reflexões acerca do então Engenho Salto Grande, o qual ele define como o único remanescente do que chama de “sobrado ortodoxo”, que teria um programa incomum, sendo o térreo reservado para serviços e o pavimento superior à moradia isolada. O autor também descreve as aquarelas feitas por Hércules Florence, em 1834, como observado nas figuras 5 e 6, que representam o engenho em pleno funcionamento. Pelo lado externo pode-se observar “...uma tropa de burros, certamente à espera das caixas de açúcar fabricado no engenho, cujas chaminés estão fumegando e dizendo que as fornalhas estão acesas para o sofrimento dos escravos à volta dos tachos” (LEMOS, 1999, p. 84), já pelo lado interno justamente os escravos trabalhando nas fornalhas. Desde 1977 o casarão sedia o “Museu Histórico e Pedagógico Municipal Doutor João da Silva Carrão”, porém muito se questiona sobre seu caráter “histórico e pedagógico”. Em 1 entrevista concedida aos autores, Claudia Monteiro da Rocha Ramos , representando a p. 123 UNEGRO de Americana, conta como o espaço possui um projeto de ensino, didática e metodologia que não aborda a história do negro e do indígena, mas sim a do europeu. Lá você encontrava só a vestimenta, que agora nem tá mais aberto o museu, só os móveis, e só uns instrumentos de utensílio da população branca, e aí o que tinha do negro lá, um pelourinho que foi implantado lá dentro do casarão, que não era nem o lugar, e aí que raio de história é esse de museu pedagógico? (RAMOS, 2021, sp). Retomando a história de formação da cidade, passamos para os tempos do café. Com o rápido avanço das lavouras cafeeiras entre os anos 1840 e 1870 pela região conhecida como Velho Oeste Paulista (que compreende as cidades de Campinas, Limeira, Rio Claro e São Carlos), alguns sistemas começam a se formar na região, como a mecanização agrária, os sistemas de armazenamento das fazendas, surgindo a necessidade de um transporte mais rápido da região para o Porto de Santos. Nos anos 1860 surge no Brasil grande incentivo na produção algodoeira, devido às demandas das fábricas inglesas que têm seus estoques prejudicados pela Guerra de Secessão nos Estados Unidos, que ocorreu entre 1861 e 1865. Com o fim da guerra, os americanos voltaram a exportar algodão para a Inglaterra, tomando o lugar do Brasil no mercado internacional e, assim, provocando o surgimento das primeiras fábricas de tecido no interior do estado de São Paulo para suprir a oferta de algodão. Além disso, a abolição da escravidão nos Estados Unidos provoca descontentamento em muitos americanos sulistas que decidem emigrar para o Brasil, incentivados pelo Império Brasileiro que tinha interesse em causar o branqueamento da população. Nesse contexto, uma série de fábricas de tecido vão surgindo na região, das quais a principal é a Fábrica de Tecidos e Vila Operária Carioba (nome que significa “pano branco” em tupi-guarani). Existem evidências de que houve trabalho escravo em Carioba. Segundo Ribeiro (2005, p.45), “localizou-se no Arquivo do Centro de Memória da Unicamp, um importante documento sobre locação de escravos, datado de 1887”, referente aos proprietários da fábrica de tecidos, Clemente Wilmot, e da Fazenda Machadinho, de Basílio Bueno Rangel. p. 124 O documento citado refere-se ao adiantamento que o Senhor Clement Wilmot fazia para a alforria de nove escravos, sendo cinco homens e quatro mulheres, pertencentes aos senhores Basílio e José Bueno Rangel, proprietários da Fazenda Machadinho. A transação foi feita mediante o contrato no qual os escravos se obrigavam a trabalhar durante três e quatro anos na Fábrica de Tecidos Carioba, nos dias úteis, recebendo em troca: moradia, alimentação e cuidados médicos, quando necessários (RIBEIRO, 2005, p.45). Existem, ainda, registros sobre o pós-abolição dos negros de Americana, que se dividiram entre ficar trabalhando nas fazendas, praticando lavouras de subsistência, ou se dirigindo aos centros urbanos, ocupando postos de trabalho periféricos. A fábrica de tecidos Carioba encerra suas atividades em 1896 e permanece fechada até 1901, quando é arrematada pelo alemão Franz Müller, sendo reinaugurada no ano seguinte. Segundo a UNEGRO (2017), relatos apontam que a presença negra em Carioba se torna menos frequente nessa época, pois a nova família não gostava de “gente de cor”, tendo pouca oportunidade de trabalho na fábrica, demonstrando que, assim como em grande parte do território nacional, a maioria da população negra no pós-abolição foi alijada dos trabalhos formais. No que tange à ocupação da população negra no pós-abolição, em entrevista, Claudia Monteiro nos conta que as informações sobre quais espaços ocuparam são muito fragmentadas, mas há relatos de que os negros moraram no bairro Conserva em meados do século XIX, pois eram a mão de obra na construção dos trilhos da linha férrea, que passa ao lado do bairro. A única ocupação negra notável no centro foi na rua Capitão Corrêa Pacheco, uma rua curta que foi conhecida como Pito Aceso, porém posteriormente essas famílias negras foram expurgadas do local, que hoje é uma rua comercial do centro. Dadas tais informações, buscamos mapear os bairros que atualmente possuem maior concentração de população negra na tentativa de compreendermos como ocorreram, historicamente, os deslocamentos internos consequentes das expulsões citadas. A partir da entrevista com a UNEGRO, pudemos ilustrar essa ocupação com o mapa na figura 7. De modo geral, observa-se que os bairros que possuem maior concentração da população negra se encontram nas periferias da cidade, isto é, afastados do centro em todas as direções, nos limites da cidade. Dentre os bairros mapeados, destacamos três: o Jardim dos Lírios, a Vila Mathiesen e o Antônio Zanaga. Os bairros vizinhos, Jardim dos Lírios e Vila Mathiesen, possuem a maior concentração de população negra na cidade e são duas das ocupações mais antigas dentre as citadas, sendo ocupadas por volta das décadas de 1940 e 1950. Relatou-se que até o início dos anos 1990, o bairro constituía uma favela quando passou por um processo de “desfavelização”, empreendido pela prefeitura, e, segundo Manuela Lage (2010), muitas das novas habitações utilizaram o sistema de mutirão. Os bairros sofrem forte depreciação entre os bairros vizinhos de classe média, sendo relacionados ao crime, ao tráfico, à miséria, aos p. 125 Figura 7 - Bairros de maior concentração da população negra. Fonte: Vitor Menck, 2021. estereótipos racistas construídos ao longo da história brasileira. O Jardim dos Lírios, por exemplo, é apelidado de “Jardim dos Tiros”, associando os conceitos abstratos de classes 2 pobres e classes perigosas e, assim, mantendo uma política de repressão. p. 126 O bairro Antônio Zanaga se localiza próximo ao casarão Salto Grande e, portanto, também é um bairro periférico que surgiu no início do desenvolvimento da cidade, tendo uma presença marcante da população negra. O bairro se constitui a partir das novas leis de uso e ocupação de solo da década de 1970 como uma subcentralidade, haja vista seu acelerado crescimento nesta época e a grande distância do centro da cidade. Ainda nessa década, em 1978, foi construído o Conjunto Habitacional Antônio Zanaga I pela Companhia de Habitação Popular (COHAB) de Campinas, o primeiro empreendimento habitacional do município, já em 1980 foi entregue o Conjunto Habitacional Antônio Zanaga II. Mas o problema habitacional de Americana não parecia sanado, pois grande parte das famílias que estavam em situação precária não tinha renda suficiente para entrar em um financiamento da COHAB – Campinas. Uma das maneiras encontradas para amenizar a situação foi o PROFILURB (Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados), que através de recursos do BNH (Banco Nacional de Habitação) financiava a produção de lotes urbanizados com infra-estrutura básica. Foi por esse caminho que Americana em 1979 a 1983 entrega 683 lotes com apenas o módulo do banheiro construído (LAGE, 2010, p.84). Com relação às práticas culturais e tradicionais, é essencial comentar o legado de Silvia Barros (1958-2009). Militante do movimento negro, ela criou a ONG Arte de Vencer e o projeto Tambor Menino, que levava a dança e a cultura negras para bairros como o Vila Mathiesen e o Jardim dos Lírios. A ONG também tinha projetos que ajudavam crianças em situação de vulnerabilidade social e mulheres na prostituição. Até o início da década de 1980, os negros eram proibidos de entrar nos clubes da elite da cidade, tais como o Rio Branco, Veteranos e o do Bosque. Em resposta foram criados os clubes negros, dos quais Claudia Monteiro cita um na Av. Nove de Julho e outro no Bairro Conserva, que, como escrito anteriormente, foi um bairro de ocupação negra no passado. Esses espaços foram apelidados de “risca faca” e hoje não existem mais. Também por consequência do não acesso dos negros aos clubes, Silvia Barros e sua mãe criaram o carnaval de rua na cidade, o que demonstra a importância cultural que o espaço da rua pode assumir. Outras manifestações de cultura negra que podem ser citados são as capoeiras Motta, Maguila e Abadá, o grupo de maracatu Estação Quilombo, o Centro Cultural Candeeiro que reúne práticas do Jongo, o Cacuriá, o Maculelê, o Samba de Roda, a Catira, o Xaxado, o Coco de roda, a Cenopoesia e outras, a escola de samba Acadêmicos do Salto Grande e os grupos de hip hop do Garrafão. No que concerne às religiões, Pedro Monteiro nos conta na entrevista realizada com a UNEGRO, que não existem terreiros de Candomblé na cidade, mas existem alguns terreiros de Umbanda, dentre os quais o Terreiro de São Domingos é o mais antigo e tradicional e, além dele, há também o Tenda do Caboclo, o Recantos dos Orixás, entre outros. Todos esses espaços preservam aspectos da cultura africana e afro-brasileira e devem ser mapeados e registrados a fim de se compreender a relação do espaço urbano com as práticas culturais e tradicionais das populações negras de Americana e, de certa forma, como isso pode se relacionar com todo o contexto nacional. p. 127 Considerações finais As análises empreendidas nesse artigo nos convidam a revisitar as histórias das populações negras no pós-abolição, marcadas fortemente pela possibilidade de migrar de acordo com seus interesses e possibilidades. Agentes de seus destinos e sem nenhum tipo de amparo por parte do estado, coube a homens e mulheres negros, desenvolveram estratégias de enfrentamentos às ações de exclusão empreendidas tanto pela população branca quanto pelo poder público. Além dos enfrentamentos sociais, políticos, econômicos, profissionais e culturais que marcam as trajetórias da população negra nos municípios analisados, destacamos os enfrentamentos territoriais, fruto principalmente das ações de engenheiros, arquitetos, governantes e médicos sanitaristas que empreenderam a partir do final do século XIX uma varredura das populações negras das regiões centrais. Amparados no racismo científico, nos códigos de posturas e nos discursos higienistas e sanitaristas o nascente urbanismo brasileiro teve como alvo os corpos negros, como nos sugere Andrelino Campos (2005). Henrique Cunha Júnior (2019) aponta que o espaço urbano expressou as contradições da sociedade racista no início do século XX. Em resposta às práticas segregacionistas e discriminatórias executadas pelo Estado e pela sociedade civil, as populações negras empreenderam uma série de ações de resistência. Dentre elas, destacamos as organizações familiares que se empenharam em preservar suas práticas culturais e religiosas em seus espaços habitacionais. Atividades como festas, danças, cantorias, capoeira e o candomblé encontram certa segurança para serem praticadas nos espaços privados dos quintais negros urbanos. Dessa forma, fica evidente, nas cidades analisadas, que a população negra lançou mão de alternativas múltiplas para se apropriar de uma cidade urbanisticamente planejada para marginalizá-la. Edificaram seus clubes, igrejas e irmandades e fomentaram as regiões centrais desenvolvendo suas habilidades profissionais. Além disso, transformaram seus espaços culturais e de morar em redutos quilombolas carregados de africanidades, preservadas e transmitidas, principalmente por meio da oralidade. Assim como seus ancestrais, ressignificaram e africanizaram suas trajetórias frente às violências a eles imputadas. p. 128 Notas Referências 1 BORTOLUCCI, M. Â. Moradias Urbanas Construídas em São Carlos No Período Cafeeiro. São Paulo: FAU-USP. Tese de Doutorado, 1991. Foi identificado na cidade de Americana um importante grupo de representantes negros, a União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO) de Americana, que fazem um trabalho de representação e de estudo da população negra na cidade e na região. Realizou-se uma entrevista virtual pela plataforma Google Meet, no dia 22 de maio de 2021, com representantes do movimento, incluindo a presidenta do grupo, Claudia Monteiro da Rocha Ramos, e dois membros, Pedro Monteiro e Isabella Monteiro. A entrevista contou com um roteiro de questões elaboradas acerca do histórico do movimento, sua constituição e contribuições, além do histórico da cidade e experiências atuais na perspectiva racial da existência e da cultura, acrescidas de questões que surgiram durante a entrevista. 2 Essa definição surge no século XIX e dita as políticas de repressão fora dos limites de trabalho no pós-abolição, numa lógica em que todo cidadão pode ser suspeito até que prove o contrário, mas alguns são mais suspeitos do que outros, incluindo a população negra (CHALHOUB, 2004). CAMPOS, A. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. CHALHOUB, S. Cortiços In: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. COSTA, E. V. da C. Da senzala à Colônia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. CUNHA JUNIOR, H.; BIÉ, E. F. Bairros negros, cidades negras. 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Ao longo do conflito (fundiário e ontológico) travado pela manutenção da morada dos deuses negros, imaginações contrastantes acerca da terra (e sua reconversão em chão) e da nação (na multiplicidade de seus enredos) cohabitam não apenas nos discursos e práticas do povo de santo, mas em mitologias e ritos de funcionários públicos, despossuindo os sentidos da cidade, dos direitos, das heranças e dos patrimônios. Palavras-chave: terreiros; patrimônio cultural; posse e propriedade; diáspora negra; antropologia do direito “¿Quién puede poseer la morada de los dioses?” Tierra, terreno, terreiro Resumen ¿Qué pasa cuando orixás, ancestros y espíritus cruzan los muros de los terreiros para asentarse en documentos y órganos burocráticos? ¿Cuándo rayan no solo la metrópolis, pero también la arquitectura de las institucions? El artículo explora la contaminación entre nomos (el mundo normativo estatal) y axé (el mundo normativo del afroatlántico), a partir el proceso de patrimonialización de la Casa Branca do Engenho Velho (Salvador, Bahia), primer templo de candomblé reconocido oficialmente en Brasil al nivel federal, en la década de 1980. A lo largo del conflicto (fundiário y ontológico) por el mantenimiento de la vivienda de los dioses negros, imaginaciones contrastivas sobre la tierra (reconvertida a llano) y la nación (en su multiplicidad enredada) cohabitan no solo en los discursos y prácticas del povo-de-santo sino también en las mitologías y ritos de funcionarios públicos desposeyendo los sentidos de la ciudad, de los derechos, de las herencias y de los patrimonios. Palabras clave: terreiros; patrimonio cultural; posesión y propiedad; diáspora negra; antropología del derecho “Who can own the abode of gods?” Land, terrain, terreiro Resumen Abtract What happens when orixás, ancestors and spirits extrapolate the walls of terreiros to settle in bureaucratic documents and agencies? What occurs when they produce the metropolis and else the very architecture of institutions? The present article explores the reciprocal contamination between nomos (the normative world of the state) and axé (the afro-atlantic normative world), based on the first process of recognition of a candomblé temple (Casa Branca do Engenho Velho, in Salvador, Bahia) as national cultural heritage in Brazil during the 80’s. Throughout the conflict (both over tenure and ontology) involving the maintenance of the dwelling of black gods, contrasting imaginations about land (and its reconversion to ground) and nation (in its interwoven multiplicity) cohabitate in discourses and practices of the povo-de-santo as well as in mythologies and rites of public staff, dispossessing the meanings of city, rights, heritages and patrimonies. Keywords: terreiros; cultural heritage; ownership and property; black diaspora; anthropology of law Por outro lado, Senhor Prefeito, quem pode ser dono da morada de nossos deuses e antepassados, onde eles plantaram seu sagrado axé? Antônio Agnelo Pereira, Ogã da Casa Branca do Engenho Velho, 1982 Introdução: os orixás em risco e os riscos dos orixás Orixás em risco”. Essa era a chamada que se lia na edição de 04.08.1982 da Revista Veja, em matéria que alertava para a investida da “especulação imobiliária” sobre um dos mais tradicionais terreiros de Salvador: a Casa Branca do Engenho Velho, ou, em sua denominação iorubá, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká. No subtítulo da notícia (“Candomblé pode perder sua meca nacional”), antevia-se um caso digno dos romances de Jorge Amado (ele mesmo um dos filhos-de-santo da casa que engrossava os protestos ao prefeito Renan Baleeiro). A reportagem assim resumia o que designava de um “enredo jurídico”: “ v.2 n.1 p. 132-165 2023 ISSN: 2965-4904 A ameaça de uma operação imobiliária envolvendo a Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo terreiro de candomblé do Brasil, gerou em Salvador um alvoroço de calibre suficiente para figurar nos mais movimentados enredos dos livros de Jorge Amado. [...] A questão começou na semana passada, com o anúncio de que a área ocupada pela Casa Branca, com 6.000 metros quadrados e avaliada entre 30 e 40 milhões de criros, seria ocupada por um conjunto de grandes prédios. Ao mesmo tempo, Hermógenes Príncipe [de Oliveira], um rico proprietário de imóveis em Salva- dor, atualmente radicado no Rio de Janeiro, passou a reivindicar a propriedade da área, por direito de herança, alegação que seu advogado afirma poder provar com documentos que, até sexta-feira passada, não tinham sido apresentados. A questão irá para a Justiça e, a seu favor, os responsáveis pelo terreiro invocam seus dois séculos de funcionamento no mesmo local. [...] Enquanto isso, Mãe Teté, a babalorixá (sic) da Casa Branca, invoca Oxóssi, o “Rei da Mata”, para que ele impeça a construção de um edifício no seu templo (p. 29 do Processo IPHAN/BR 1.067-T-82). Tempos e modos distintos da terra (como terreno termo destinado a operações imobiliárias e como terreiro destinado à casa dos santos) opunham os herdeiros da 1 “princesa Yá-Nassô, sacerdotisa da corte de Alafin, uma cidade da costa africana” e um herdeiro de latifundiários da família “Príncipe”. Essas duas linhagens (tanto seus contemporâneos, quanto seus ancestrais) eram postas em contato e em relação por meio daquele acontecimento telúrico, a emergência de um conflito em torno de posses, possessões e propriedades, na mais antiga das cidades afro-atlânticas do Brasil. O estopim da refrega foi a venda da área até então utilizada como a “Praça de 2 Oxum” para a construção de um posto de gasolina. Enquanto “a especulação imobiliária parece não temer os orixás”, aduzia o Jornal A Tarde de 22.07.82, os filhos e filhas da Casa Branca temiam “a remoção dos deuses do local onde foram implantados pelos africanos”. De costa a costa, num roteiro secular que passava por Oyó e Lagos, na costa ocidental do continente Africano e, Salvador e o Rio de Janeiro no Brasil, heranças e genealogias heterogêneas entremeavam as várias margens da “estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional” do Atlântico negro (GILROY, 2001, p. 38). O conflito se desdobraria em diversos planos, não só confrontando e percepções sobre parentescos, direitos, patrimônios e sentidos do habitar, mas também chamando a atenção para o risco que corriam os orixás e para os riscos que eles traçavam em sua (r)existência diaspórica e metropolitana: riscos impressos no corpo de suas(seus) filhas(os), no corpo da cidade e no corpus de documentos jurídicos mobilizados. Plantar axé, assentar o mundo, co-habitar com o santo As notícias que faziam alarde nos jornais preenchiam também nos autos de número 3 1.067-T-82 do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) . Neles, não p. 137 era só Oxóssi, o “Rei da Mata”, que a Casa Branca invocava, mas um conjunto de institutos e documentos legais, em petição fartamente fundamentada, contendo abaixo-assinado anexo. Aberto em 27 de agosto daquele ano junto ao Ministério da Educação e Cultura, o processo solicitava o tombamento do terreiro como patrimônio cultural brasileiro, nos termos do Decreto-Lei 25/37 e, também, a desapropriação da área, a ser promovida pelo Município de Salvador, seguida de sua concessão para a comunidade. Em resposta à provocação da Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do 4 Engenho Velho. o Sr. Ary Guimarães, então Diretor da 5ª Regional do SPHAN em Salvador, remeteria, por ofício, “proposta de tombamento da área do Terreiro da Casa Branca” à chefia do órgão, no Rio de Janeiro. O desfecho da história se notorizou tanto entre o povo-de-santo quanto entre antropólogos(as) e estudiosos(as) do patrimônio cultural e arquitetônico: o Ilê Aé Iyá Nassô Oká se tornaria, por decisão apertada do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tomada em 31/05/84, 5 o primeiro terreiro tombado do Brasil, abrindo caminho para os demais. Não faltam análises sobre o tombamento da Casa Branca (Oliveira, 2005; Dourado, 2011), a partir de diversas perspectivas. Entre elas, destaco a do próprio relator do processo, o antropólogo Gilberto Velho, conforme ele a redigiria anos depois: p. 138 É inegável que para a vitória do tombamento foi fundamental a atuação de um verdadeiro movimento social com base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais, jornalistas, políticos e lideranças religiosas que se empenharam a fundo na campanha pelo reconhecimento do patrimônio afro-baiano. Havia um verdadeiro choque de opiniões que não se limitava internamente ao Conselho da SPHAN. Importantes veículos da imprensa da Bahia manifestaram-se contra o tombamento que foi acusado, com maior ou menor sutileza, de demagógico. [...] O caso do tombamento de Casa Branca poderia ser analisado como um drama social nos termos de Victor Turner (1974). Havia um grupo de atores bem definido com opiniões e mesmo interesses não só diferenciados mas antagônicos em torno de uma temática que se revelava emblemática para a própria discussão da identidade nacional. Independentemente de aspectos técnicos e legais, o que estava em jogo era, de fato, a simbologia associada ao Estado em suas relações com a sociedade civil. Tratava-se de decidir o que poderia ser valorizado e consagrado através da política de tombamento. Reconhecendo a válida preocupação de conselheiros com a justa implementação da figura do tomba- mento, hoje é impossível negar que, com maior ou menor consciência, estava em discussão a própria identidade da nação brasileira. A rápida passagem do Cardeal Primaz na histórica reunião não disfarçava que os setores mais conservadores do catolicismo baiano e, mesmo nacional, viam com maus olhos a valorização dos cultos afro-brasileiros. (VELHO, 2006, p. 239) A leitura que gostaria de agregar, contudo, às interpretações que enfatizam o giro de paradigma entre o corpo técnico do SPHAN ou os embates e as redes de relações mobilizadas pelo povo de santo (que incluem procedimentos inusitados como uma 6 alardeada “iniciação” do secretário de cultura em uma visita diplomática ao terreiro ) diz respeito à eficácia daquilo que o Sr. Antônio Agnelo Pereira, presidente da entidade civil ligada à Casa Branca, mencionava em sua manifestação ao prefeito de Salvador como o “axé plantado” naquele local. Dito de outro modo, interessa-me explicitar de que maneira os axés plantados em terreiros como a Casa Branca foram, pelas vias de contato que os tombamentos propiciaram, trans-plantados para as instituições públicas e o que ocorre quando esses entes não-humanos – como ancestrais, espíritos e divindades – passam a co-habitar instâncias, práticas e discursos oficiais, povoando a imaginação jurídico-institucional mesmo contra seus pressupostos ontológicos. Gilberto Velho, rememorando o tombamento da Casa Branca, reforçaria, anos depois, que “do ponto de vista dessas pessoas [o povo de santo] o que importava era a sacralidade do terreno, o seu ‘axé’” (2006, p. 237). Esse axé, que é princípio organizador do candomblé, não apenas dá nome às suas comunidades (Ilê Axé significa, literalmente, “casa de força”) como dá sentido ao espaço onde é (im)plantado. Assim “o termo axé é utilizado para designar a casa de candomblé, seu conjunto de adeptos, seus costumes e, por extensão, sua modalidade de culto ou Nação” (OPIPARI, 2009, p.86). 7 Nada melhor do que as palavras do próprio Ogã Agnelo para dizê-lo: EXCELENTÍSSIMO SENHOR PREFEITO Mais uma vez aqui estamos, reiterando a V. Exa. Nosso o pedido de desapropriação do terreno onde se acha o ILÊ AXÉ NASSÔ OKÁ, e a cessão de uso permanente deste à nossa Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do Engenho Velho, que representa o povo da Casa Branca. Temos toda a certeza de que V. Exa. concorda com a absoluta justiça de tal solicitação. Trata-se de reconhecer a uma comunidade os direitos a um patrimônio por ela criado e preservado, através dos séculos. Afi- p. 139 nal, há perto de duzentos anos nossa gente ocupa este terreno, de modo pacífico e laborioso. Neste terreno, Senhor Prefeito, foi plantada uma semente vinda da África, trazida do coração do Império Nagô para a nossa Bahia. Neste terreno, a sabedoria e o trabalho do Povo de Santo do ILE AXÉ IYÁ NASSO OKÁ criaram valores insubstituíveis, conservando tradições e monumentos que a Bahia inteira aprecia e respeita. Temos a certeza de que o Prefeito de Salvador não nega a importância de nossas raízes africanas, o valor da herança cultural de nossos antepassados nagô; não nega que os monumentos sagrados e a história do povo negro, graças a cujo trabalho foi construída esta grande nação brasileira, merecem tanto respeito quanto a história e os monumentos de outras origens. Por outro lado, nenhuma dúvida pode haver de que o direito de uma comunidade instalada num local por ela enriquecido com valores e obras durante tanto tempo significa mais do que a alegada propriedade de quem aí nada fez. Por certo, o Senhor Prefeito também concorda em que tem mais importância a preservação de um patrimônio da Bahia, com a salvaguarda dos direitos da gente humilde responsável por sua existência, do que os interesses mesquinhos da especulação imobiliária. [...] De fato, nossa Casa é humilde, não tem o esplendor das mansões luxuosas dos que tudo nos querem tomar, mas aos olhos de todos os verdadeiros baianos, aos olhos do Brasil, possui uma riqueza inestimável. Aqui está a memória de um povo. Aqui moram os Orixás que vieram da África em nosso amparo, em amparo de nossos ancestrais. A pobre Casa Branca está cheia de sua glória. [...] Afinal, sem a Casa Branca, sem outras casas como esta, a Bahia não seria a Bahia, o Brasil não seria Brasil. p. 140 Reivindicamos, Senhor Prefeito, apenas o que é nosso por justiça. Não queremos terra por outros ocupada e trabalhada para arrancar-lhes da mão o fruto de seu continuado esforço, exigir que nos enriqueçam com seu suor. Não queremos uma terra qualquer para obter lucro explorando gente pobre. Isto a nosso ver constitui uma indecência e uma vergonha. Por outro lado, Senhor Prefeito, quem pode ser dono da morada de nossos deuses e antepassados, onde eles plantaram seu sagrado axé? Quem pode cobrar pela permanência de nossa comunidade nos lugares que ela cultivou, consagrou e edificou no curso dos séculos? Quem pode arrogar-se o direito de nos impor restrições ao uso deste espaço, ameaçando-nos com a mutilação de nosso acervo? É muito clara a resposta que a Bahia dá a todas essas questões.” (BRASIL, 1986, pp. 37-40) Nessa narrativa poderosa que aciona tempos-espaços múltiplos, não só o valor social do trabalho coletivo era contrastado com a obtenção de “lucro explorando gente pobre”, mas um valor de uso mais-que-humano se alojava no coração da pergunta sobre “quem pode ser dono da morada de deuses e antepassados”. Ao tempo em que rebatia as bravatas do suposto detentor dos “papéis do terreno”, o pleito da comunidade do terreiro fazia concorrer uma modalidade de patrimônio (dominial) com outra (patrimônio cultural). Nele, a ancestralidade negra se expressava como herança-de-santo, enquanto a propriedade se apresentava sob a forma de uma herança de sangue, civil. Assim, o SPHAN se via diante do dilema de recusar ou ignorar as faculdades insculpidas em cartas e assentos registrais para proteger “uma semente vinda da África, do coração do Império Nagô”, nas conexões subterrâneas, ou melhor, oceânicas de uma rede de cidades e territórios afroatlânticos (os orixás cultuados na Casa Branca vinham também de Ketu, Osogbo, Abeokutá, Ejibo, Ile Ifé, entre tantas outras localidades iorubás). Essas imagens de “plantio” e “cultivo” não eram ocasionais. “Plantar o axé” corresponde, em termos nativos do candomblé, a fundar um terreiro, inaugurar um microcosmo de potência e vida em comum por meio de ritos que fixam (“assentam”) forças cósmicas e políticas num determinado chão no qual a “família-de-santo” se faz: Na construção física do terreiro, qualquer que seja a arquitetura que se imagine, haverá sempre um lugar central que será sacralizado e, de certa forma, se é que podemos dizer assim, será mais sagrado que as outras partes dessa comunidade. Em alguns candomblés, você encontra o poste central, o opô, como o local sagrado por excelência, onde estão depositados elementos simbólicos representativos do poder religioso e da natureza mesmo do sagrado. [...] E, mais do que p. 141 isso, um espaço onde a sacralização é permanente. É nesse lugar que se diz que se plantou o axé. Plantar o axé, neste caso, é ter um lugar, espaço físico, o chão, onde no ato inaugural ou pré-inaugural se fazem sacrifícios de animais [...] Geralmente nessa construção, nesse plantar o axé, na fixação desses elementos com sacrifício dos bichos de pena e colocação de outros elementos que são utilizados nos rituais mais secretos, que não podem ser revelados, são colocados em uma espécie de buraco alguns elementos que representam o momento, o dia, o aqui e agora, em que se está construindo e plantando o axé. E ali passa a ser um núcleo extremamente importante, e muitas funções religiosas terminando girando em torno dele (BRAGA, 2000, p. 163-165). À luz desses “fundamentos” (preceitos basilares) de santo, desejo acentuar a função constituinte do axé e dos atos de seu plantio não apenas para o terreiro e seu “povo”, mas para a “grande nação brasileira” como um todo, nas palavras dos partidários do tombamento. Os membros da Casa Branca sublinhavam que sem essa “semente” e “sem outras casas como esta, a Bahia não seria a Bahia, o Brasil não seria Brasil”. 8 Trocando em miúdos, seria pelo axé plantado na Casa Branca do Engenho Velho que todos esses entes políticos (estado, povo, nação, país) se constituiriam enredados. Como outros trabalhos demonstram, a compreensão de que nos lugares onde o seu axé foi plantado “moram os Orixás que vieram da África”, ou melhor, a ideia de que é justamente através da materialidade desses atos de produção socioespacial ou de “assentamento” que eles podem transitar entre mundos confere um sentido de co-habitação e convivência ao terreiro. Sodré, num passeio, convida-nos a uma visão panorâmica da morada desses deuses, vizinhos e parentes numa cosmopolis do axé: p. 142 É o caso do terreiro baiano da Casa Branca, onde, topograficamente, «urbs” e “mato” se confundem. A primeira visão que tem o visitante desse terreiro é o sacrário do orixá gêge Dankô, com assentamento (fundamentos simbólicos plantados) numa touceira de bambus. Em seguida, o Okoiluaê (monumento em forma de barco, também chamado navio de Oxum), em frente ao qual se acha a Fonte de Oxum. Vem depois o barracão (espaço com partes públicas e privadas), a “casa branca”. Ao redor, os ilê-orixás (casas de Exu, Ogum, Xangô Airá, Omolu, Oxossi) e uma casa dedicada aos antepassados (Egun). Além das casas, existem os assentamentos de Tempo, de Oxossi Ibualama e a Fonte de Oxumarê. No espaço “mato” (vegetação intermitente, misturada ao “urbano”), encontram-se árvores sagradas, sedes de divindades: jaqueira de Exu, árvore de Loko Padê, gameleira de Apaoká, birreiro de Omolu, os peregun (palmas). Esta descrição superficial não se pretende etnográfica, mas ilustrativa de uma poderosa condensação espaço-cultural, de uma reterritorialização operada pelo terreiro através do sagrado. (SODRÉ, 1988, p. 52). É pelo habitar em conjunto de pessoas, orixás, ancestrais e entidades-espíritos que se institui a vida política de uma comunidade de santo. Implícita, assim, na narrativa dos(as) filhos(as) da Casa Branca (casa comum a humanos, espíritos e divindades), estava o direito à moradia não só de seus(uas) adeptos(as), mas também dos entes não-humanos por eles(as) “plantados” e cultivados. Quem plantara a semente de quem, na prática, era difícil saber. Esse é o sentido da interpelação: “Quem pode ser dono da morada de deuses e antepassados, onde eles plantaram seu sagrado axé?” Esse assentamento estabelece identificações, uma trama cosmopolita e solidária e, a partir dos cruzos, ressemantiza sociabilidades transafricanas, ecologias do pertencimento, processos transculturais, interculturais, cosmopolíticas, que alçam a diáspora negra como advento contracultural da modernidade como nos ensina o navegante Gilroy. O assentamento é chão sacralizado, é morada de segredos, é lugar de encantamento, é corpo ancestral, é onde se ressignifica a vida. A diáspora evidencia a inventividade dos povos negro-africanos desterritorializados, juntamente com a inventividade de seus descendentes. Essas populações em dispersão reconstituíram seus territórios no corpo, na roda, nos movimentos, nas sonoridades, nos sacrifícios rituais – todos esses elementos são experiências de terreiro. [...] Nesse mesmo movimento emerge a noção de terreiro, a ambivalente condição dos seres em dispersão marca o nó que se ata entre a perda do território e a invenção do outro. Assim, o terreiro aqui inscrito não se limita às dimensões físicas [...] mas sim como “campo inventivo”, seja ele material ou não, emergente da criatividade e da necessidade de reinvenção e encantamento do tempo/ espaço (RUFFINO, 2019, p. 100-101). Durante o trabalho de campo que deu origem ao presente texto, derivado de minha tese de doutoramento, tive oportunidade de tangenciar o assunto com Tata p. 143 Loango (Ubaldino Bonfim) sacerdote do Abassá de Xangô e Caboclo Sultão e meu 9 pai-de-santo . Na conversa, Pai Ubaldino correlacionou as expressões “plantar o axé” e “assentar o santo” com certa noção nativa de “moradia”: - Por que se diz “assentar” o santo? - Ô, meu filho, tu é advogado, não é? Tu se formou advogado? - Sim. - Tu é advogado, mas tem que trabalhar pra ser advogado, não adianta só se formar, só ter o nome de advogado. Então tu tá assentado lá, se não teu nome não estaria também lá. [...] Como que eu vou pra minha casa sem um fogão, uma geladeira, sem nada pra chamar de meu? Até o deus dos cristãos teve que ter uma arca pra ser morada dele. Precisava? Não, mas tinha que ter. Aquela arca era tão sagrada que representava a morada dele. O assentamento é uma morada. O assentamento não deixa de ser uma morada do orixá. Onde você chega e conversa. Tá conversando com o assentamento? Não, com o orixá. [...] Eu acho que seria mais fácil ter um pedaço de terra, chegar ali, fazer a coisa e dar pro santo: “é seu”. Mas pra remover um assentamento, um igbá de louça é mais fácil do que pra remover tudo aquilo que está debaixo da terra. [...] Não que o fundamento plantado na louça não tenha seu mistério, sua força, mas eu acho que tudo que é contato direto com a natureza é mais forte. O orixá vai 10 responder. Mas no chão é natureza, né? Perspectivando a Arca da Aliança e a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil como espécies de igbás, isto é, de assentamentos de orixá, Pai Ubaldino parecia insinuar que, embora as prerrogativas de humanos e deuses possam prescindir de um meio material de fixação, seu exercício se beneficia de determinados veículos e investiduras capazes de lhes atribuir não só de fato, mas de direito, um domínio: sua “morada”. p. 144 Assim como uma carteira da OAB situa e singulariza um profissional em suas relações (não significando, porém, que a carteira faça o advogado, ao contrário, é o conjunto dos advogados sêniores, sua corporação, quem faz a carteira), um assentamento situa o santo, oferece-lhe um espaço próprio para existir e agir, dali tecendo suas relações. Como salienta Rabelo, “o assentamento cria instância e circunstância para que muita coisa aconteça” (2014, p. 207), ele “institui lugar” (2014, p. 228). Os assentos dos orixás os singularizam como entidades e lhes amplificam a agência; os “assentos funcionais” de profissionais jurídicos e servidores públicos os informam e conformam como autoridades e lhes investem de poderes próprios. Assim como o orixá para ser singularizado deve ser assentado, também a autoridade, para ser investida, precisa “assentar-se”. Nesse sentido, assentar e ser assentado é também dar e tomar posse de uma posição, lugar ou estatuto. Ainda, do comentário de Tata Loango pode-se depreender sua insatisfação com 11 o modo atualmente mais corrente de “assentar” os santos em “louças” . Na opinião do pai-de-santo, quanto mais próximo de sua “natureza” particular, de seu domínio existencial, corpóreo, maior agência e “presença” tem o orixá, mais axé ele passa e passa por ele. Esses são os corpos e terrenos em que o orixá melhor “responde”. Poderiam ser suas as palavras de Rabelo, no sentido de que o “assentamento depende do lugar, nutre-se dele” (2014, p. 206). Daí a preferência por plantar o santo no 12 chão – como muitos(as) adeptos(as) insistem ser “o estilo africano” predominante, referindo-se a assentamentos na Nigéria e em países vizinhos –, em detrimento da louça, embora justamente a proibição ou as dificuldades de acesso à terra, questão enfrentada historicamente pela população negra no Brasil (R IBEIRO, 2020) induza os(as) sacerdotes(isas) a preferir meios mais deslocáveis de assentamento, que possam ser transportados em caso de mudança. O chão é, assim, plataforma e hipertexto de uma cosmopolítica do habitar em conjunto ou em aliança com mais-que-humanos, ponto de encontro entre terra, terreno e terreiro. O terreiro como reconversão da terra em chão Não é por acaso que a multiplicidade do habitar esteja no centro da demanda apresentada pelo povo-de-santo nos processos de tombamento. A “morada” do orixá não concerne apenas ao espaço físico do terreiro, mas ao mundo que nele se constrói, que nele se constitui. Nos termos de R. Cover, ao nomos, ao mundo normativo do axé: Habitamos um nomos - um universo normativo. Constantemente criamos e mantemos um mundo de certo e errado, legal e ilegal, válido e nulo. O estudante de direito pode chegar a identificar o mundo normativo com a parafernália profissional de controle social. As regras e princípios de justiça, as instituições formais da lei e as convenções de uma ordem social são, de fato, importantes para aquele mundo; são, no p. 145 entanto, apenas uma pequena parte do universo normativo que deve chamar nossa atenção. Nenhum conjunto de instituições ou prescrições jurídicas existe além das narrativas que o localizam e lhe dão sentido. Para cada constituição existe uma epopéia, para cada decálogo, uma escritura. [...] Uma vez compreendido no contexto das narrativas que lhe dão sentido, o direito torna-se não apenas um sistema de regras a serem observadas, mas um mundo em que vivemos (COVER, 1983, p. 3-4, tradução do autor.) Se nomos veicula um mundo normativo onde habitamos e, sobretudo, onde aprendemos a viver - “habitar um nomos é saber viver nele” (COVER, 1983, p. 6, tradução do autor) – o axé como força-motriz e matriz desse mundo é o centro de uma teoria nativa do poder constituinte. Assim, o axé fala (e ao falar, faz, performa) (d)a potencialização da vida na precariedade, (d)a reterritorialização incessante dos orixás, ancestrais e entidades, mas também do próprio nomadismo do desejo e da saudade ante o desterro afro-atlântico que é matéria expressiva do povo-de-santo. Esse modo da existência reterritorializante, cuja expressividade aloca perda, anseio e restituição como gestos fundacionais sobre a terra, encontra eco ainda em outra formulação do nomos. O axé, uma vez plantado, é que engendra e assegura a vida em comunidade – e por isso tem de ser reiteradamente alimentado – e que propicia as condições de sua manutenção, especialmente pela perpetuação da linhagem. Nesse aspecto, trata-se do umbilical vínculo entre terra e a ordem político-jurídica, suscitada por Schmitt em seu notório ensaio de 1950: Para não perder a conexão decisiva entre ordem [ordenação] e orientação [localização], não deveríamos traduzir nomos como lei (em alemão, Gesetz), regulação, norma ou qualquer expressão similar. Nomos vem de nemein – uma palavra grega que significa tanto “dividir” como “pastorear”. Logo, nomos é a forma imediata pela qual a ordem política e social de um povo se torna espacialmente visível – medição e divisão iniciais do pasto, é dizer, a apropriação da terra bem como o ordenamento concreto contido nela e que a ela se segue (SCHMITT, 2014, p. 70). p. 146 Nessa leitura do nomos, o pasto é a metáfora forte, ao passo que os candomblés costumam acionar imagens mais agrícolas. Pensemos na transferência do Ilê Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro para Coelho da Rocha, descrito por Sodré e Augras: Após a morte de Mãe Aninha (1938) é sempre o axé (a autoridade oracular) que orienta a localização espacial das atividades no Rio de Janeiro. Nesse sentido, Mãe Agripina, Obá Deyi, encarregada por Aninha de zelar pelo axé, consulta sempre Xangô. É esse orixá que, em 1943, diz não querer mais a realização de obrigações na cidade, porque já dispunha de uma “roça”. Esse enunciado é ainda obscuro, uma vez que não fica explicitada a localização da “roça”. Entretanto, no ano seguinte, Mãe Agripina – que vinha desenvolvendo atividades litúrgicas num barraco de sapé (batizado de “Pavilhão Obá” por Mãe Aninha em 1925), localizado no subúrbio de Coelho da Rocha – recebe de Xangô a instrução de permanecer em Coelho da Rocha. A mensagem trazia, no entanto, uma incerteza: poderiam talvez voltar para a cidade (bairro de São Cristóvão) depois do ritual denominado “Águas de Oxalá”. Narra Augras: “Depois dessa festa, no entanto, Xangô mandou dizer que não mais voltaria para a cidade, pois ele já tinha uma roça. Conta um ogã da casa: ‘Ninguém sabia desta roça’. Foi Omolu que, pegando uma estaca, saiu porta afora, com todos acompanhando. Ele parou em um terreno, próximo ao Pavilhão Obá e, fincando a estaca, disse ser ali a roça’”. Descobre-se, então, que o terreno pertencia a Filhinha de Ogum (iniciada por Mãe Aninha na Bahia, em 1921), irmã de Mãe Agripina. Nesse sítio, instala-se o terreiro fluminense do Axé Opô Afonjá. [...]O lugar esquecido, mas pertencente a um membro da comunidade, retorna sob a forma mítica (Xangô enuncia, Omolu localiza) para dissolver um impasse real-histórico do grupo (SODRÉ, 1988, p. 96-97). Tomo esta passagem, em que Xangô (ordem) e Omolú (localização) materializam o nomos da terra do Opô Afonjá, como uma interjeição afro-brasileira num diálogo teórico com Schmitt, para quem “a terra é denominada, na linguagem mítica, a mãe do direito” (2003, p. 37). O agenciamento mítico da propriedade, que, em associação com a estaca de Omolú, emerge metamorfoseada sob a forma de “roça” de candomblé (“roça” pola13 rizando com “cidade”, domínio de outras forças). por um lado revisita a já mencionada potência constituinte do axé, sua capacidade de instituir lugar. Por outro, testemunha a centralidade da ação não-humana na (re)tomada de posse do que “pertence” à ancestralidade (Xangô foi peremptório ao afirmar que ele dispunha de uma roça). Ainda, realça o terreiro como espaço heterotópico frente à urbanização homogeneizadora. É uma possessão – a do corpo de uma iniciada – que garante outra possessão - a de um terreno. O axé possui corpos e territórios, ou melhor, participa de corpos como p. 147 territórios e de territórios como corpos. A estaca de Omolú, agrimensor primordial, que abre uma fenda no solo pelo qual “a terra” mesma poderá ser alimentada (medição e divisão, na gramática schmittiana, “plantar o axé” e “dar de comer ao chão”, na do 14 candomblé), mimetiza a navalha do pai ou da mãe-de-santo que abre kuras e, por meio dessa inscrição e orifício, também cura. Omolú “come” na terra e, nessa comensalidade, o “terreno” é sangrado e despido de suas vestes jurídicas (a propriedade) para ser restituído à condição originária de “chão”, essa intensa virtualidade de um “terreiro”: Quando um novo terreiro é fundado, o barracão é preparado em um rito que tem o chão como foco principal: um buraco de terra é aberto no centro, abaixo da cumeeira. Aí são feitas oferendas que incluem bichos sacrificados, comidas secas e um certo conjunto de objetos (que inclui moelas e recortes de jornais contendo notícias boas) – estes materiais são os axés ou fundamentos da casa. Como me explicou Mãe Beata, o chão, que então comeu, é Intoto, qualidade de Obaluaê [outro nome de Omolú], ligado ao subsolo. Os materiais plantados no chão são depois cobertos de terra e um conjunto diferenciado de lajotas usado para fechar e demarcar o espaço – o ponto mais concentrado de axé no terreiro [...]. (RABELO, 2014, p. 260) Outro episódio digno de nota é o coletado por Parés (2007) e versa sobre a indefectibilidade de Azonsú, vodum da nação “jêje” também associado à terra, no Zogbodô Male Vodun Seja Hunde (templo popularmente conhecido como “Roça do Ventura”, em Cachoeira, Bahia). Ele seria um dos protagonistas do tombamento da casa pelo IPHAN, em 2014, mas já zelava da Roça do Ventura ao tempo de Sinhá Abalhe: As vodunsis da casa, ou seja, as filhas de Maria Ogorensi, não aceitaram que Sinhá Abalhe assumisse a direção do Ventura e foi por isso que a roça ficou tanto tempo fechada. (...) Segundo Gaiaku Luiza, quem conseguiu reunir as filhas de volta foi o Azonsú de uma das vodunsi antiga [Luiza Moreira de Avimaje] que “virou” e disse que a roça de Bessen não podia virar pasto para o gado, e que já era tempo das filhas voltarem e aceitarem a nova Gaiaku. E foi assim que as vodunsi foram voltando pouco a pouco. (PARÉS, 2007, p. 220) p. 148 15 Azonsú “virava” na sua filha, tomava posse de seu corpo, como meio para retomar a posse de sua casa. Como é frequente, o santo que “virava” trazia uma admoestação: “a roça não deveria virar pasto”. Alguns devires – o devir Azonsú da filha-de-santo, por exemplo – são salutares, amplificam o axé. Outros – como o devir “pasto” da “roça” – não são propiciadores de potencialização e circulação de axé. Só os devires que impulsionam o circuito de dons e contradons, as trocas e relações são benfazejos. Toda estagnação é deletéria. Deslocando o binômio roça-cidade, em que Xangô parecia se mover, o recado do vodum contrapunha roça como espaço de cultivo, de zelo, de plantio, a pasto como local do abandono, daquilo que cresce sem regra, à toa e ao leo. 16 Essa imagética tem ressonâncias importantes no mundo normativo do axé . “Plantar o fundamento” consubstancia um ato primordial pelo qual a vida política do povo 17 de terreiro se constitui: alimentação da terra (a terra, ou melhor, o “chão come”). A manifestação da terra, no terreiro, já não como terreno e sim como chão, é refratária às formas da propriedade. Já não é ela o objeto a se distribuir. O chão é que nos distribui: A gente tem um Orixá chamado Omolú ou Obaluaê. Na igreja católica ele é muito respeitado como São Lázaro ou São Roque. Os católicos são muito devotos dele e nós muito devotos do nosso Orixá, é o dono da terra. Eu muito pequena ouvia dizer e ouço até hoje: “do pó viemos e ao pó voltaremos”. É isso: a gente precisa respeitar uma coisa chamada terra, chão, porque de lá a gente veio e para lá a gente vai voltar. Então, enquanto a gente estiver em cima desse chão, a gente precisa respeitar esse chão que a gente pisa em cima. Não importa se é branco, preto, amarelo, azul, não importa a cor, precisa ser respeitado. Por isso que, quando eu piso esse chão aqui, principalmente esse chão que tem Orixá, principalmente porque o Ariaxé dessa casa é Omolú ou Obaluaê, quando eu piso nesse chão, eu sei pisar nele com respeito (SANTOS, 2018, p. 87) A “terra” vira outra coisa quando “tem orixá”, vira “ chão”, que come, que precisa ser alimentado, que carrega suas demandas e no qual é preciso “saber pisar”. O plantio do axé, assim, é uma função ou fundação não no chão, mas do próprio chão como modo de aparição originário da terra, seu hipertexto mais afeito 18 à possessão do que à posse . Dito de outro modo, o terreiro pode ser lido como um dispositivo de reconversão da terra em chão. Enquanto a posse participa de uma hierarquia irreversível (entre sujeito e objeto possuído), a possessão permite reversibilidades e trocas perspectivas: p. 149 Em português, posse designa prioritariamente “ato ou efeito de se apossar de alguma coisa”, enquanto possessão indica antes “o ato ou efeito de possuir ou de ser possuído” (Houaiss 2001). O conteúdo semântico do substantivo posse recobre, portanto, relações entre um domínio constituído por sujeitos que possuem e um outro domínio constituído por coisas que são possuídas (ou pelo que não seria coisa, mas que coisa se torna em obediência à relação de posse, como no exemplo fornecido por Hauaiss: “alguns homens consideram a esposa sua posse”). Já o do substantivo possessão recobre isso e alga mais, pois o possuidor pode, ele também, ser possuído, como o sujeito pode ser sujeitado, ou predicado; nesse caso, o sujeito da (or)ação seria, por assim dizer, mais um quase-sujeito, posto que também quase-objeto, do que um sujeito pleno, enquanto o predicado da (or)ação seria mais um quase-objeto, já que também quase-sujeito, do que um objeto acabado. Na possessão o curso da (or)ação é reverso, enquanto na posse, não (VARGAS, 2007, p. 41-42). Interessante perceber no pleito da Sociedade Recreativa São Jorge do Engenho Velho pelo tombamento, o marcado descompasso entre a “alegada propriedade de quem aí nada fez” (o fundamento de direito) e a “morada dos deuses” (o fundamento de santo). Por isso se falava em “casa” de candomblé. E por isso, também, a insistência em um estado insubmisso da terra como terreiro: ela é chão de santo que jamais poderá voltar a ser sujeitada à condição de terreno. Ela participa da possessão, não da propriedade. As nações enredadas e um nomos oceânico Num lance arrojado, os(as) filhos(as) da Casa Branca igualmente expunham a tese da comunicabilidade entre a terra-chão e a terra-solo da nação. Qualquer ameaça à existência do terreiro não atingia somente a comunidade ou o “povo negro”, mas a totalidade do povo baiano e, em última instância, feria todo o povo brasileiro, porque os orixás, os candomblés, numa palavra, o axé seriam co-constituintes do Brasil. A 19 nação brasileira e a nagô, talvez dissessem, também “comem juntas”. p. 150 Essa formulação expande o espectro político do axé como teoria e prática nativos da constituição e como modo de produção social do espaço, ao assentá-lo nas ordens política e urbana (e ao assentá-las nele). Assim, o candomblé e seus agentes reliam, em seus próprios termos, a doutrina dos juristas e urbanistas e enxertavam a raiz nagô no coração do Estado e da cidade. Buscavam efetivar um elo, ou melhor, um enredo entre a narrativa de sua africanidade – as origens ultramarinas da “nação nagô” – e a da sua brasilidade – fazendo daquela um elemento essencial à vitalidade desta. O termo “enredo’’ é uma categoria nativa do candomblé que tem muito a nos dizer. Enredo não equivale a destino e não afasta a agência humana. Ao contrário, se nossos enredos nos deslocam tanto quanto nos constituem, para serem plenamente desdobrados precisam ser assumidos e cultivados. O enredo convoca humanos, espíritos e orixás: Enredo chama atenção para os muitos caminhos que se cruzam e se imbricam na pessoa, formando uma história. Frequentemente se ouve dizer que alguém tem um enredo complicado: nele se encontram orixás que mantêm entre si relações de inimizade (conforme descrito nos mitos), ou que disputam a primazia como donos da cabeça. Outras vezes, a complicação do enredo está justamente na dificuldade que impõe a mãe ou pai de santo de discernir os muitos fios de que é composto – a imagem, neste caso, é de um emaranhado que apenas um olhar experiente e competente pode desvendar, ou que apenas com o tempo vai assumir uma configuração mais nítida. [...] Primeiro, o enredo, até onde entendo, é dotado de certo dinamismo: mais que uma estrutura feita de linhas ou pontos, é uma configuração que sofre deslocamentos. […] Segundo, o enredo não é apenas uma história que se desenrola fora do alcance e interferência das pessoas humanas e que elas podem apenas contemplar (no jogo) e/ou aceitar [...] é uma história da qual eles efetivamente participam. (RABELO, 2014, p. 93) Enredo, portanto, pode ser compreendido como um modo situado de produzir relações e de falar delas. Sejam elas amistosas ou hostis, reconhecem-se as configurações que emaranham nomoi (COVER, 1983), diferentes mundos normativos, como relacionais: “desvendar o enredo – ou pelo menos parte do enredo – que acompanha uma pessoa é uma tarefa necessária para conduzir a contento à feitura [iniciação]” (RABELO, 2014, p. 95). Ao menos parecia ser esse o enredo – um certo parentesco entre a “nação” nagô e 20 a “nação” brasileira – que o povo da Casa Branca referenciava. No território político p. 151 daquele terreiro se cruzavam duas, quiçá inúmeras tradições, advindas de terras distintas, fazendo desse espaço uma jurisdição compartilhada entre mundos normativos. A demanda do povo de santo colocava em circulação signos compartilhados pelas narrativas da africanidade e da brasilidade: patrimônio, território, nação. As “nações” (jêje, nagô, ketu, angola, ijexá, etc., e suas inúmeras combinações) emergem no contexto do candomblé como artefatos políticos que extrapolam os limites do Estado-nação. Mais do que isso, as nações de candomblé parecem operar pela contestação do amálgama “estado” e “nação”, promovendo sua dissociação e movendo-se dentro daquilo que Matory (2005) nomeia “diálogo circun-atlântico”. De acordo com a reconstrução empreendida pelo autor, no mesmo período em que o estado brasileiro passava a ser imaginado como “nação” (e, na Bahia, o candomblé se ia estruturando como comunidade religiosa), populações diaspóricas como as da Costa da Guiné passavam também mobilizar o vocabulário político do nacionalismo que cruzava o oceano: No século XIX e no início do século XX, ao mesmo tempo que os crioulos brancos estavam “imaginando” e reificando uma nação chamada Brasil, os africanos no Brasil e ao longo da costa da Guiné estavam “imaginando” e sustentando uma nação de um tipo não imaginado por Benedict Anderson. E é sem ironia - e sem exigência de correção - que esses africanos e seus descendentes no Candomblé afro-brasileiro ainda falam de suas comunidades transatlânticas como nações. Respeito essa linguagem (...) não porque a considero a categoria analítica apropriada (...), mas porque os membros e vizinhos do Candomblé têm plena consciência de que os cidadãos e analistas dos Estados-nação usam o mesmo termo com pretensões monopolistas. Seu uso, portanto, ensina uma lição significativa para aqueles que acreditam que os Estados-nação monopolizaram ou dominam a imaginação de todas as classes da comunidade. Este termo ilustra a co-ocorrência de, e a sobreposição entre a cidadania dos crentes do Candomblé em múltiplas comunidades imaginadas. Em todo o mundo, a pertença simultânea ou situacional das pessoas em comunidades múltiplas e sobrepostas é - como as múltiplas nacionalidades do candomblecista - um dado adquirido pelo menos tão antigo quanto o Estado-nação (MATORY, 2005, p. 73, tradução do autor). p. 152 Nessa teia afrodiaspórica residiria, reputa Gilroy, a especificidade da formação do Atlântico negro e o proveito heurístico dessa lente para tematizar o “desejo de transcen- der tanto as estruturas do E stado-nação como os limites da etnia e da particularidade nacional” (2001, p. 65). O uso afroatlântico que o candomblé faz da noção de nação dá ênfase à multiplicidade de vínculos políticos do povo- de- terreiro - a um só tempo povo ‘africano’ e ‘brasileiro’ - sem que nenhum desses monopolize as lealdades. A “nação” de candomblé, contudo, se pode ser lida no registro da proliferação de diferenças, não deixa de se inscrever nos entre-lugares tensionados da colonialidade. O termo “nação” foi inicialmente aproveitado pelos traficantes de escravos no comércio atlântico e, posteriormente, pelo aparato de controle social da colônia como marcador que não correspondia às denominações étnicas autoatribuídas pelos povos em suas regiões de origem: Ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo “nação” era utilizado, naquele período [séc. XVII e XVIII], pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos das feitorias europeias da Costa da Mina, para designar os diversos grupos populacionais autóctones. O uso inicial do termo “nação” pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos europeus dessa época, e que se projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da Mina (PARÉS, 2007, p.23). Nação, portanto, se forja como conceito do povo de terreiro na circularidade e na especularidade de (auto)percepções, dentro dos quadros profundamente violentos e expropriadores da relação colonial. Nasce, noutras palavras, no rastro de relações de dominação e jugo, que, porém, são inventivamente subvertidas e reconfiguradas num sistema religioso sofisticado e propulsor de resistências. De fetiche dos colonizadores que projetavam sua própria imaginação social sobre as populações da África ocidental, a “nação” pôde ser despossuída em identidade coletiva que ancorou comunidade políticas. Nesse sentido, plantar o axé da cidade de Oyó, como se narrava terem feito as fundadoras da Casa Branca, em solo brasileiro, era uma performance transatlântica: Como antropólogo, considero que a implantação do axé de uma casa é um momento de construção de um mito, de um universo mágico e religioso específico. Talvez tenhamos aí plantado uma noção profunda de relação com as origens africanas. Também tem-se aí elementos que p. 153 representam essa unidade transatlântica, que guardam absolutamente a noção de segredo, pois como já disse, poucas pessoas têm acesso a esse instante em que se planta o axé (BRAGA, 2000, p. 165). Talvez tenha sido por isso que o conflito na Casa Branca se deflagrou precisamente com a tentativa de demolição do “Navio de Oxum” (o Okô Iluayê), altar monumental no espaço lindeiro ao muro que o terreiro dividia com o recém-inaugurado posto de gasolina, fruto dos negócios imobiliários do autodeclarado “proprietário” do terreno. Ora, a tomada da Praça de Oxum e a ameaça de despejo de sua embarcação-morada são emblemáticas de um embate entre nomos terrestre ou, quiçá, telúrico e nomos oceânico – ou nomos okúnico, em referência a Okun, o oceano, e sua divindade, Olokun. O nomos okúniko poderia ser imaginado como aquele que se assenta não sobre a terra apenas, mas sobre a mediação do mar entre terras ou “costas” conexas pela grande formação rizomórfica do Atlântico negro. Não é por acaso que Gilroy (2001), ao evocá-lo como contracultura da modernidade, aciona “a imagem de navios em movimento pelos espaços entre Europa, América, África e Caribe como um símbolo organizador central para este empreendimento”, pois eles (...) imediatamente concentram a atenção na Middle Passage [passagem do meio], nos vários projetos de retorno redentor para uma terra natal africana, na circulação de ideias e ativistas, bem como no movimento de artefatos culturais e políticos chaves: panfletos, livros, registros fonográficos e coros” (GILROY, 2001, p. 38). O navio, como meio de passagem, e a “passagem do meio” (como ficou conhecido o trecho mais árduo e demorado da viagem transatlântica) estão poética, ritual e espacialmente condensados no “Navio de Oxum” da Casa Branca e turbinam as memórias e formas inventivas de vida que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká constituíra. Os atributos de uma embarcação, aliás – “um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento” (GILROY, 2001, p. 38) – bem poderiam descrever um terreiro, esse corpo em trânsito num nomos afrodiaspórico ou nomos afroatlântico (MATORY, 2005), cheio de passagens e de (entre)meios de passagem p. 154 Tenho sugerido que a potência de um nomos oceânico (nomos okúnico ou nomos-kalunga) pode inundar a concepção schmittiana de ordenação e localização, insinuando novos e radicais desdobramentos de seu argumento sobre o caráter do direito: O mar não conhece essa unidade clara entre espaço e direito, entre ordenação e localização. [...] o mar não tem um caráter, no sentido originário da palavra caráter, que vem do grego charassein: inscrever, insculpir, imprimir. O mar é livre [...] originalmente, antes da fundação dos grandes impérios marítimos, o princípio da liberdade dos mares significava uma coisa bem simples: o mar era um campo livre para a pilhagem. [...] a palavra pirata vem do grego peiran, ou seja, pôr à prova, experimentar, arriscar. [...]pois no mar aberto não havia cercados [Hegungen], fronteiras, lugares consagrados, localizações sagradas, direito ou propriedade. [...] No mar não vige nenhuma lei (SCHMITT, 2014, p. 38-40). Como imaginar e experimentar um nomos sem “cercados, fronteiras e direito de propriedade” entendo ser um dos desafios que o axé nos lança. Um nomos oceânico seria, num arroubo especulativo, um nomos-pirata, não tanto fora da lei quanto entre leis? Na Casa Branca, a questão era saber que lei, mesmo sem vigorar sobre o mar em si, poderia atravessá-lo do reino de Oyó até a Bahia de Todos os Santos, dando passagem ao direito dos descendentes de dignitários do “Império Nagô”. Navegamos em águas turbulentas. Se, como aludia a petição da Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do Engenho Velho, era “muito clara a resposta que a Bahia [com todos os seus santos] dá a todas essas questões”, a resposta dos órgãos públicos era menos incontroversa. A arquiteta coordenadora do setor de tombamento do SPHAN, em sucessivas informações prestadas sobre o andamento do processo, afirmava que o “problema, além de ser muito importante, é muito complexo e delicado” (29/08/1983); que se deveriam aplicar “a experiência e a criatividade à busca de novas medidas legais”, posto que a situação era incompatível com “os recursos legais de preservação disponíveis” (21/10 /1983); e, afinal, que restava “fundada dúvida, ainda não superada, no tocante ao instrumento a ser utilizado para a preservação em que estamos empenhados” (30/10/1983). Qualquer resposta ao problema era, naquele momento, uma forma de experimentalismo institucional. Dois dos focos de angústia do corpo técnico da instituição eram precisamente: (a) os efeitos da declaração de tombamento sobre uma área cuja propriedade se achava em litígio; e (b) o conflito entre a mutabilidade das práticas e espaços religiosos ante a cristalização que o tombamento, convencionalmente, impunha. p. 155 Diversos intelectuais foram consultados sobre a questão, reafirmando o valor cultural da Casa Branca, mas reconhecendo, nas palavras de Peter Fry, que “os temores da SPHAN [...] são fundados e que um tombamento tout cour poderia trazer prejuízos infindáveis tanto para as gerações futuras do terreiro quanto para aquelas da SPHAN”. A medida a ser adotada impactaria a herança e o destino não só do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mas de todo o campo do patrimônio cultural (inclusive das futuras “gerações” de funcionários) e os sentidos mesmo da “nação” brasileira. Se o maior interesse dos dirigentes do terreiro era “assegurar seu direito de continuar ocupando o atual terreno”, ponderava o sociólogo, o ideal seria envidar esforços para levantar o montante necessário à sua aquisição e não “imobilizá-lo num emaranhado burocrático” (BRASIL, 1986, p. 118). Preocupações semelhantes permearam a 108ª sessão do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em que o processo foi pautado. Embora o relator, o antropólogo Gilberto Velho, após apreciação sobre a relevância histórica e etnográfica da casa, houvesse recomendado o tombamento da integralidade do imóvel, com edificações, árvores e objetos sagrados, “acompanhado de todas as medidas necessárias que efetivamente garantam a segurança deste patrimônio” (BRASIL, 1986, p. 174), seus colegas não partilhavam do mesmo entusiasmo. O conselheiro Gilberto Ferrez, por exemplo, pronunciando-se em seguida, “chamou atenção para o precedente que se abriria e ao fato do terreiro estar situado em terreno de propriedade de terceiros”, no que foi secundado por Eduardo Kneese de Mello. Este, enquanto se abstivesse de votar, apresentou sérias reservas acerca da “questão da propriedade do terreno, a falta de documentação no processo e o fato de o monumento, no seu entender, não fazer parte da religião”. O conselheiro Pedro Calmon seguiu a mesma linha, requisitando esclarecimentos complementares sobre o imóvel e perguntando “se sobre ele incide algum direito que deva ser respeitado”. Manifestava “sua estranheza diante do fato do terreiro estar instalado naquele terreno há 150 anos e não ser proprietário” e, insinuando que seus membros “não conhecem direito a situação jurídica do terreno”, pleiteava ao fim o adiamento da pauta. O impasse apenas foi superado com uma nota de Manuel de Castro, então prefeito de Salvador, presente à sessão, repassada às pressas ao presidente do SPHAN, na qual afirmava “que a Prefeitura garantirá a posse do terreno ao terreiro”. Lida a nota e aliviados os corações, concluiu-se a votação com duas abstenções, um voto contrário ao tombamento, um voto pelo adiamento da decisão e três favoráveis. p. 156 Era o evidente problema da terra – e daquilo que o direito dela fazia, uma “propriedade” – que inquietava os presentes. Não apenas no caso concreto daquele imóvel em si, mas o problema maior do nomos da terra e do quanto ele poderia ser abalado, sacudido pelo precedente. Tanto assim que, mesmo deferido, o tombamento teve de aguardar até junho de 1986 para sua homologação, somente depois da oficialização da desapropriação promovida pelo Município de Salvador e da concordância formal do que se reivindicava proprietário,ou seja, não houve definição para o terreiro até que o destino do terreno estivesse selado. E selar esse enredo não foi simples: em 19 de setembro de 1985, o mesmo diretor Ary Guimarães, em tom algo constrangido, alardearia desta vez via Telex, a Angelo Oswaldo Santos, Secretário do SPHAN em Brasília, que o proprietário do terreno, Hermógenes Príncipe de Oliveira, tentaria anular o tombamento provisório do terreiro motivado pelo decurso de mais de um ano sem sua homologação ministerial. Memorandos ansiosos seriam trocados nos meses seguintes entre as sedes do órgão até que um novo telegrama encerrasse o caso, comunicando, literalmente: “solenidade prefeito entregou a casa branca título de propriedade permitindo assim finalização processo tombamento. Saudações”. Com a entrega do título (uma traditio) e a finalização do tombamento (por meio da inscrição do terreiro no livro do tombo), o SPHAN e o Município de Salvador acabaram plantando algo de seu próprio axé no solo da Casa Branca. Com a titulação, a propriedade passou para o patrimônio da comunidade religiosa e com o tombamento, o terreiro passou para uma jurisdição afro-brasileira: um espaço de “diálogo circun-oceânico” (MATORY, 2005) na execução de uma política cultural. Se “cultura” foi a categoria jurídica que permitiu a passagem do axé ao nomos estatal, “tombamento” era o instituto que abria uma via de passagem do direito à nação nagô. A retomada do território dos orixás seria concluída com o Decreto Estadual 292, de 8 de setembro de 1987, que desapropriou também a área ocupada pelo posto de gasolina, devolvendo-a à posse de Oxum. O terreno era, de novo, terreiro, terra de santo: chão. Algumas lições sobre ferros, tombamentos e contaminações 21 O resultado apertado da discussão do Conselho repercutiu nos jornais baianos , num misto de crítica aos mais reticentes e de celebração da atitude do SPHAN. O Correio da Bahia estampava, acima de uma foto da fachada Ilê Axé Iyá Nassô Oká e outra da mesa de reunião dos conselheiros, em 1º de junho de 84: “Casa Branca é o primeiro monumento negro tombado”. Na mesma manhã, a Tribuna da Bahia comemorava: “Patrimônio tombou o mais antigo terreiro de candomblé do Brasil”, p. 157 não sem uma nota irônica: “Intervenção do prefeito garante tombamento da Casa Branca”. Isto é: se os antepassados da casa haviam nela plantado a “semente do axé”, seus descentes plantavam uma semente de direitos da qual muitos outros terreiros colheriam, em breve, os frutos. 22 O Jornal da Bahia ressaltava o ineditismo da decisão que consagrava o Ilê Iyá Nasô Oká como “monumento nacional”, fazendo publicar na mesma edição um artigo de Cid Teixeira intitulado “Axé: um grande passo”. O autor descrevia com densidade o ambiente da reunião do dia anterior. Do texto replico um trecho ao qual retornarei mais adiante: p. 158 [...] Era um cenário que só ocorre na cidade de Salvador. Em nenhum outro lugar do mundo aquilo seria possível. No salão de beleza ímpar da Santa Casa de Misericórdia, ao redor daquela mesa “sólida e larga como deve ser a misericórdia da casa” estavam reunidos aqueles eruditos senhores para, com a assistência sofrida e tensa de ogãs, ialorixás, ekedis e simples curiosos para deliberar sobre o tombamento de um terreiro de candomblé. Para os ortodoxos e os rotineiros tudo pode ter até um certo sabor de heresia. [...] Afinal, se inovava o conceito de bem suscetível de ser tombado. Se criava uma jurisprudência nova nas praxes da burocracia federal quanto ao que deve ser preservado. [...] E nisto residiram, precisamente, algumas dificuldades na marcha do assunto. Afinal, pensavam e diziam os ortodoxos: o que se pretende tombar? O barracão? Os pejis, um pé de árvore sacralizado? E a resposta, aparentemente fácil na Bahia, fica difícil de ser dada quando se dirige a pessoas da maior importância cultural, filhas, entretanto de outras raízes, de outros procedentes, de outras vivências. Como explicar que o que se quer tombar é algo imponderável como objeto, mas ao mesmo tempo substancial e essencial como valor de cultura. Como se explicar que o que quer tombar é um axé? E, como explicar num processo desses cheio de despachos-supra e informações retros – e de pareceres de folhas tais ou quais o que é um axé? [...] [Nos seus primórdios] os terrenos eram de pouca valia, praticamente sem preço num rarefeito e diluído mercado imobiliário. E, na verdade, a ninguém ocorreria comprar um chão para fazer nele um terreiro de candomblé. A sua presença ali, junto ao pé de ‘loko’ era tão natural, tão óbvia que a aquisição seria uma superfetação. O tempo passou e, com ele tão puras visões de mundo. Passou o tempo de Sussu e passou o tempo de Tia Massi. Chegou o tempo do BNH e com ele toda uma tabela de valores. E aí, como estabelecer a compatibilização de uma tabela de UPCs com um oriki para Xangô? E o que tem a ver a pedra fundamental de um desses conjuntos que, dois anos depois de construídos já precisam de recuperações pelas rachaduras com o assentamento de um axé que é atemporal por sua própria natureza? (BRASIL, 1986, p. 154) As indagações suscitadas pelo historiador e jurista Cid Teixeira seguem ressoando em conflitos e disputas pela cidade e pelo direito à cidade. Como explicar por pareceres, informações, memorandos e despachos o que é um axé? Como compatibilizar unidades de custo tabeladas pelas agências governamentais com o valor de um 23 oriki de Xangô? Como compassar a temporalidade das políticas públicas, como as de habitação ou as de regularização de “assentamentos humanos”, com a vida dos assentamentos de santo, morada dos deuses? Essas e outras questões compartilhadas por “ogãs, ialorixás, ekedis” e por “eruditos senhores” (e senhoras) em momentos de urgência como o que colocou os “orixás em risco” na Casa Branca, voltaram a ressoar num episódio ocorrido com Mãe Teté e Egbomi Ajikutu, no ano seguinte à decisão do conselho. Em meados de 1985, dois funcionários da prefeitura de Salvador foram designados para cortar alguns dos galhos que já ultrapassavam os muros da casa. O que seria um procedimento relativamente corriqueiro de poda noutro terreno qualquer, no terreiro envolvia um cauteloso exercício de perspectivismo, pois se, do ponto de vista dos agentes do município (poder público), aquelas eram “apenas árvores”, do ponto de vista de orixás e entidades (poderes cósmicos), elas eram “casa de morada”. Se de ambas se podia dizer que haviam sido “plantadas”, a confluência do vocabulário escondia um profundo desencontro de sentidos. As zeladoras de santo, responsáveis pela tradução dessas perspectivas num contexto de impasse cosmopolítico (ANJOS, 2006) que, se administrado de maneira atabalhoada, podia acarretar severas consequências a todos os envolvidos, tiveram de encontrar uma solução prática e, ao mesmo tempo, eficaz nos dois mundos: consagraram os equipamentos e ferramentas que seriam utilizados, incorporando-os ao axé como, antes, haviam simbolicamente “iniciado” o presidente do SPHAN numa visita técnica que lhe permitiu acesso a certas parcelas do templo. O ato de “lavagem”, seguindo preceitos de santo, transformava, inadvertidamente, facões e motosserras em índices do enredo entre Estado e Candomblé e produziam uma duplicação, uma imagem sua em cada um dos mundos. Do ponto de vista do p. 159 nomos, eles eram instrumentos de trabalho e meio de suprir uma função urbanística; na perspectiva do axé, elas passaram a ser também “ferramentas de santo”, como os ferros dos assentamentos ou as paramentas dos orixás. Afinal, não era absurdo fazer sua materialidade férrea “vibrar” em numa espécie de difração, afinal de contas o ferro podia sempre ser despertado como fractalidade do corpo de Ogum. Há mais de uma lição a se tirar desse breve “enredo”, como o próprio povo-de-santo quiçá o descreveria, de tombamento da Casa Branca do Engenho Velho. Atenho-me, por hora, a um “fundamento” sobre a co-existência e a co-habitação que a aparição simultânea e enredada de nações e povos, terras e chãos, ferros e ferramentas oferece: a oscilação sempre passageira entre simetrização (LATOUR, 2019) e equivocidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2018), ou melhor, a vocação nômade para “virar” a dita política urbana (e a filosofia política, por que não) numa cosmopolítica enterreirada. Notas 1 Trata-se da cidade-reino de Oyó, na atual Nigéria, governada por Xangô (ou um de seus avatares históricos), provavelmente na primeira metade do século XIX (TAVARES, 2008). Ainda hoje, o Alafin, dirigente político máximo do território, é considerado um descendente direto do orixá do fogo. 2 p. 160 Cabe aqui, desde logo, a advertência de Sodré sobre o espaço dos terreiros: “Deste modo, embora o terreiro possa ser em conjunto apreendido por critérios geotopográficos (lugar físico delimitado para o culto), não deve, entretanto, ser entendido como um espaço técnico, suscetível de demarcações euclidianas. Isto porque ele não se confina no espaço visível, funcionando na prática como um “entrelugar” - uma zona deinterseção entre o invisível (orum) e o visível (aiê) - habitado por princípios cósmicos (orixás) e representações de ancestralidade à espera de seus “cavalos”, isto é, de corpos que lhes sirvam de suportes concretos.” (SODRÉ, 1988, p. 72) 3 O Processo 1.067-T-82-IPHAN/BR) conta com um volume principal de 236 páginas e um anexo de 6 páginas, além de plantas e fotografias numa versão digitalizada que foi disponibilizada pelo setor de arquivo do IPHAN (1986). 4 Acredito ser útil pontuar, de saída, algumas características dessa configuração terreiro-associação que tornou possível, no caso da Casa Branca, a articulação candomblé-patrimônio. A tendência de “legalizar”, como muitas vezes se diz, ou organizar casas de santo como instituições civis não é recente, mas pressupõe um primeiro corte entre os perfis dessas comunidades. Afinal, “a obtenção de um CNPJ exige certo domínio dos códigos e dos procedimentos burocráticos por parte dos sacerdotes” e uma “inserção do terreiro no idioma jurídico/burocrático do Estado, através da constituição de uma diretoria e de um estatuto” (EVANGELISTA, 2015, p. 76) nem sempre acessíveis ou compatíveis com a lógica da hierarquia religiosa, podendo gerar vários conflitos de liderança. “Tirar um CNPJ”, se garante entradas nas políticas públicas, como as de patrimônio, passa por ritos às vezes tão lentos ou onerosos como a própria iniciação no axé. 5 Atualmente, contabilizam-se onze terreiros, de diversas denominações de matriz africana, tombados em nível federal: um no Maranhão, um em Pernambuco e nove na Bahia. 6 “Candomblé baiano inicia Secretário da Cultura do MEC no ritual nagô”. Jornal da Bahia, edição de 09/09/1982 (BRASIL, 1986, p. 84). 7 Ogã é um dos cargos litúrgicos masculinos do candomblé. Em muitas casas, além das funções sacerdotais, os ogãs também têm funções políticas e de representação externa do terreiro. 8 Toda fundação de terreiro, em certa medida, articula essas esferas: “a esfera espiritual ou sobrenatural;a esfera da materialidade ou das coisas e a esfera legal ou pública” (EVANGELISTA, 2015, p. 79). 9 Ubaldino Bomfim é pai-de-santo do terreiro de candomblé Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, casa de nação angola, inicialmente fundada em São Paulo (SP) e transferida para a cidade de Curitiba, em meados de 2018. O sacerdote é natural de Jequié (BA), filho-de-santo de Mãe Nininha Preta, sacerdotisa do Abassá de Xangô Abairá, terreiro localizado no quilombo urbano do Barro Preto, no mesmo município. 10 Entrevista realizada em abril de 2019. O conjunto mais amplo desses diálogos se acha analisado em Hoshino, 2020. 11 As “louças de santo” ou igbás são conjuntos de peças de distintos materiais (por- celana, barro, vidro), a depender da natureza e qualidade da divindade assentada, onde esta passará a ser cultuada e alimentada, depois de certos ritos de consagração. Por vezes, tratam-se de pratos e sopeira ou terrina numa bacia, com quartinhas e quartilhões. Noutros casos, os assentamentos de santo são compostos de ferros em “caqueiros” ou diretamente na terra, mas têm em comum a importância do okutáou otá, a pedra de fundamento. 12 Na entrevista que fiz com o Ogã Jorge Gomes, nos recintos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 2018, ele frisou ter notado este aspecto em suas idas à Nigéria, acompanhando seu pai-de-santo: “foi uma coisa maravilhosa, na Nigéria onde foi cidade dos orixás [...] dá gosto, os orixás não são tão ornamentados como são aqui, é tudo o mais simples possível, você não vê tantos paramentos, não, os orixás são à base de palha, de dendezeiro [...] é como se você estivesse vivendo no mundo dos orixás. [...] Eu procuro passar pras pessoas humildade, simplicidade, orixá não quer luxo, orixá não quer riqueza, porque na África igbá dos orixás é no barro, não tem louça, é tudo no barro, na cabaça, é barro e cabaça, aqui não[...] Ah, o santo pediu isso? Não! O orixá não pede, porque pro orixá o que representa pra ele é aquilo que é feito lá dentro, porque cá fora é só pro público”. 13 “A designação “terreiro” é dada ao local de realização do culto da maioria das religiões afro-brasileiras, retratado por Sodré (1988) como a principal forma social do negro no Brasil. É também conhecido como “roça”, certamente uma terminologia que faz remissão às condições dos sítios onde os terreiros eram implantados no início da sua estruturação, em ambientes caracterizados por suas grandes dimensões, composto de árvores frutíferas e afastados do grande centro urbano, como observa o parecer técnico do Ministério da Cultura, com fins de tombamento p. 161 do Ilê Axé Opô Afonjá: Os candomblés mais antigos e tradicionais estão instalados em grandes terrenos, denominados roças ou terreiros (...) Outros termos utilizados são “ilê” e “ebé” (originado do iorubá egbé) que tem na sua origem etimológica o significado de “casa”, e, por fim, e mais freqüentemente utilizado, o “axé”, que além de representar a força cósmica, é largamente empregado com esta finalidade entre os integrantes do culto, moradores ou freqüentadores. Especificamente para as casas do rito angola, eles também são chamados de Casa de Inkise e de ‘abaçá’” 18 Escarificações realizadas em determinados pontos da pele dos(as) neófitos(as), no ato da feitura de santo (iniciação), a depender da nação de candomblé a que a casa pertence. Na teoria moderna do direito civil, a posse foi paulatinamente sendo circunscrita e minada como instituto autônomo para subordinar-se à propriedade: “Assim, o critério de justiça que qualifica a posse deriva imediatamente de sua identificação com a propriedade. Quando a relação entre o indivíduo e os bens não corresponder ao poder adquirido por “justo-título”, ou seja, decorrer da propriedade, então esta será tomada como injusta. Tanto o é, que o código civil vigente qualifica como justa “a posse que não for violenta, clandestina ou precária”. E esses atributos são considerados tomando-se como base, evidentemente, o instituto proprietário.” (MILANO, 2017, p. 176) 15 19 (REGO, 2006, p. 34). 14 “Virar no santo” é uma das formas mais comuns para referir-se à passagem ao estado de transe. 16 p. 162 pertence, são conhecidos como candomblés de “chão batido” por terem essa particularidade construtiva como distintivo. Se é possível recrutar um nomos do axé, como farei ao longo do texto, ela se situa mais no intervalo ou na “oposição entre o logos e o nomos, entre a lei e o nomos” (DELEUZE E GUATTARI, 2012, p. 37) do que na acepção schmittiana clássica. Em Deleuze, nomos (νομός) aparece como a ação de enviar os animais para um espaço aberto, fora da cidade, sem padrão, limite ou estrutura particular. É nesse sentido que nomos contrasta com logos, algo como dois modos de distribuição, o primeiro deles mais “anárquico” (atravessado pelo nomadismo), o segundo mais “hierárquico” (vinculado às formas-estado). A qui se colocam as questões tanto das configurações da “ordem” na ausência de governo ou comando, quanto da agência da terra como “chão”, da terra não apenas distribuída, mas que distribui. 17 Vale destacar que justamente os terreiros da nação jêje, ao qual o Seja Hunde A comensalidade é índice de parentesco e afinidade nos candomblés. Humanos comem com ancestrais, deuses e encantados, fazendo a “família-de-santo”. Assim, falar do cardápio divido, da comida votiva e das celebrações ou interdições alimentares é um dos modos de descrever relações. Os orixás que “comem junto” são orixás que “têm enredo” uns com os outros, que mantêm algum tipo de intimidade ou aliança, geralmente explicada em termos míticos. Também os orixás de pessoas que construíram vínculos religiosos podem aceitar comer juntos nas cerimônias, como no caso de filhos(as)-de-santo que foram iniciados/as no mesmo “barco” (no mesmo período de reclusão) ou que “deram obrigação” ao mesmo tempo. 20 “Nação brasileira”, aqui, não é expressão empregada como conceito analítico, mas como categoria nativa do povo de santo, fortemente presente tanto em diversas conversações cotidianas quanto no repertório ritual, especialmente nos ciclos de cantigas e louvações dedicadas aos caboclos, figurações das populações indígenas incorporadas ao panteão afro-brasileiro como ancestrais “donos da terra”. Sobre este aspecto do culto e os sentidos de brasilidade nele implicados, vide HOSHINO e SANTOS, 2020. 21 Entre outros, Correio da Bahia, ed. de 01/06/1984, e Jornal da Bahia, ed. de 09/09/1982, conforme processo 1.067-T-82 (IPHAN/BR) 22 23 Ver nota de rodapé 21 A conceituação ou tradução precisa do termo iorubá oriki não são pacíficas, mas pode-se com alguma segurança defini-los como poemas louvatórios endereçados sobretudo a pessoas, ancestrais, entes cósmicos e divindade. Sua presença é corriqueira no candomblé brasileiro, especialmente de tradição nagô-ketu, mas a extensão dos usos e sentidos desse gênero literário nas sociedades iorubás é mais ampla e, segundo Barber (1990), está associada, no contexto religioso, aos modos como entidades se proliferam, se fundem e se relacionam: “It is important to look at the means or medium by which fractions of gods are established, in order to understand how the relationships between them are conceived. Yoruba òrìsà can scarcely be apprehended without taking into account the specific textuality of the oral genres through which they are created, maintained and communicated with. (...) The tendency to emphasise the orderly at the expense of the dynamic has been assisted by the almost universal use of itán, narratives or myths, as the principal source of ideas about the òrìsà. The itán lend themselves to the classificatory cosmology-building project (…) Oriki òrìsà, the ‘praise poetry’ attributed to the gods, is cited, if at all, only as a supplement to the narrative. (…) In my view, the relationship between oriki òrìsà and itán òrìsà is the other way round. Oriki are the principal oral genre involved in the propitiation and characterisation of òrìsà, and itán participate in the mode of oriki. They should be treated as an adjunct to oriki rather than the reverse. This makes it possible to understand characteristics of the itán which have hitherto been dismissed as anomalies, the result of error, forgetfulness or noetic underdevelopment: for though each itán is usually internally coherent, a collection of itán, told by different people or even by the same person, soon reveals notable gaps, inconsistencies and contradictions” (BARBER, 1990, p. 313-315). A longa transcrição ajuda a situar-nos num campo de discussão em que a própria textualidade está em questão. Palmilhando a senda de Barber, suponho que esta tese esteja mais próxima da textura poética – equívoca ou plurívoca – dos orikis do que do projeto metanarrativo linear que estudiosos(as) ocidentais buscam construir valendo-se seletivamente dos itán. Referências ANJOS, J. C. G. dos. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afrobrasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Fundação Cultural Palmares, 2006. BARBER, K. “Oríkì”, Women and the Proliferation and Merging of “òrìṣà”. 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O primeiro relacionado à identificação e o segundo à louvação das forças elementares da natureza e das entidades espirituais. Ambas formas plurais de conexão com a ancestralidade e a espiritualidade presentes na Umbanda, que correspondem aos fios condutores que guiam e precedem a elaboração deste artigo, cujo objetivo é levantar os terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador, na Bahia. Para alcançá-lo, além da descrição das descobertas e do processo decorrentes dessa busca, tenta-se entender o que é a Umbanda e o que são suas ramificações, com vistas a relacioná-las com a produção do espaço urbano de Salvador. Trabalho que se justifica, primeiro, por dar visibilidade a essa religião e, segundo, e principalmente, por apresentar outros e necessários questionamentos que visam preencher uma lacuna na produção acadêmica que dá conta da leitura da Umbanda em Salvador. Palavras-chave: Umbanda, Ramificações da Umbanda, Levantamento, Terreiros, Salvador. Puntos rayados en el suelo: la presencia de la umbanda en Salvador, Bahia Resumen Puntos rayadas en el suelo, puntos cantados, dos formas de interpretar y referirse a las prácticas umbanda. El primero relacionado con la identificación y el segundo a la alabanza de las fuerzas elementales de la naturaliza y las entidades espirituales. Ambas formas plurales de conexión con la ancestralidade y espiritualidad presentes en la Umbanda, que corresponden a los hilos conductores que guían y preceden a la elaboración de este artículo, cuyo objetivo es encontrar los terreiros de Umbanda en funcionamiento en Salvador, Bahia. Para lograrlo, además de la descripción de los descubrimientos y el proceso resultante de esa búsqueda, se intenta comprender qué es la Umbanda y qué son sus ramificaciones, con el fin de relacionarlas con la producción del espacio urbano de Salvador. Se trata de un trabajo que se justifica, primero, por dar visibilidad a esta religión y, segundo, y principalmente, por presentar otras y necesarias cuestiones que pretenden llenar un vacío en la producción académica que da cuenta de la lectura de Umbanda en Salvador. Palabras clave: Umbanda, Ramificaciones de la Umbanda, Encontrar, Terreiros, Salvador Scratched points on the floor: the presence of umbanda in Salvador, Bahia Abtract Dots scratched on the floor, sung points, two ways to interpret and refer to Umbanda practices. The first related to identification and the second to the praise of the elementary forces of nature and spiritual entities. Both plural forms of connection with ancestry and spirituality present in Umbanda, that correspond to the conducting wires that guide and precede the elaboration of this article,whose objective is to raise the Umbanda terreiros in operation in Salvador, Bahia. To achieve it, in addition to the description of the discoveries and the process resulting from this search, tries to understand what Umbanda is and what its ramifications are, in order to relate them to the production of urban space in Salvador. This is a justified work, firstly, because it gives visibility to this religion and, secondly, and mainly, it presents other and necessary questions that aim to fill a gap in the academic production that accounts for the reading of Umbanda in Salvador. Keywords: Umbanda, Ramifications of Umbanda, Survey, Terreiros, Salvador. Introdução uando duas pessoas se unem para a escrita de um texto, convergências e divergências surgem dessa junção. Este artigo, fruto de quatro mãos e dois universos distintos, é um desafio ao qual se propõem as autoras, seja por representar a descoberta da negritude e da ancestralidade de uma, seja por significar o encontro de respostas que compõem a consciência e a personalidade da outra – ambas instigadas pelo despertar de suas espiritualidades. Q Tal despertar é, ao mesmo tempo, o que guia e o que move o processo de elaboração do texto, que por esse motivo busca apresentar essa dupla visão. Esse duo universo está nos títulos das subseções que compõem o artigo e em sua escrita, e é uma opção crítico-discursiva que não resulta numa visão oposta, pelo contrário, pelos dois olhares intencionamos lançar luz para o que nos é comum e nos atravessa no processo de elaboração v.2 n.1 p. 166-195 2023 ISSN: 2965-4904 Ao contrário do que geralmente ocorre, quando este trabalho foi iniciado, seu objetivo já estava bem definido 1 – tratar do levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador, na Bahia –, mas onde chegar com ele ainda nos era pouco claro, uma vez que havia uma miríade de possibilidades. Com o aprofundamento das leituras e, principalmente, com a apropriação do trabalho Mapeamento dos terreiros de Salvador, realizado em 2008, é que processualmente o objetivo e os resultados foram sendo delineados com mais clareza. Ou seja, num primeiro momento, o objetivo principal era fazer o tal levantamento dos terreiros umbandistas em Salvador, buscando mensurar seu aumento desde o Mapeamento dos terreiros de Salvador. Todavia, na medida em que nossa opção metodológica é distinta daquela empregada no já citado trabalho no processo de levantamento e das leituras realizadas para compreensão do que é a Umbanda e como ela se apresenta em Salvador, por um lado constatou-se que não seria possível análises comparativas quanto ao quantitativo de terreiros, mas por outro foi identificada o quão escassa é a produção acadêmica em torno do tema, principalmente no que diz respeito ao seu entendimento e às ramificações que a compõe. Assim, nossa intenção é realizar o levantamento dos terreiros umbandistas, descrevendo o processo e as descobertas decorrentes dessa busca, além de tentar entender o que é a Umbanda e suas ramificações, visando sua correlação com a produção do espaço urbano de Salvador. Marcadamente reconhecida pelas religiões de matriz afro-brasileira, particularmente o Candomblé, a cidade pode ter também com a Umbanda registros que influenciaram (e ainda influenciam) seu processo de formação, eventualmente apagados ou atravessados por outros. Por isso, tenta-se romper essa invisibilidade, reafirmando a identidade e o respeito à Umbanda, pelo reconhecimento dessa manifestação religiosa que precisa ser divulgada e difundida, de modo a se combater estereótipos e preconceitos. É importante já aqui mencionar, em primeiro lugar, que a Umbanda é “constitutivamente plural, diversa, e apesar de utilizar materiais, conceitos e preceitos de outras religiões, construiu sua própria identidade” (NASCIMENTO, 2020, p. 8). Ou seja, é conhecida e divulgada como a única religião brasileira, de base monoteísta e inspirada em matrizes religiosas relacionadas aos cultos africanos, indígenas, católicos 2 3 e espíritas/kardecistas – por isso, a veneração ao Deus supremo, além dos Orixás 4 e dos guias e das entidades espirituais. Em segundo lugar, a menção, no título deste artigo, a “ponto riscado no chão” é uma referência aos símbolos que os guias e entidades espirituais usam para identificar sua 5 relação com a falange e o sentimento a eles atribuídos. São marcas únicas, realizadas pelos/as médiuns quando incorporados/as por esses espíritos e que, geralmente, trazem imagens, traços e simbologias que podem traduzir a identificação dos terreiros de Umbanda. E, por fim, a compreensão de que o terreiro é “um espaço produzido pelos umbandistas no exercício de sua fé, na manifestação religiosa que representa a territorialidade e a identidade de um grupo, que se constrói socialmente a partir de suas crenças e práticas ritualísticas” (NASCIMENTO, 2020, p. 27). Essas três menções, portanto, são também formas de destacar a heterogeneidade cultural que envolve a constituição do que é a Umbanda e, por conseguinte, de seus pontos riscados e da compreensão do que é o espaço físico de seu culto. Ao realizar p. 171 o levantamento dos terreiros umbandistas em Salvador e buscar compreender sua relação com a produção de seu espaço urbano, o texto se dedica, de certo modo, a um resgate e uma reflexão sobre a religião na cidade, considerando: (1) sua liberdade de culto, que elimina tudo o que limita as escolhas; (2) o fato de integrar a cultura brasileira e resistir, a despeito das adversidades; e (3) ser celebrada pela diversidade, com forte apelo ao cuidado e à preservação da natureza. Essas dimensões podem ter possibilitado a ampliação da autodeclaração, nos últimos Censos Demográficos de 2000 e 2010, no Brasil, daqueles/as que se afirmaram Umbandistas de 397.431 para 407.331 pessoas. Esses números podem (ou não) contribuir para o reconhecimento, entre 2000 e 2010, da ampliação de instituições religiosas de matriz afro-brasileira. Afinal, no país, os/as autodeclarados/as Umbandistas, Candomblecistas ou de outras religiosidades afro-brasileiras passaram de 525.013, em 2000, para 588.797, em 2010. Na Bahia, esses números são ainda mais representativos, pois passaram de 21.733, em 2000, para 47.070 (em 2010); e, em Salvador, de 11.959, em 2000, para 28.019, em 2010. No caso da capital baiana, uma das formas de corroborar com essa ampliação 6 é pondo em relação esses dados censitários e o mapeamento de terreiros. Esse levantamento, embora possa ser usado para fomentar a elaboração de políticas públicas, teve como objetivo principal reconhecer e valorizar os terreiros, contribuindo para diminuir os preconceitos e as intolerâncias religiosas existentes em torno das práticas e das religiões de matriz africana. Para este estudo, foi ponto de partida o Mapeamento dos Terreiros de Salvador (2008), que registrou 1.165 terreiros, dos quais 24 (2,1%) se declararam de Umbanda. Vale ressaltar que mesmo o material sendo em parte fruto de inquietações pessoais, em torno da busca por respostas, compreensões, ligações com a ancestralidade e a espiritualidade, ele traz uma abordagem ainda pouco elaborada nas publicações científicas que tratam da Umbanda, em Salvador. Por esse motivo, compreende-se sua relevância acadêmica e ancestral para a produção da cidade e das memórias de sua população, que se diferenciam do pensamento e religiões hegemônicas. p. 172 O surgimento da Umbanda: um olhar de perto e de dentro ou de longe e de fora? É importante logo salientar que a inferência no título nesta subseção não representa dois olhares dicotômicos, mas objetiva ressaltar o já mencionado: que a leitura pode pretensamente associar o início da jornada espiritual de uma das autoras na Umbanda e a busca por respostas instigadas pelo despertar da espiritualidade da outra, não manifestada pela religião. Por esse motivo, teve-se o cuidado para que as vivências e ainda poucas experiências de uma autora não repercutissem na forma de ler e analisar da outra, cuidado que possibilitou uma leitura de atravessamentos e completudes. Assim, olhando de fora e de longe quando se trata do surgimento da religião, tem-se que, historicamente, a Umbanda surge no Brasil com esta nomenclatura num período situado entre o final do século XIX e início do século XX, segundo Adriana Cristina Zielinski do Nascimento (2020), havendo variações interpretativas sobre como se deu esse surgimento. 7 Segundo Ortiz (1999), mencionado pela supracitada autora, nesse período ocorreu a proclamação da República e a abolição da escravatura, e no Rio de Janeiro essas transformações podem ter influenciado um maior contato entre os elementos rituais 8 dos cultos sincréticos chamados de “macumba” com o espiritismo kardecista, que havia chegado ao Brasil na segunda metade do século XIX. De acordo com a autora e o autor, esse contato ocorreu primeiramente nas camadas mais pobres da população, em seguida na classe média, tendo dessa junção de ritos surgido a Umbanda. Sinaliza-se quanto ao emprego do termo “macumba” como sendo referente a “denominações religiosas de origem ou influência africana [...] que compõem um largo espectro de crenças e práticas assemelhadas, mas diversas, que usualmente 9 denominamos religiões afro-brasileiras” (PRANDI, 2014 apud CARNEIRO, 2014, p. 8). Ou seja, quando se trata das religiões afro-brasileiras, tanto a localização geográfica quanto a predominância de uma etnia devem ser consideradas como caracterizadoras de cada culto, por conseguinte das denominações que recebem. Por isso, as relações entre essas diversas religiões são tão complexas, pois cada comunidade tem sua tradição e sua história. Nenhuma é melhor ou pior que a outra, apenas se adequa ao ângulo de interpretação daquele/a que a escolheu. Isso repercute na pluralidade e na especificidade de cada culto, inclusive, quanto à Umbanda e a seu processo de formação. Subsequentemente, tem-se um quadro de Carneiro (2014), no qual sintetizam-se essas complexidades. p. 173 Quadro 1 – Religiões afro-brasileiras: descrição, tradição, cultos e suas variações Fonte: Carneiro (2014, p. 18) Grupos das religiões Descrição afro-brasileiras p. 174 Tradição, cultos e variações participantes de um mesmo conjunto Culto de Nação Candomblé em suas três principais Conjunto composto por tradições com nações: Ketu (iorubá), Angola (bantu) forte influência africana. O culto dá e Jêje (fons); Batuque; Candomblé de ênfase aos deuses denominados orixás, Caboclo; Jarê, Culto ao Ifá; Culto aos voduns ou inquices. Egungun; Xangô do Nordeste; Xambá. Encantarias Conjunto marcado pela presença dos encantados. Os encantados ou C a t i m b ó ; J u re m a ; B a b a s s u ê ; “incantes”. Alguns desses não chegaram Pajelança; Cura; Tambor de mina; a encarnar. Os que viveram em terra Terecô; Toré. desapareceram misteriosamente sem morrer. Umbandas Conjunto marcado pela presença de ancestrais ilustres no culto. Por exemplo: caboclo, preto-velho, criança, exu (entidade e não apenas o orixá), baiano, marinheiro, boiadeiro, cigano. Macumba; Cabula; Umbanda Branca ou Cristã (também chamada de espiritismo de umbanda); Umbanda Omolocô; Umbandaime; Umbanda Esotérica ou Iniciática; Umbanda Oriental; Umbanda Mística; Umbanda Traçada [...]. Compreender a diversidade religiosa afro-brasileira numa sociedade que habita nesse país-continente é importante, mas apesar disso a intenção aqui é tentar trazer as origens da Umbanda. Assim, vale lembrar que desde 1720 já existia no Brasil, não só no Rio de Janeiro, cultos que traziam o sincretismo e elementos indígenas, portugueses e africanos, que tinham como objetivo realizar curas, adivinhações e limpezas espirituais; e que tinham, em seu ritual, cânticos e danças embalados pelo som de atabaques, com a incorporação de entidades espirituais (NASCIMENTO, 2020). Por isso é que se pode afirmar que, embora a Umbanda seja conhecida e amplamente divulgada pela sua maleabilidade e sincretismo religioso – pautados nas práticas religiosas de matriz africana e de influências indígena, católica e kardecista –, ela vem se ressignificando de acordo com os acontecimentos culturais e conflitos enfrentados tanto quanto adaptando-se às transformações sociais, políticas e econômicas no Brasil. Para o que Verger (1999, p. 193) afirma: “a Umbanda é uma religião popular tipicamente brasileira, que apresenta um caráter universalista que engloba principalmente em seu corpo doutrinário cinco influências: africana, católica, espírita, indígena e orientalista”. Olhando de perto e de dentro, a versão mais conhecida sobre o surgimento da Umbanda é de que a mesma foi anunciada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, através do médium Zélio Fernandino de Moraes, no dia 15 de novembro de 1908, no distrito de Neves, no município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. 10 De acordo com o diálogo entre o espírito do Caboclo, incorporado no referido médium, e o então presidente da Federação Espírita de Niterói, o médium vidente José de Souza, no dia seguinte ao seu anúncio, na casa de Zélio Fernandino: haverá uma mesa posta e toda e qualquer entidade que queira ou precise se manifestar, independentemente daquilo que haja sido em vida, [...] serão ouvidos e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais, e ensinaremos àqueles que souberem menos, e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não, pois esta é a vontade do Pai. Com essa fala, tem-se a origem da Umbanda com a perspectiva do respeito ao saber do mais velho. Por isso, no cotidiano umbandista vislumbra-se o resgate e a manutenção dos valores e saberes populares que lhe dão forma. Especialmente, porque historicamente esses vêm sendo invisibilizados pela epistemologia eurocêntrica e há a urgente necessidade de reconhecer a complexidade do universo simbólico umbandista, que dá acesso a conhecimentos que desconstroem o imaginário colonial. Nesse sentido, a busca pelo aprofundamento – de perto e de dentro – e mesmo por uma ótica mais afastada – de longe e de fora –, o que se pode dizer é que a Umbanda é uma religião em processo, que vem se autoconstruindo a partir de sua própria prática, pelas inter-relações das inúmeras vivências religiosas de seus/suas líderes e daqueles/as que optaram (e optam) por segui-la. E que embora tenha como prerrogativa amparar e socorrer a todos/as que a buscam, não há como transformar seu universo múltiplo em algo unívoco, estritamente dogmático e doutrinário. A Umbanda é dinâmica, pluralista, multicultural e inter-racial. Mesmo a Umbanda sendo reconhecida como a religião na qual a manifestação dos espíritos se dá para a prática da caridade, fundamentada no amor incondicional e respeito ao livre arbítrio, é certo que há diferenças quanto as capacidades de assimilação das diversas formas de cultos de espíritos em cada região do país. Por isso, é essencial respeitar as diferenças existentes e, concomitantemente, aproximá-las, a partir da compreensão dos conteúdos que expressam. p. 175 De acordo com Brown et al. (1985), os primeiros terreiros encontrados no Brasil, foram a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, fundada por Zélio Fernandino, além de outras sete tendas fundadas por umbandistas que frequentavam a referida Tenda. Nelas, talvez pela herança kardecista, a prática de culto não representa a diversidade ritualística que hoje a Umbanda possui. Seu processo dinâmico de construção, seja na ciência, seja no senso religioso, repercute em suas ramificações: Quadro 2 – As “Umbandas” Fonte: Elaboração própria (2021), com base em Barbosa Júnior 11 (2014) e Pinheiro (2009) . Ramificações Umbandas Descrição Umbanda Tradicional Genericamente, refere-se à Umbanda organizada por Zélio Fernandino. É a vertente fundamentada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, Pai Antônio e Orixá Malê, através do médium Zélio Fernandino de Morais (1891 – 1975). É considerada a primeira e mais tradicional Umbanda, pois através dela, a religião começou a ser fundamentada com a criação da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade em São Gonçalo/ RJ (16/11/1908). Trabalha basicamente com as linhas de Caboclos e Pretos-velhos, unindo seus mistérios, magias e sabedoria. Empenhada em prestar a caridade. Umbanda de Mesa Branca ou Kardecista Geralmente, não utilizam elementos africanos (em algumas casas, nem mesmo o culto direto aos Orixás) não trabalham diretamente com Exus e Pombogiras nem se utilizam de fumo, álcool, imagens e atabaques. Por outro lado, trabalham com Caboclos, Pretos-Velhos e Crianças, bem como se valem de livros espíritas como base doutrinária Essa vertente tem uma forte influência do Espiritismo (Kardecismo), também chamada Umbanda de Cárita porque abre as sessões com a Prece de Cáritas, é praticada em centros espíritas que passaram a desenvolver giras de Umbanda junto com as tradicionais sessões espíritas. Usa roupa e sapatos brancos, mesa, sobre assoalhos de madeira e se preocupa muito em praticar a caridade material e espiritual. Umbanda Esotérica Seu maior representante é W. W. Mata Pires (Mestre Yacapany). A Umbanda por essa perspectiva estuda as forças sutis da natureza pelas quais Deus, seus Anjos, Orixás, gênios e espíritos se manifestam. Estuda também a astrologia, a parapsicologia, a grafologia, a quiromancia, as propriedades medicinais e espirituais das plantas, a simbologia que envolve pontos riscados, talismãs, amuletos. Assim, adota ritos mágicos europeus, o que a torna mais aberta à presença de brancos e membros de classes mais altas. Umbanda Branca* Umbanda Esotérica p. 176 Ramificações Umbandas Descrição Derivada da Umbanda Esotérica, foi fundamentada por Pai Umbanda Iniciática Rivas (Mestre Arhapiagha), com grande influência oriental, como uso de mantras indianos e do sânscrito. Umbanda Esotérica Umbanda Mística Umbanda Branca Umbanda Mirim Esotérica Tem por base a religião e a fé. Diz o místico que, quando todos os recursos materiais se esgotarem, restará a fé. Em outras palavras: quanto toda a sabedoria humana e todos os remédios falharem, a fé faz o milagre. É fundamentada pelo Caboclo Mirim com o seu médium Benjamin Figueiredo (26/12/1902 – 03/12/1986), surgida em 1924 com a fundação da Tenda Espírita Mirim, no Rio de Janeiro e responsável pela criação do Primado de Umbanda, fundado em 1952. Genericamente conjugação do culto africanista aos Orixás ao culto dos Guias e das Linhas de Umbanda. Essa vertente vem com o processo de “umbandização” das Umbanda Omolocô casas de Omolocô e começou a ser fundamentada em 1950 no Rio de Janeiro pelo médium Tancredo da Silva Pinto, Tátá Tancredo (10/08/1904 – 01/09/1979). Umbanda Traçada Umbanda Cruzada Em linhas gerais, conjuga a Umbanda Tradicional e os ritos africanistas do Candomblé Angola, praticado em Santa Catarina e que teve sua origem no Rio de Janeiro. É também o resultado da transformação (umbandização) de antigos terreiros de Almas e Angola. Existe um forte Umbanda de Almas sincretismo entre os Orixás e os santos católicos vinculados e Angola às tradições africanas, incluindo obrigações internas denominadas feituras de Orixá ou camarinhas. Nessas atividades o médium tem sua cabeça raspada, fica recluso no Terreiro, deitado numa esteira por sete dias e, como ocorre no Candomblé, oferece menga – sangue de animais – aos Orixás. Umbandomblé** O sacerdote ora toca para Umbanda, ora para Candomblé, em sessões com dias e horários diferenciados. Casas de Candomblé que se identificaram com o movimento da Umbanda, mais especificamente Candomblé de Caboclo, começaram a adotar em suas práticas, também as giras de Umbanda alternando com o culto do Candomblé em sessões diferentes (dias e horários). Umbanda Popular Praticada antes do trabalho de Zélio Fernandino, conhecida também como macumba, de forte sincretismo entre Orixás e santos católicos. Alguns consideram o chamado Candomblé de Caboclo também uma forma de Umbanda Popular. p. 177 Ramificações Umbanda Cruzada Umbandas Descrição Umbanda Popular É uma das mais antigas vertentes, resultado do processo de transformação em Umbanda (umbandização) de antigas casas de Macumba dos morros cariocas. Como o próprio nome já diz, é uma das formas mais abertas a novidades e praticadas no Brasil, pois é possível adotar práticas místicoreligiosas que mais convêm associando a duas ou mais religiões. Umbanda de Preto-Velho Forma de Umbanda na qual o comando cabe aos PretosVelhos. Umbanda de Caboclo Forma de Umbanda na qual o foco são os Caboclos, prevalecendo a influência das culturas indígenas. Foi fundamentada por Pai Benedito de Aruanda e pelo Ogum Sete Espadas da Lei e da Vida, através do médium Rubens Saraceni, em São Paulo, no ano 1966, com a criação do Curso de Teologia da Umbanda. Seus principais divulgadores são: o Colégio de Umbanda Sagrada Pai Benedito de Aruanda, fundado em 1999; o Umbanda Sagrada Instituto Cultural Colégio Tradição de Magia Divina, de 2001; a Associação Umbandista e Espiritualista de São Paulo, de 2004. Além dos livros escritos pelo próprio Rubens Saraceni, do Jornal de Umbanda Sagrada (editado por Alexandre Cumino), do programa radiofônico Magia da Vida e dos colégios e terreiros criados pelos discípulos de Saraceni. *Mesmo não sendo o viés da discussão, diante do contexto atual é importante não deixar passar despercebida a conotação pejorativa ao emprego dos termos “branca” e “negro” como referência, respectivamente, a compreensões mais afastadas dos elementos africanos ou como algo “do mal”, entendidos como causa e consequência da discriminação racial. Embora as autoras se pautem em referências históricas e tragam as discussões tal como elas se apresentam, isso não significa concordância, até porque desde seus lugares de fala, entendem a necessidade de uma reconstrução conceitual quanto ao emprego dos termos com vistas a não mantê-los sedimentando o racismo estrutural tão perverso e cruel existente na sociedade. Todavia, para essa realização, acreditam ser necessária uma releitura e aprofundamento teóricos que ainda não dão conta, mas que certamente constitui-se em um caminho a ser refletido e buscado no âmbito de futuras e fundamentais discussões em torno da temática. p. 178 **De acordo com Pinheiro (2009), ao mencionar o editorial de número 10 da Revista Espiritual de Umbanda – de circulação nacional entre 2003 e 2008 –, não seriam coerentes tanto a utilização dos termos Umbandomblé quanto Quimbanda, com referência a Umbanda, como uma de suas compreensões ou como variação de seu culto. Aliás, para ele, e por conseguinte para os editores de tal periódico, não seria admissível o emprego dos termos: o primeiro, Umbandomblé, porque associa as práticas de Candomblé e da Umbanda, o que não seria sincretismo, mas sim a migração de práticas religiosas, de rituais ou filosofias do Candomblé para a Umbanda; e o segundo, Quimbanda, porque designaria um culto autônomo, independente e até mesmo oposto à própria Umbanda, já que admite trabalhos voltados para o mal, de magia “negra”. É oportuno mencionar que as Ramificações da Umbanda, ou as Linhas de Umbanda, ou as Correntes de Umbanda, ou simplesmente as “Umbandas” podem representar, de um lado, formas de legitimar socialmente a religião que é tão diversa; e, de outro, uma busca pela aceitação e pela superação dos estigmas – como marginalidade, transgressão, ignorância e “atraso” –, dada sua pluralidade. Em outros termos, ao considerar as relações sociais e de fé tão multifacetadas, haja vista a liberdade de culto, que elimina tudo o que possa limitar as escolhas preconizadas pela prática umbandista, essas representações tentam aproximar as diversas formas que os dessemelhantes grupos integram, acabando por criar “identidades” cujo significado simbólico pode ser o de um status ou de uma posição na sociedade. Como se extrai da leitura de Pinheiro (2009), essas ramificações, linhas, correntes, modalidades ou “Umbandas” se relacionam a “formas institucionalizadas e objetivas, em virtude das quais ‘representantes’ marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo” (p. 8). São tentativas de defender determinado segmento ou corrente dentro da própria Umbanda, ou simplesmente de codificar, de trazer unificação doutrinária à religião. Ao pôr em interface o olhar de perto e de dentro com o de longe e de fora, ainda se percebe que a pluralidade da Umbanda se reflete na enorme produção de livros e informativos da religião. Como aponta Pinheiro (2009), esse esforço de escritores umbandistas (ou não umbandistas) tenta reproduzir o espaço das tramas cotidianas e o encontro das resistências, trazendo experimentações quanto às ressignificações das relações do dia a dia, somadas a oralidade, além da escrita. Essa vasta produção bibliográfica e acadêmica, notadamente nas regiões Sul e Sudeste do país, não reverbera, por exemplo, em Salvador, cuja lacuna nas abordagens científicas e acadêmicas é apontada a seguir. p. 179 “Deixa a Gira girar!” – registros sobre a Umbanda em Salvador “Iê, oh... Meu pai veio da Aruanda e a nossa mãe é Iansã... Oh, gira, deixa a gira girar... Deixa a gira girar Saravá, Iansã! É Xangô e Iemanjá, iê Deixa a gira girar...” Esta seção traz no título e em sua epígrafe trechos de um cântico ou ponto cantando nos terreiros de Umbanda. A intenção, ao fazermos essa inferência, é mostrar as várias possibilidades de estudar e entender a riqueza da religião. As giras são sessões geralmente realizadas nos terreiros de Umbanda, mas tal exercício da fé com a celebração de rituais também pode ocorrer nos espaços da natureza. Nesse sentido, se as formas de culto da Umbanda são multifacetadas, as formas de compreendê-la e as possibilidades de suas celebrações ritualísticas também são. E o que tudo isso tem a ver com os registros sobre a Umbanda em Salvador? 12 De maneira geral, como depreendemos da leitura de Isaia, mencionado por Pinheiro (2009, p. 6), “os significados sociais não são impostos unilateralmente, mas subordinados a um jogo relacional, em que a realidade vivida impõe-se e anula o desejo meramente arbitrário de nomear a realidade”. Ou seja, não se trata de como se optou por nomear a seção, mas de transgredir ao que se impõe como significados socialmente dominantes. p. 180 Nesse sentido, o título quer trazer de forma alusiva a força da palavra, no caso do cântico, que também para Isaia representa “fonte imanente de axé, força vital, [... uma vez que] sua pronúncia no ato da fala [...] movimenta as forças sagradas” (ISAIA, 1999 apud PINHEIRO, 2009, p. 7). Mais uma forma de legitimação e aceitação do que é a Umbanda, que no caso de Salvador, pelas suas marcas e raízes históricas, pode talvez ainda ter na oralidade – característica fundante das religiões afro-brasileiras – o principal mecanismo de transmissão dos conhecimentos e da manutenção das relações de poder e reciprocidades estabelecidas por aqueles/as que optaram (e optam) pela religião. Por não ser o foco de nossa análise, não se tem como ratificar esse pensamento, embora possa-se notar que as pesquisas e registros em publicações científicas acerca da Umbanda em Salvador sejam escassas. Sabe-se que os textos acadêmicos não são a única forma de registro das práticas culturais e religiosas. A importância do registro histórico e de seu processo de consolidação traz, ao mesmo tempo, visibilidade em outras esferas que não aquela que abarca a comunidade religiosa, e possibilidades de reflexão e questionamentos em torno dos diversos vieses de diálogo que se podem estabelecer. Por isso, como afirma Prandi (2014), no prefácio do livro de Carneiro (2014), “as religiões afro-brasileiras são religiões rituais, pouco afeitas à reflexão sistemática sobre si mesmas, baseadas fortemente na mitologia e sua representação ritualística. Diz-se que ser afro-brasileiro é repetir a tradição”. Para o autor, e inclusive como dito antes, a manutenção das práticas religiosas afro-brasileiras por meio da oralidade é uma tradição, faz parte de sua compreensão, do aprendizado no chão do terreiro. Todavia, o mesmo Prandi (2014) traz que: Talvez por herança kardecista, a umbanda, desde cedo, apegou-se à produção e ao consumo da palavra escrita. Mas se manteve longe da construção de um exercício intelectual que se propõe a estudar, refletir e avançar na interpretação de si mesma, na natureza de suas divindades e no sentido de seus ritos. Livros fazem parte do cotidiano umbandista, mas o assunto primeiro é a mitologia dos guias e entidades e o receituário ritualístico, o que não é pouco. Muitos deles sequer têm autoria que não seja atribuída a espíritos, guias, entidades que, por si só, impõem-se com autoridade capaz de dificultar o questionamento que é próprio da reflexão intelectual e científica. Em outros termos, para Prandi, muito embora a Umbanda tenha na escrita uma potente ferramenta de manutenção de sua história, de sua consolidação e da afirmação de seus ritos e símbolos, essa não se faria seguida de um embasamento teórico e analítico que possibilitasse diálogos e reflexões acerca dos diversos conflitos e preconceitos que, por exemplo, cercam a religião. Essa é a razão de nossa opção por tratar dos registros sobre a Umbanda em Salvador considerando a produção científica que versa sobre ela, por se entender que apesar de ainda incipiente, essa produção traz aquilo que Isaia ressalta – “a força da palavra” –, ainda que, aqui, não pela oralidade, mas pela escrita acadêmica. Para tanto, os bancos de dados utilizados no levantamento foram os de dissertações de mestrado e pesquisas de doutoramento da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal p. 181 de Nível Superior (CAPES), da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Scielo e da Biblioteca Eletrônica Científica Online, a partir das seguintes palavras-chave: Umbanda e Umbanda em Salvador. O quadro abaixo apresenta as produções científicas que abordam a Umbanda em Salvador, publicadas até 10 de junho de 2021. Quadro 3 - Publicações científicas sobre a Umbanda em Salvador Fonte: elaboração própria (2021). Autoria BORGES, Mackely Ribeiro MIRANDA, Eduardo Oliveira e SILVA, Hellen Mabel Santana MOURA, Mariana Mendes PAZ, Adilson Meneses da Título Ano Gira de escravos na Umbanda de Salvador-BA 2005 Umbanda e Candomblé: Pontos de Contato em Salvador – BA Gira de escravos: a música dos exus e pombagiras no Centro Umbandista Rei de Bizara Principais espaços retratados 2006 Centro Umbandista Rei de Bizara 2006 Festa de Iemanjá no Bairro Rio Paisagem e Umbanda: análise da festa de largo 2010 A Umbanda em Salvador: memórias e considerações 2012 Umbanda em Salvador (BA): memórias e narrativas 2013 Pedrinha Miudinha em Aruanda ê, Lajedo: o modo de vida da Umbanda 2019 Vermelho e Centro de Iemanjá 13 Umbandista Mãe Liu Ogum de Ronda Rei dos Astros, Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro e Casa de Lua Cheia Centro de Umbanda Irmão Carlos A publicação de maior visibilidade e abrangência é a dissertação de Mariana Moura, defendida em 2013, em que a presença dos terreiros umbandistas e de suas tradições é investigada principalmente através das reportagens publicadas nos jornais locais. Segundo a autora, tendo como base as informações levantadas em jornais, pode-se considerar que a existência da Umbanda em Salvador ocorre desde a fundação do Centro Umbanda São Jorge Ogum de Ronda, em 1922, e do Terreiro Gagá Umbanda Afuramã, em 1927, apesar de não se ter conhecimento do registro desses terreiros em instituições ou órgãos oficiais. Entretanto, a maior parte dos registros bibliográficos e documentais apontam a presença da Umbanda em Salvador a partir da década de 1950, tornando-se mais cultuada na década de 1960 (BORGES, 2006; SANTOS, 2008; PAZ, 2019). p. 182 A dissertação de Borges (2006), defendida na Faculdade de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA), registra as práticas ritualísticas, principalmente a oralidade 14 e os pontos cantados do Centro Umbandista Rei de Bizara, que cultua uma Umbanda Mista ou Umbandomblé, que possui similaridades com o Candomblé Angola e o de Caboclo, o centro funciona desde a década de 1950, apesar de ter sido formalmente fundado somente em 1977. Por sua vez, a tese de Paz (2019), defendida na Faculdade de Educação da UFBA, apresenta o cotidiano e as práticas ritualísticas do Centro de 15 Umbanda Irmão Carlos – que, na descrição do autor, parece ter alinhamentos com a Umbanda Cruzada –, cujas atividades iniciaram em 1981. Comparando-se os relatos e os depoimentos nessas duas publicações, é possível perceber como as práticas umbandistas são diversas e influenciadas pelas experiências de vida e formação mediúnica de cada dirigente de terreiro. Finalmente, o artigo de Miranda e Silva (2010), além de trazer os costumes umbandistas durante a Festa de Iemanjá, permite perceber conflitos entre praticantes do Candomblé e da Umbanda em Salvador, já registrados na década de 2010. Vale acrescentar que a primeira tentativa de criação de uma associação que promovesse a união entre os terreiros umbandistas baianos foi identificada em 1974, com a formação da União de Umbanda da Bahia. Criada pelo babalorixá carioca Mário 16 de Xangô, sua sede funcionava na residência do babalorixá, no bairro de Nazaré – mais especificamente, na Travessa Joaquim Maurício, conhecida como Cova da Onça. Posteriormente, foi transferida para Pau da Lima e, depois, para Itapuã (MOURA, 2013). Em reportagem, o babalorixá ressalta sua influência sudestina: Na Bahia tem poucos umbandistas, os poucos terreiros que serão criados aqui, se basearão nos moldes de Rio e São Paulo, onde a Umbanda é realizada de portas abertas para a caridade, fugindo ao folclore, ao turismo, “Em suma, a Umbanda é um ritual nosso autêntico, onde respeitamos os orixás e não uma entidade para inglês ver [...] Atualmente as várias casas que praticam e seguem a linha de Umbanda possuem programações que se desenvolvem por toda semana, e já contam com 3 terreiros situados em Brotas, 1 no Sertanejo, na Ribeira, Liberdade, e 2 que serão considerados dentro de pouco tempo (se tudo der certo) os mais famosos de Salvador (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 14/04/1974 apud MOURA, 2013. p. 48). Mário de Xangô esteve presente na mídia, principalmente nas décadas de 1970 e 17 1980, ressaltando comemorações de tradição umbandista e denunciando intolerâncias religiosas, conflitos com praticantes do Candomblé e com a Federação dos Cultos Afro-brasileiros, como aponta Moura (2013). Outra tentativa de promover a união entre os terreiros umbandistas baianos pode ser observada em 2017 e 2018, quando ocorreram em Salvador o 1º e 2° Encontro de p. 183 Umbanda da Bahia (Umbahia), promovidos pelo Centro de Umbanda Mística Oxum Apará (CUMOA), com o apoio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC). Fomentada por esses dois encontros, em 2019 foi criada a Associação de 18 Umbanda da Bahia (AUMBA), presidida pela Mãe Zaide Alencar, com Pai Leandro Seixas como vice-presidente. Nenhuma das publicações científicas identificadas e consultadas teve como foco o levantamento ou o mapeamento dos terreiros umbandistas em funcionamento em Salvador. Ainda que Borges (2006) tenha ao menos mencionado um levantamento, que teria sido realizado pela Federação Nacional de Culto Afro Brasileiro (Fenacab), com 53 terreiros umbandistas, distribuídos em 28 localidades/bairros, o autor não indicou, e também não foi encontrado, seu ano de realização, a metodologia adotada ou o nome dos terreiros, apenas a indicação dos bairros ou localidades onde se localizavam. a maior parte dos terreiros estaria situada nas proximidades do Centro Antigo de Salvador, ao passo que cinco se encontrariam no bairro de Brotas. Nesse sentido, é oportuno afirmar que a partir das pesquisas nas produções científicas utilizando as já referidas palavras-chave, foi possível notar diversas lacunas quanto aos registros históricos sobre a presença umbandista em Salvador. Diante disso, e com a intenção ainda inicial de preenchê-las, sem a pretensão de esgotá-las, a seguir é apresentado o passo-a-passo para o levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento, com base em um esforço de encontrar e registrar evidências dessa presença na cidade. Umbanda em Salvador: o passo a passo para o levantamento e um registro primário dos números Nesta seção, tratamos do passo a passo para o levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador. Para dar conta disso, vale lembrar que o ponto de partida foi seu registrado no Mapeamento dos Terreiros de Salvador (SANTOS, 2008) e aqueles mencionados nas publicações científicas anteriormente citadas de Borges (2006), Moura (2013) e Paz (2019). p. 184 19 É oportuno sinalizar que no caso do Mapeamento dos Terreiros de Salvador, entre as cinco etapas para sua realização estavam a “identificação e informações físico-ambientais e socioeconômicas dos terreiros de candomblé de Salvador” e a “seleção dos terreiros de candomblé para o cadastro físico-fundiário” (SANTOS, 2008, p. 1, grifos nossos), ainda que mais tarde os/as envolvidos/as tenham percebido que 20 seria possível realizar um censo das religiões afro-brasileiras na Bahia. Em outros termos, aparentemente a intenção inicial não foi a de mapear os terreiros de Umbanda, embora tenham sido ao final catalogados 24 terreiros umbandistas na cidade, fundados entre a década de 1950 e os anos de 2000. Nesse sentido, pode-se ressaltar a originalidade desse passo a passo, do mesmo 21 modo que a do próprio levantamento, uma vez que há uma impressão que esse número atualmente é bem maior. Em decorrência do contexto pandêmico, este levantamento ocorreu de forma não presencial, entre os dias 10 de junho e 10 de julho de 2021, e seguiu várias etapas que, embora por razões didáticas apareçam em uma ordem, na prática ocorreram, por vezes, concomitantemente e de forma complementar. Inicialmente pautadas na ideia de Moura (2013), além da própria escolha pelo emprego das palavras-chaves Umbanda e Umbanda em Salvador para as pesquisas em publicações científicas, e depois de identificados os terreiros no Mapeamento acima citado e nas referências anteriormente apresentadas, oprtou-se por buscar no Google Maps (2021), em Salvador, todos os locais que possuíam na toponímia as palavras “Umbanda” ou “Umbandista”. Com isso, foram verificados os tipos de atividades que possuíam: (a) terreiros com giras, abertos a consulentes; (b) escolas com cursos sobre os preceitos umbandistas; (c) médiuns que oferecem serviços de cartomancia e consulta aos búzios; (d) lojas de artigos religiosos. Optou-se por delimitar o levantamento, pesquisando somente as opções (a) – os terreiros - e (b) – as escolas. Com vistas a perceber as atividades dos terreiros e das escolas identificados, em seguida foram acessados seus sites e redes sociais (Facebook, Instagram e YouTube). Nessa etapa, foi possível notar a relação e/ou as parcerias que existem entre esses terreiros com outros também localizados em Salvador. A investigação dessa rede de relações possibilitou que fossem encontrados ainda mais terreiros, para os quais foram adotados os mesmos procedimentos de verificação junto a seus sites e redes sociais – o que possibilitou que, mais uma vez, novos terreiros fossem identificados. Nesse processo, notou-se que muitos, apesar de se declararem umbandistas, não possuem referências à Umbanda em seu nome, como será visto adiante. p. 185 Como forma de complementar e também de certo modo “ver”, “reconhecer” ou apenas “identificar visualmente” esses terreiros, seguiu-se a verificação de sua localização através das imagens do Google Street View (2018, 2019). Com isso, além dessa identificação visual, tentava-se encontrar indícios de seu funcionamento. E foi observado em alguns casos a presença de letreiros com o nome do terreiro e cartazes com informações de funcionamento. Todavia, a maior parte possuía apenas plantas de uso ritualístico na fachada. Ressalta-se que, desde o início da pandemia de Covid-19, as atividades presenciais nesses terreiros tornaram-se restritas, mas as ações de caridade continuaram, assim como a consulta aos búzios e a manutenção dos espaços físicos. Também foi identificado o aumento das palestras e lives virtuais, disponibilizadas nas suas redes sociais. O levantamento realizado buscou evidenciar o ano de fundação, quando foram registrados em algum órgão oficial – o que é diferente da data em que o terreiro iniciou suas atividades, que em muitos casos antecede em alguns anos ao registro oficial de funcionamento. Além disso, houve casos cujo registro oficial não existiu ou não foi identificado; nestes o ano de início das atividades foi considerado como o oficial. Na sequência, o Quadro 4 traz os terreiros umbandistas identificados em Salvador. Quadro 4 – Levantamento inicial dos terreiros de Umbanda, por bairro, ano de fundação e status de funcionamento, em Salvador Fonte: elaboração própria (2021), com base em Santos (2008); Moura (2013); Paz (2019); Google Maps, redes sociais dos locais levantados e entrevistas informais. nº Nome Bairro Ano de Fundação Em funcionamento 1 Centro Umbanda São Jorge Ogum de Ronda INE** 1922* Não 2 Terreiro Gagá Umbanda Afuramã Engenho Velho de 1927* Brotas Não 3 4 5 6 Umbanda Centro de Umbanda Ogum de Ronda Rei dos Astros Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro Centro de Caboclo Serra Negra da Aldeia de Jequitiriça Centro de Umbanda Ogum de Ronda Centro Luz do Mestre Centro de Umbanda Oxóssi Guerreiro Centro de Umbanda Mística Oxum Apará CUMOA Centro de Umbanda Ogum Estrela Castelo Branco Pernambués Amaralina Sete de Abril 1950 1956 1956 1960 INE** INE** Sim Sim Dom Avelar 1962 INE** Cajazeiras IV INE** Águas Claras 1964 1969* 1970 INE** Não Não Piatã 1971 Sim Barbalho 1974 Não 7 8 9 10 p. 186 11 12 n Nome Bairro Ano de Fundação Em funcionamento 13 14 União de Umbanda da Bahia Centro de Oxalá Nazaré São Marcos 1974 1976 Não INE** 15 Sultão das Matas Luís Anselmo 1976 INE** 16 17 18 Casa de Lua Cheia Cabula Centro Umbandista Rei de Bizara Brotas Centro de Umbanda Caboclo Pena Branca Ribeira Boa Vista do (não informado) Lobato Ylê Axé Oiassi Fazenda Coutos Boa Vista de São Centro de Umbanda Obaluaiê Caetano Centro de Umbanda Irmão Carlos Alto de Coutos Centro de Caboclo Sete Flechas Vasco da Gama Centro de Umbanda Jequiriça Sultão das Praia Grande Matas - CEUJSM Centro de Umbanda Juriti (Razão social: Associação Universalista para o Cabula VI Desenvolvimento da Humanidade) Centro Espírita Caboclo Tumba Jussara Bairro da Paz Centro Umbandista Paz e Justiça Luís Anselmo Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol Cabula V Nordeste de Ogum de Kariri Amaralina Casa de Umbanda Giro de Caboclo Fazenda Grande II Casa de Umbanda Santa Rita de Cássia IAPI CUSRS Abassá de Oxum das Pedras Centro de Umbanda Cultural Oficina Boa Vista de São Mediúnica - CUCOM Caetano Jardim Nova Umbanda Esperança Centro Cigana Maguidala Alto das Pombas 1977 1977 1978 Sim INE** INE** 1978 INE** 1979 INE** 1981 INE** 1981* 1983 Sim INE** 1987 Sim 1988 Sim 1991 1995 1997 INE** Sim INE** 1998 INE** 1999 INE** 2000 Sim 2001 Sim 2002 INE** 2003 Não Templo e Escola Umbandista Mata Virgem Pituaçu 2007 Sim São Cristóvão 2008 Sim Vale dos Lagos/ Canabrava 2010 Sim Amaralina 2012 Sim Pelourinho 2012* Sim 2012* Sim 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 Fraternidade Umbandista Cavaleiros de Aruanda e Templo e Escola Caboclo Tupinambá e Vovó Benedita Lar Umbandista Mensageiros da Esperança - LUME Casa de Caridade Caboclo Boiadeiro (Razão social: Centro de Umbanda Casa de Caridade Caboclo Boiadeiro) Lar Umbandista Espírita de Oração e Caridade - LUEOC Templo Aldeia Umbandista Amor e Caridade Cassange - São - TUAC Cristóvão p. 187 nº 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 Nome Abassá de Yemanjá (Nome anterior: Tenda de Umbanda da Preta Velha Maria Conga) Casa de Umbanda União e Caridade Centro Espírita Renascer na Umbanda Centro de Umbanda Estrela de Aruanda Centro de Umbanda Caboclo Taperoá Bairro Ano de Fundação Em funcionamento Pero Vaz 2014* Sim 2014* 2014* 2014 2014 Sim Sim INE** Sim 2014 Sim 2014 Sim 2015* Sim 2016 Sim 2016 Sim 2017 Sim 2018 Sim 2018 Sim 2018* Sim 2018* Sim 2018* Sim Bonfim Pernambués Praia do Flamengo Boca do Rio Jardim das Tenda Umbandista Jornada Espiritual - TUJE Margaridas Eng. Velho de Terreiro de Umbanda Força e Luz Brotas Centro de Umbanda Mãe Iansã - CUMI São Caetano Casa de Oração Irmãos e Fé - COIF (Razão Lapinha/ social: Centro de Umbanda Casa de Oração Liberdade Irmãos e Fé) Templo de Umbanda Estrela Guia Itapuã Templo e Escola de Umbanda Pai José de Boca do Rio Aruanda Templo e Escola de Umbanda Flecharuanda Boca do Rio Templo Universalista Luz de Aruanda Garcia -TULAR Tenda de Umbanda Pai Cipriano de Angola Mussurunga I e Ogum de Ronda Terreiro de Umbanda Casa das Almas TUCA e Escola Dominical de Umbanda INE** Casa das Almas Terreiro Filhos de Oxalá ou Tenda Mussurunga I Umbandista Filhos de Oxalá 57 Centro de Umbanda 7 Caminhos de Aruanda Stella Maris 2019* Sim 58 Terreiro de Umbanda Aldeia Tupyara 2020 Sim Nova Brasília *Ano de início do funcionamento, a instituição ainda não possui fundação ou a mesma não foi identificada. **INE = Informações Não Identificadas. pesar de o levantamento não ter identificado muitos terreiros fundados entre as décadas de 1920 e 1950, isso não quer dizer que eles não existam, muito provavelmente não foram registrados em uma instituição ou órgão oficial, ou ainda, eventualmente, pode ser que o nome não tenha os termos Umbanda ou Umbandista, dificultando sua identificação em nosso levantamento. p. 188 Como sinalizado antes, alguns terreiros (16), embora se declarem de Umbanda, não trazem essa referência em seu nome – Ogum de Ronda Rei dos Astros (nº 5), Centro de Caboclo Serra Negra da Aldeia de Jequitiriça (nº 7), Centro Luz do Mestre (nº 9), Centro de Oxalá (nº 14), Sultão das Matas (nº 15), Casa de Lua Cheia (nº 16), Ylê Axé Oiassi (nº 20), Centro de Caboclo Sete Flechas (nº 23), Centro Espírita Caboclo Tumba Jussara (n°26), Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol (nº 28), Ogum de Kariri (nº 29), Centro Cigana Maguidala (nº 34), Casa de Caridade Caboclo Boiadeiro (nº 38), Abassá de Yemanjá (nº 41), Casa de Oração Irmãos e Fé (nº 49), Templo Universalista Luz de Aruanda (nº 53) – ver Quadro 4. Além disso, outra característica percebida é que geralmente aqueles que trazem 22 a denominação de “Templo e Escola” realizam cursos de teologia, curimba, desenvolvimento mediúnico e vivências. Esses cursos possuem preços específicos, geram uma renda para o espaço e auxiliam no custeio de suas despesas de funcionamento. Ainda contribuem para que se possa ter mais acesso e conhecimento sobre a religião, como por exemplo o Templo e Escola Umbandista Mata Virgem (nº 35), o Templo e Escola de Umbanda Pai José de Aruanda (nº 51) e o Templo e Escola de Umbanda Flecharuanda (nº 52). Vale ressaltar que alguns terreiros realizam cursos, mas não adotaram o nome Templo Escola, como é o caso do CUMOA (nº 11), da TUJE (nº 46) e do CUMI (nº 48). 23 Outra instituição presente em Salvador é o Curso de Curimba das Meninas, que realiza parceria com diversos terreiros de Umbanda da cidade. Ainda com referência apenas ao nome, poder-se-ia inferir uma possível relação com as Umbandas mencionadas no Quadro 2, na seção 2, casos do Centro Espírita Caboclo Tumba Jussara (nº 26), do Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol (nº 28), do Lar Umbandista Espírita de Oração e Caridade (nº 39), do Centro Espírita Renascer na Umbanda (n º 43), cujas denominações trariam uma ligação com a Umbanda de Mesa Branca ou Kardecista. Além do Ylê Axé Oiassi (nº 20) e do Abassá de Yemanjá (nº 41), cujos nomes poderiam, de alguma forma, os relacionar àUmbanda Traçada. Ou ainda, o Centro de Umbanda Mística Oxum Apará (nº 11) e o Centro Cigana Maguidala (nº 34) que, eventualmente, poderiam ter suas origens/funções mais relacionadas à chamada Umbanda Esotérica. É oportuno adicionar, de acordo com Borges (2006), que o Centro Umbandista Rei de Bizara (nº 17) também funcionou como escola voltada ao ensino dos fundamentos da Umbanda, onde o/a médium, após finalizar um curso que durava sete anos, poderia abrir seu próprio terreiro. Assim, segundo o autor, o referido centro contribuiu para formação de outros terreiros como o Centro Umbandista Oxossi Matalambô, o p. 189 24 Centro Iansã da Pedra do Ouro e o Rosário de Luz. Para a dirigente do Centro Umbandista Rei de Bizara, quando um novo terreiro se forma, o vínculo com o de origem permanece, isso porque o/a médium continua frequentando e/ou se aconselhando, esporadicamente, com a mãe ou o pai de santo, o que contribui para união entre os terreiros (BORGES, 2006). Essa característica da formação e da união dos terreiros de Umbanda, em Salvador foi percebida em outros exemplos, como o TUAC (nº 40), que se formou do LUEOC (nº 39), e que ainda mantém o vínculo com este último, muitas vezes realizando eventos, palestras e festivas juntos. Também se acrescenta que muitos deles mudaram de endereço ao longo dos anos de funcionamento, isso porque às vezes o terreiro começa nas dependências da própria residência do/a dirigente, ou em locais improvisados, e, aos poucos, conforme os/as frequentadores/as e o número médiuns em atendimento vão aumentando, o terreiro vai se tornando mais consolidado e é finalmente registrado. Um exemplo é o Abassá de Yemanjá (nº 41), que iniciou as atividades no bairro Marechal Rondon, em seguida foi transferido para Nova Brasília, localidade Vila Mar, e, atualmente, está em Pero Vaz, mantendo a mesma dirigente. Outro exemplo é a Casa de Umbanda União e Caridade (nº 42), que antes se situava no bairro Matatu e atualmente está no Bonfim. Quando se analisa a presença da Umbanda no urbano é importante compreender que os espaços de culto dessa religião são, muitas vezes, invisíveis aos olhos de leigos/ as. Principalmente, quando o terreiro ainda funciona no mesmo lote das residências dos pais e mães de santo, seja no quintal, nas lajes ou nos pavimentos superiores, ou ainda, em cômodos específicos da casa. Geralmente não existem letreiros ou símbolos que indiquem o local quanto ao uso religioso. Entretanto, é comum haver várias ervas e árvores de uso ritualístico na entrada, e em alguns dias também é possível ver filas de pessoas trajadas com roupas claras na porta e até, quem sabe, ouvir da rua o som dos atabaques durante as giras. Considerações finais? Elas não se encerram, caminham para outros e necessários começos p. 190 O território umbandista vai muito além dos limites do terreiro, sendo uma religião que tem seus fundamentos doutrinários em defesa da natureza, interagindo com diversos espaços livres urbanos a fim de realizar seus rituais e festivas, em locais como praias, rios, matas, pedreiras, parques urbanos, próximos a elementos da arborização urbana, ruas e encruzilhadas. Como a religião é também pautada na caridade, os terreiros muitas vezes intervêm em causas sociais e promovem atividades assistencialistas, atuando na escala da cidade. Dessa forma, o presente levantamento entende que a localização dos terreiros de Umbanda em Salvador é apenas uma pista, ou um ponto de partida, para a compreensão mais ampla de como se dá a influência e a atuação desses terreiros no espaço urbano. No Mapeamento dos Terreiros de Salvador, como já mencionado, identificou--se a presença de apenas 24 terreiros umbandistas na cidade. Já o levantamento realizado pela Fenacab, e que antecede o realizado em 2008, citado por Borges (2006), relatou a presença de 53 terreiros de Umbanda em Salvador. Metodologicamente, no mapeamento foram identificados todos aqueles fundados ou registrados em órgãos oficiais, e o segundo levantamento provavelmente não se restringiu aos terreiros fundados, com registros oficiais. Já o levantamento apresentado neste artigo identificou 58 terreiros umbandistas, terreiros e escolas, 32 deles fundados antes de 2008. Apesar de o levantamento apresentado neste artigo também agregar os terreiros cuja data de fundação não pôde ser detectada e aqueles que não estão mais em funcionamento, ainda assim não foi possível identificar todos os terreiros apontados pela Fenacab ou aqueles mencionados nas publicações científicas de Borges (2006), Moura (2013) e Paz (2019), sinalizados ao longo do texto. Por isso, considera-se a necessidade de os resultados serem aprofundados no campo empírico, principalmente através de visitas in loco e entrevistas, além de consulta a dirigentes dos terreiros umbandistas e consulentes/ visitantes. Mesmo assim, já é possível afirmar que a presença da Umbanda em Salvador tem aumentado, pois desde 2008 já foram identificados 22 novos terreiros. A realização do 1º e do 2º Umbahia, em 2017 e 2018, também trouxe momentos importantes de visibilidade e de reconhecimento para a religião. Como dito, as considerações aqui postas não se encerram, mas indicam novos e necessários recomeços. Por isso, pontua-se que quando da proposição inicial de atualizar o levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador, as autoras tinham em vista: (1) identificar os bairros onde se inserem; (2) entender se esses bairros são os que mais concentram pessoas negras; e (3) quais as outras relações que se estabelecem entre o terreiro (a partir das práticas que desenvolvem, além das celebrações religiosas) e o bairro ou a cidade onde se inserem. p. 191 Todavia, no processo de elaboração do artigo, viu-se lacunas que não poderiam ser negligenciadas, como a compreensão das “Umbandas”, e como a religião vem sendo tratada nas publicações científicas. Trata-se de aspectos considerados importantes para o entendimento do crescimento no número de terreiros da religião, como também de seus/suas adeptos/as. Nesse sentido, foi oportuno o desapego das expectativas iniciais, visando a perseguir e atingir um outro objetivo. Assim, neste artigo abordou-se primeiramente tais compreensões e a seguir, além do fundamental aprofundamento acerca do levantamento, pretendemos dialogar com os pontos acima suscitados, e quem sabe até mesmo realizar uma reconstrução conceitual quanto ao emprego de termos que sedimentam o racismo estrutural. Com isso, afirma-se que ainda há uma longa jornada, seja para trazer respostas às inquietações pessoais e às conexões com a espiritualidade que uniu (e une) as autoras, seja para dar visibilidade às inúmeras possibilidades de leituras que a Umbanda proporciona como a religião que “é paz e amor, é um mundo cheio de luz, é força que nos dá vida”. Notas 1 Com vistas a evitar repetições desnecessárias e, especialmente, considerando a pluralidade e a diversidade da Umbanda, representada inclusive pela multiplicidade de nomes usados como referência aos espaços físicos de seus cultos – tenda, casa, cabana, barracão, centro ou templo –, aqui o emprego será simplesmente terreiro, embora reflita as denominações anteriormente citadas. 2 p. 192 Que pode ser conhecido como Zambi, Olorum ou Olodumare, isso porque os povos africanos vinham de diferentes regiões (Congo e Angola; da Nigéria; ou do Reino do Daomé, onde é o atual Benim), que atribuíam distintos nomes ao mesmo Deus, de acordo com a nação de origem angola, ketu ou jêje e ao idioma falado, bantu, iorubá e fon ou ewé, respectivamente. Além de Nhanderu, relacionado à vertente indígena Guarani. 3 Forças elementares que representam a natureza, assim conhecidos pelos povos da nação ketu, mas que podem ser chamados inquices quando se relacionam à nação angola; ou Voduns, se estiverem ligados à nação jêje. 4 Já viveram neste mundo físico, mas após a morte, alcançaram determinado grau de elevação/evolução que retornam à terra, na condição de espíritos de caboclos, pretos-velhos – por exemplo –, cuja sabedoria os permite atuar nos trabalhos de aconselhamentos espirituais e no benzimento, normalmente intermediados/as pelos/as médiuns do terreiro, durante uma gira. 5 Correspondem aos agrupamentos de espíritos que possuem a mesma vibração. As energias de cada falange vêm de um determinado Orixá (Oxalá, Iemanjá, Oxum, Iansã, Ogum, Oxóssi, Xangô, Ossain, Oxumarê, Nanã, Obaluaê). Em uma falange, podem existir centenas de espíritos atuando com o mesmo nome, denominados falangeiros. Por exemplo, a Cabocla Jurema é uma falange constituída de milhares de espíritos que adotam o mesmo nome. “Por isso, pode ocorrer a manifestação de centenas de Caboclas Juremas ao mesmo tempo, em diversos terreiros, inclusive dentro da mesma gira de um terreiro” (NASCIMENTO, 2020, p. 14). 6 Vale acrescentar que na Bahia, além do mapeamento citado, também há o Mapeamento dos terreiros do Recôncavo Baiano (2012), que registrou 420 terreiros, dos quais 77 (15%) se auto-identificaram como pertencente à Umbanda e o Mapeamento da região do Baixo Sul da Bahia (2012) que identificou 116 terreiros, sendo 47 (43%) de Umbanda. 7 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiti- ceiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999. 8 Ainda no século XVII, um expressivo contingente de negros/as que chegou à Bahia era de origem bantu. O que possivelmente se reflete na constituição das irmandades dos homens pretos aos calundus, aos candomblés, às macumbas, às congadas e aos maracatus – manifestações que propiciavam a troca de energia e promoviam o equilíbrio ou que, como afirma Sodré (1988), destinavam-se a renovar a força. Inclusive Rolnik (1999, p. 33) registrou: “Em suas habitações coletivas moravam as tias negras e seus clãs, que praticavam o jongo, macumba ou roda de samba como extensões da própria vida familiar; pouco a pouco esses batuques familiares foram se transformando em cordões de carnaval”. 9 PRANDI, Reginaldo. Prefácio. In:CARNEIRO, João Luiz. Religiões afro-brasileiras: uma construção teológica. Petrópolis: Vozes, 2014. 10 11 Está presente em diversas obras, sites e blogs que tratam da religião. O referido autor fez um abrangente le- vantamento que conta com nomes como: Antonio Carlos do Amaral Azevedo, autor do Dicionário Histórico das Religiões; Olga Gudolle Cacciatore, autora do Dicionário de Cultos Afro-brasileiros; Josef Ronton, escritor umbandista e autor do Trabalhos Umbanda-Canjerê e Sacramentos da Umbanda Mística; A. G. Anselmo, autor de Catecismo Espiritualista da Linha Branca de Umbanda, publicado pelo Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro; Domingos Forchezatto, Maria Alice Giannoni e Maria Elidia dos Santos, autores do livro Umbanda Branca e Cristã; e Caio de Omulu, autor do livro Umbanda Omolocô. 12 ISAIA, Artur Cesar. Ordenar Progredindo: A Obra dos Intelectuais de Umbanda no Brasil da Primeira Metade do Século XX. In: Anos 90. Porto Alegre, nº 11, julho de 1999. 13 14 Localizado na cidade de Feira de Santana-Bahia. A mãe de santo do centro Tia Preta, nascida em Cachoeira-Bahia, se iniciou no Candomblé de nação ketu e angola, mas se tornou umbandista quando foi morar no Rio de Janeiro, carregando essas influências (BORGES, 2006). 15 A primeira dirigente, a mãe de santo Dona Glorinha, nascida no povoado de Bela Vista de Covas, em Itiúba, Bahia, teve sua formação mediúnica no Centro de Giro Cavaleiro Jorge de Aruanda, em Petrolina, Pernambuco. p. 193 16 Mário Bernardo ou Mário Exê Oba Kawo, umbandista desde os sete anos, e portador de inúmeros títulos pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, na condição de conhecedor e divulgador do culto de Umbanda (A Tarde, 28/01/1976, p. 2, apud MOURA, 2013). 17 Alguns exemplos: festa de Iemanjá (2 de fevereiro), grande festa de Iemanjá (31 dezembro), a noite dos Pretos-Velhos, a festa de São Jorge, dos Santos Mirins Cosme e Damião e o Baile de Nanã dedicado às professoras (MOURA, 2013). 18 Casa da Vovó Maria Conga e Caboclo Sete Flechas, localizado no Quingoma em Lauro de Freitas-BA. 19 Realizado sob a coordenação geral de Jocélio T. dos Santos, em uma parceria entre as Secretarias Municipais da Reparação e da Habitação e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), compondo o Programa de Valorização do Patrimônio Afro-brasileiro. 20 Essa realização só foi possível, segundo Santos (2008), porque o projeto passou a contar com recursos da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), além do apoio da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro (FENACAB) e da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU). 21 22 p. 194 23 O Curso de Curimba das Meninas se localiza no bairro Imbuí e foi fundado em 2019, embora esteja em atividade desde antes dessa data. 24 Embora Borges (2006) sinalize que esses terreiros estariam situados em áreas próximas ao bairro de Brotas, a pesquisa ainda não conseguiu confirmar nem a localização, nem suas data de fundação; Por isso, não são mencionados no Quadro 4. 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Curimba é um grupo de pessoas que realizam práticas musicais em rituais umbandistas, utilizando instrumentos como atabaques, agogô e a própria voz. Governo do Estado da Bahia. Secretaria de Promoção de Igualdade Racial – Sepromi. Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana do Recôncavo. Salvador, 2012. Disponível em: <http://www.igualdaderacial. ba.gov.br/category/publicacoes/>. Acesso em: jun. 2021 Governo do Estado da Bahia. Secretaria de Promoção de Igualdade Racial – Sepromi. Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana do Baixo Sul. Salvador, 2012. Disponível em: <http://www.igualdaderacial. ba.gov.br/category/publicacoes/>. Acesso em: jun. 2021. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988. VERGER, Pierre. Lendas africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio, 1999. MIRANDA, Eduardo Oliveira; SILVA, Hellen Mabel Santana. Paisagem e Umbanda: análise da festa de largo. 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Traçando mudanças nas perspectivas jamaicanas sobre raça e nação, o artigo discute “ser negro” e “ser jamaicano” como autodefinições que envolvem a negociação da consciência histórica e da conectividade transnacional. Durante grande parte do século XX, vários movimentos sociais e políticos jamaicanos tinham o continente africano como referente da negritude. No século XXI, o espaço urbano do gueto se tornou mais central nos comentários e críticas sociais jamaicanos. Ao traçar as mudanças históricas do imaginário espacial que ancora noções de pertencimento e autenticidade em termos raciais, buscamos chamar a atenção para a mutabilidade da relação entre negritude e africanidade. Palavras-chave: Jamaica, arte contemporânea, dancehall, ontologias da raça, imaginário espacial. Nuevas raíces: ontologías jamaiquinas de la negritud, desde África hasta el gueto Resumen Este artículo explora las ontologías contemporáneas de la negritud en la isla caribeña de Jamaica. Enfocando la negritud como una cuestión ontológica —una cuestión que atañe al ser, o a la existencia, de una categoría de personas—, hacemos hincapié en la dimensión espacial de tales ontologías. Basándonos en el arte contemporáneo y la música popular jamaicanos, proponemos que el lugar de la negritud, tal y como se imagina en Jamaica, se ha desplazado de África al “gueto”. A partir de las cambiantes perspectivas jamaicanas sobre la raza y la nación, el artículo analiza cómo las autodefiniciones de “ser negro” y “ser jamaicano” implican la negociación de la conciencia histórica y la conectividad transnacional. Durante gran parte del siglo XX, diversos movimientos sociales y políticos jamaicanos miraron principalmente al continente africano como referente de la negritud. En el siglo XXI, el espacio urbano del gueto ha adquirido mayor protagonismo en el comentario y la crítica social jamaicanos. Al rastrear los cambios históricos del imaginario espacial sobre el que se proyectan la pertenencia racial y la autenticidad, pretendemos poner en primer plano la mutabilidad de la relación entre negritud y africanidad. Palabras clave: Jamaica, arte contemporáneo, dance hall, ontologías de la raza; imaginario espacial. New Roots: Jamaican Ontologies of Blackness from Africa to the Ghetto Abtract This article explores contemporary ontologies of blackness in the Caribbean island of Jamaica. Approaching blackness as an ontological issue – an issue that pertains to the being, or the existence, of a category of people – we emphasize the spatial dimension of such ontologies. Drawing on Jamaican contemporary art and popular music, we propose that the site of blackness, as it is imagined in Jamaica, has shifted from Africa towards ‘the ghetto.’ Tracing changing Jamaican perspectives on race and nation, the article discusses how self-definitions of ‘being black’ and ‘being Jamaican’ involve the negotiation of historical consciousness and transnational connectivity. During much of the twentieth century, various Jamaican social and political movements looked primarily to the African continent as a referent for blackness. In the twenty-first century, the urban space of the ghetto has become more central in Jamaican social commentary and critique. By tracing the historical shifts of the spatial imaginary onto which racial belonging and authenticity are projected, we seek to foreground the mutability of the relation between blackness and Africanness. Keywords: Jamaica, contemporary art, dancehall, ontologies of race; spatial imaginary. m sua canção African, de 1977, o artista do reggae jamaicano Peter Tosh afirma: “Não importa de onde você vem, contanto que você seja um homem negro, você é um africano. Não liga para a sua nacionalidade, você tem a identidade de um africano”. Tosh segue listando uma variedade de 2 localizações espaciais, incluindo paróquias jamaicanas, outras ilhas caribenhas – como Trindade e Cuba –, e bairros negros em Londres e Nova York, como Brixton e o Bronx. Ele traça uma visão pan-africanista das identidades negras, enfatizando os vários locais diaspóricos que são unificados pela experiência afrodescendente. Quase trinta anos mais tarde, uma regravação de African foi lançada, com adições à letra feitas por artistas do reggae de raiz (reggae roots) jamaicano, como Bushman, Queen Ifrica, and Buju Banton. A regravação, ainda que incluindo a afirmação de Tosh em sua própria voz, centralizou as histórias compartilhadas de escravização que conectam negros da diáspora africana: “Bem, não importa onde o barco [i.e., o navio negreiro] atraca, pode ser Barbados ou em Portland – todos sabem que o carregamento é da África”. Além disso, a nova letra faz referência ao branqueamento de pele e à branquitude cultural: “Estou confortável na minha pele, nunca quero clarear essa melanina... Nunca trairei minha raça, ainda que enfrentemos preconceito. Vou sempre honrar minhas raízes, nunca me tornarei uma fruta-pão assada [preta por fora, branca por dentro]... Tão preto quanto for, você deve permanecer”. E 3 v.2 n.1 p. 196-227 2023 ISSN: 2965-4904 Em músicas como African e Mama Africa, Peter Tosh buscou reconectar jamaicanos negros à África, promovendo uma visão pan-africana da negritude como parte do compromisso rastafári de revalorizar as origens africanas e a negritude (leia, por exemplo, MATHES, 2010). Ainda que a regravação do século XXI de African siga nessa mesma linha, ela coloca em primeiro plano uma série de ansiedades contemporâneas que têm mais a ver com a cor da pele e a autenticidade do que com a África em si. Na versão mais recente da letra, vemos uma deixa para pensar possíveis mudanças nas formas contemporâneas de compreender e vivenciar a negritude na Jamaica. Sugerimos que tais mudanças talvez apontem para uma reconfiguração mais ampla das noções de negritude da diáspora africana. Dentro do escopo desta edição especial sobre noções de “ser africano”, nosso foco é a mudança do lugar simbólico que a África tem ocupado ao ancorar noções de negritude no Caribe. O artigo se concentra no período da década de 1960 (os principais anos da descolonização do Caribe) até o presente. Nós exploramos a importância da África para a imaginação do “eu” – ou self – negro no período imediatamente após ao colonial, rastreando sua persistência, bem como o surgimento de novas imaginações do que constitui a negritude hoje. Nós encaixamos essas discussões no âmbito das ontologias da negritude – quando falamos de tais ontologias, nos referimos a formas de “ser” negro, em um mundo estruturado pela branquitude como norma. Como aponta Michael Rabinder James, a pergunta “O que é negro?” é uma questão ontológica: “Aborda o ser, a própria existência, de uma categoria de humanos distintos de outros humanos” (JAMES, 2012, p. 107, ênfase no original). O que significa ser negro e jamaicano no século XXI e de que forma essas autodefinições envolvem a negociação da consciência histórica e da conectividade transnacional? Com base no caso da Jamaica, este artigo sugere uma abordagem Américas que enfatiza o papel dos imaginários espaciais nas ontologias da negritude da diáspora africana. Especificamente, sugerimos que concepções de negritude que estavam intimamente ligadas ao espaço imaginado da África, do meio para o final do século XX, foram complementadas nas últimas décadas por um enraizamento da negritude no “gueto”, um espaço imaginado em que a raça se mistura com a pobreza e a violência urbanas. O artigo começa com uma seção que delineia esta abordagem espacial, seguida por um breve panorama histórico da política racial na Jamaica pós-emancipação, que inclui uma reflexão sobre por que as geografias culturais da negritude teriam mudado na Jamaica. Para ilustrar tais mudanças nas ontologias jamaicanas da negritude, discutimos, em primeiro lugar, as reorientações espaciais da arte contemporânea jamaicana e, em seguida, movimentos semelhantes na música popular jamaicana. Tais discussões são baseadas em análises visuais e musicológicas, entrevistas com artistas visuais e debates midiáticos. Essas duas seções não almejam apresentar uma revisão abrangente do tema (que estaria além do escopo deste ensaio). Em vez disso, chamamos a atenção para as principais linhas discursivas de artistas visuais e músicos p. 201 jamaicanos sobre a África, a fim de oferecer uma análise preliminar do que acreditamos ser o descentramento da “África” e o surgimento do “gueto” (tanto um lugar real quanto uma metáfora espacial) como mais um local em torno do qual os significados de ser negro e jamaicano estão sendo re-imaginados. Espacializando as ontologias da negritude Críticas expressivas a concepções essencialistas de negritude vêm surgindo nas últimas décadas – vindas, por exemplo, dos estudos críticos sobre raça. Esse debate desafia a ontologia biológica da raça criada sob o colonialismo. Esta lógica racial essencialista procurou justificar a colonização de povos da África através de uma lógica quase científica que colocava a branquitude no topo de uma hierarquia racial “natural” e inferiorizava os negros. Enquanto tais “raciologias” tiveram origem em uma lógica baseada na cor da pele ou “epidermalização”, mais recentemente a genômica tem sido mobilizada como alicerce para defesas de uma diferença biológica essencial (GILROY, 1998; ABU EL-HAJ, 2007). Em contraste, as perspectivas sociais construtivistas enfatizam a natureza não-biológica dos sujeitos raciais, entendendo a raça como uma ontologia social (ver, por exemplo, MILLS, 1998). Aqui, entende-se as imaginações da negritude a partir do colonialismo e do comércio transatlântico de escravizados. Dentro desta ontologia social, a negritude não é uma qualidade essencial, mas uma identidade atribuída; ainda que não-escolhida, é socialmente real. Além dessas ontologias biológicas e sociais, Michael Rabinder James (2012, p. 109) sugere uma ontologia política da raça, que “presume que as pessoas de cor são agentes que podem escolher a saliência política de suas identidades raciais não-escolhidas”. Tais ontologias políticas, que destacam agências individuais e coletivas, têm informado lutas pan-africanas que unem grupos diaspóricos distintos de forma estrategicamente essencialista, assim como movimentos explicitamente não-essencialistas que sublinham os aspectos interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade. p. 202 Essas diferentes ontologias de raça e negritude têm sustentado imaginações científicas e populares acerca das conexões entre os negros na África e aqueles da diáspora africana. Sugerimos que as três ontologias descritas aqui (a biológica, a social e a política) têm fortes dimensões espaciais que muitas vezes permanecem implícitas. A partir de debates da geografia cultural, podemos abordar a negritude não apenas como uma categoria racial definida somática e culturalmente, mas também como um imaginário espacial. Por exemplo, a origem geográfica – mais especificamente, a ideia do continente como “lar” – desempenha um papel importante nas ontologias biológicas, sociais, e políticas de raça. No caso da negritude, a “África” tem sido, obviamente, o principal referente espacial. No entanto, como argumentamos neste artigo, os continentes não são as únicas formas relevantes de espacialidade. Embora a noção de deslocamento tenha sido central para os debates acerca das raízes e rotas transnacionais que conectam sujeitos diaspóricos ao continente africano, propomos a necessidade de ampliar esse enfoque através do papel das mobilidades e imobilidades urbanas na construção de conexões diaspóricas. Como buscamos ilustrar com o caso da Jamaica, abordar tais ontologias através de um viés espacial pode gerar novas sacadas acerca de como a negritude é compreendida e vivenciada. Enquanto os estudos de Africana nos Estados Unidos estiveram focados principalmente nas geografias da negritude que surgiram por meio do comércio transatlântico de escravizados, levar em conta questões de espaço, lugar e mobilidade que vão além da escravidão podm permitir uma melhor compreensão das novas formas como os negros estão reconfigurando e re-enquadrando a diáspora (cf. CLARKE, 2010). Focado em culturas de expressão, este artigo traça mudanças nas perspectivas da Jamaica sobre raça e nação, com ênfase em imaginários espaciais. Nós estamos especialmente interessados em como esses imaginários espaciais figuram nas ontologias políticas da negritude e na importância dos mesmos para os significados atribuídos à negritude dentro de projetos políticos conscientes. Com base na arte contemporânea e música popular, propomos que o local da negritude, como se imagina na Jamaica, começou a se deslocar da África para o “gueto”. Durante grande parte do século XX, as ontologias políticas da raça evidentes nos movimentos negros radicais, como o etiopismo, o garveyismo e o movimento rastafári, tinham a África como principal referente espacial. Mais recentemente, comentários e críticas sociais acerca de desigualdades e exclusões racializadas na Jamaica trouxeram à tona novos espaços culturais e políticos de agência negra. Traçando as mudanças históricas do imaginário espacial sobre o qual se projeta o pertencimento e a autenticidade quando em relação com identidades raciais, buscamos chamar a atenção para a mutabilidade das conexões entre negritude e africanidade. Políticas raciais jamaicanas A Jamaica tem uma longa história de consciência política negra e a África, tanto como local físico quanto como espaço do imaginário político e social, desempenhou p. 203 um papel importante na constituição dessa política. Vários movimentos pan-africanistas tiveram destaque nessa história. Diferentes vertentes do etiopismo podem ser rastreadas ao longo de séculos de dominação colonial, escravidão de latifúndio monocultor e racismo institucionalizado. Baseando-se nas referências bíblicas aos africanos como etíopes, grupos afrodiaspóricos no Caribe e nos Estados Unidos têm procurado enfatizar suas raízes culturais e conexões transnacionais. Na Jamaica, vários movimentos sociais, religiosos e políticos formularam projetos de consciência racial e de orientação para o continente africano. Entre esses movimentos espirituais, estão o Revival da Jamaica, originado em 1860-1861, e o Kumina, que surgiu no final do século XIX com a imigração pós-emancipação de trabalhadores africanos contratados (ver STEWART, 2005). Um movimento mais abertamente político foi a Associação Universal para o Melhoramento do Negro (UNIA), que foi fundada em 1914 pelo pan-africanista jamaicano Marcus Garvey, mas ganhou centenas de sucursais em todo o Caribe, América do Norte, América Central e África, dentro de uma década. A UNIA buscou incutir o orgulho racial entre os afrodescendentes e promoveu um retorno à África por meio de iniciativas que incluíam a empresa de navios a vapor Black Star Liner – que acabou não tendo o sucesso esperado. O garveyismo também foi uma influência central para o movimento rastafári (LEWIS, 1998), talvez a forma contemporânea mais conhecida de etiopismo e pan-africanismo. O rastafári, que surgiu na capital jamaicana de Kingston na década de 1930, posiciona os negros do Novo Mundo como africanos no exílio, cuja conexão com a pátria-mãe foi cortada e obscurecida pela escravidão e pelo colonialismo. O movimento defende um retorno metafórico ou real desse exílio na Babilônia (o Ocidente corrompido) para sua pátria em Sião, ou na Etiópia. p. 204 Esses vários movimentos populares tiveram um impacto na política institucional da Jamaica. O período imediatamente após a independência da Grã-Bretanha em 1962 foi caracterizado pelo nacionalismo multirracial crioulo (Creole), exemplificado pelo lema nacional “De Muitos, Um Povo”. Em contraste com imaginários raciais bipolares ou baseados na regra da “gota de sangue única”, a Jamaica tem sido historicamente caracterizada por uma distinção popular entre “negros” de pele mais escura e “pardos” de pele mais clara – uma distinção de cor que permanece associada a diferentes 4 posições de classe. Embora a maioria da população se considere negra, a imagem nacionalista crioula de mistura e crioulização foi uma narrativa que legitimou o poder político e econômico das elites pardas, libanesas, chinesas e judias de pele mais clara. Esta forma de nacionalismo foi contestada pelo movimento rastafári e outros projetos nacionalistas negros. Em resposta a essas críticas populares ao domínio político branco e pardo, líderes políticos de pele clara, como Michael Manley e Edward Seaga, procuraram incorporar tradições culturais afro-jamaicanas, muitas vezes associadas à Jamaica rural. No final do século XX, o nacionalismo multirracial crioulo e a valorização estatal das tradições culturais negras rurais foram em grande parte substituídos por formas populares do que Deborah Thomas (2004) chama de “negritude moderna”. Essa mudança em direção a uma política que privilegia a negritude como base para o pertencimento nacional foi informada por uma série de influências nacionais e transnacionais. Nacionalmente, o rastafári e outros movimentos pan-africanistas foram influentes nesta revalorização da negritude. Além disso, a emigração jamaicana em grande escala (principalmente para cidades nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido) e a acessibilidade de novas mídias e tecnologia digital ampliaram as influências transnacionais e possibilitaram um diálogo particularmente intenso com a negritude “urbana” afro-americana. As mudanças populares em direção ao nacionalismo negro ganharam evidência no âmbito da política institucional em 1992, quando P. J. Patterson se tornou o primeiro primeiro-ministro negro da Jamaica e proclamou publicamente: “A Hora do Homem Negro é Agora” (“Black Man Time Now”). Essas mudanças na política da negritude nas décadas após a independência também envolveram uma reorientação de seu lócus espacial. Enquanto os movimentos políticos anteriores – tanto os populares quanto os institucionais – colocavam uma forte ênfase na África e, em menor medida, na Jamaica rural, a partir do final do século XX, houve um maior envolvimento com os “guetos” urbanos. Até mesmo o rastafári, o movimento pan-africanista mais importante da Jamaica, passou evidentemente a concentrar-se um pouco menos na África. Ainda que o grito de guerra costumasse ser “Repatriação [para a África] é uma obrigação”, a ênfase em voltar para o continente parece ter diminuído significativamente no século XXI e soluções contemporâneas para a injustiça passam a ser buscadas de forma mais direta, dentro na Jamaica, do 5 que no retorno à pátria mítica de Sião/Etiópia. Sugerimos que este descentramento da África se relaciona com fatores nacionais e transnacionais. Nacionalmente, muitos jamaicanos perceberam a descolonização como uma promessa frustrada de progresso e igualdade, especialmente para a maioria da população negra e pobre. À medida que o país se urbanizava, essa população em particular se concentrava cada vez mais em “guetos” urbanos. Enquanto o projeto anticolonial conectava as desigualdades raciais jamaicanas à geopolítica imperial, conectar a persistência dessas desigualdades raciais às relações de classe nacionais e urbanas passou a ser mais relevante. Cada vez mais, o opressor podia ser encontrado p. 205 em casa e não no exterior – a luta tornou-se mais localizada, resumida pela situação dos “sofredores” que viviam em guetos caracterizados pela pobreza e pela violência. De forma transnacional, como observado acima, a influência da cultura popular negra norte-americana – com sua forte ênfase na natureza racializada da desigualdade urbana – aumentou, junto à migração jamaicana e as novas tecnologias de mídia. Essa forma mais politizada de consciência do gueto foi acompanhada por um mercado crescente em torno da “cultura do gueto”, na música popular e, em menor medida, no mundo da arte. O surgimento do “gueto” como um importante referente espacial para a negritude também pode ser interpretado à luz das mudanças nas concepções de África; em menor medida uma pátria mítica e idealizada. Nas próximas duas seções, discutiremos os imaginários espaciais da África e do gueto nas artes visuais e na música popular, respectivamente. Imaginações visuais da África e do gueto p. 206 Por que e como a africanidade passa a ser importante para a arte visual jamaicana, e como sua imaginação tem sido fundamental para ideias de raça e nação? Em um artigo intitulado “Desesperadamente em Busca da África”, o historiador da arte Petrine Archer Straw (2004, p. 20) afirma que “os negros diaspóricos compartilham uma forte herança artística enraizada na África, mas a escravidão bloqueou suas habilidades em escultura, confecção de máscaras, cerâmica e tecidos herdados do Oeste africano”. Esta declaração – esperançosa e talvez até exagerada em reivindicar uma memória distintamente africana para artistas do Novo Mundo – apresenta um ponto importante para o tema deste artigo. Archer Straw vê a estética africana como ressurgindo nas obras de artistas afro-jamaicanos “intuitivos” (autodidatas), que para ela personificam um “despertar das artes” e demonstram “que as ideias e imagens africanas permaneceram fortes” no Novo Mundo (ibid.). Seu interesse na importância das raízes africanas da arte jamaicana ecoa as preocupações de muitos artistas visuais; nesta seção, traçamos brevemente a importância da África (especificamente em relação com a negritude) no imaginário artístico da Jamaica. No final do século XX, os artistas jamaicanos mais radicais praticavam um essencialismo político estratégico que se baseava fortemente nas noções de pan-africanismo para comentar sobre as estruturas contemporâneas de dominação e supremacia branca e sobre o viés eurocêntrico das práticas contemporâneas da história da arte. Na última década, vemos esses modos artísticos de crítica cada vez mais concentrados na cultura visual das comunidades dos “guetos” jamaicanos, valendo-se dessa forma específica de estética urbana para comentar sobre agenciamentos interseccionais de opressão. As histórias convencionais da arte jamaicana identificam artistas como Edna Manley, Carl Abrahams, Albert Huie, Cecil Baugh e Alvin Marriott como pioneiros (ver, por exemplo, BOXER, POUPEYE, 1998). Do início a meados do século XX, com a Jamaica ainda sob o domínio colonial britânico, mas marcada por um fervor nacionalista crescente, esses artistas deram expressão visual a uma visão nacionalista e anticolonialista (HUCKE, 2013). Manley – esposa de Norman Manley, o primeiro premiê da Jamaica, e fenotipicamente branca – foi considerada a mãe da arte jamaicana moderna e, assim como os outros “pioneiros”, foi uma figura importante no início do envolvimento artístico da Jamaica moderna com a África. Como parte do movimento nacionalista, ela estava interessada no desenvolvimento de uma estética nacional informada pela cultura nacional que ela acreditava poder ser encontrada na herança africana da ilha. Seus primeiros trabalhos, incluindo Negro Aroused (Negro Desperto) e Pocomania (batizado em homenagem a uma vertente da tradição religiosa afro-jamaicana Revival), demonstram esse investimento estético. Outros artistas dessa geração, como Ronald Moody, estavam igualmente interessados nas práticas estéticas africanas e nas tradições religiosas e folclóricas afro-jamaicanas, que também acreditavam ser de origem africana. Logo antes e em seguida da independência da Jamaica em 1962, surgiu um grupo diferente de artistas que se envolveu com a África, muitos dos quais atribuídos ao movimento rastafári e a outras religiões afro-jamaicanas, como o Revival. Esta geração de artistas também se dedicou a um projeto político que buscava centralizar a África como uma parte importante da prática estética jamaicana. Este período coincidiu com o fim do colonialismo e do movimento de independência em muitos outros estados caribenhos e africanos, e com o movimento negro originado nos Estados Unidos. Embora o projeto desses artistas fosse diferente do projeto dos primeiros pioneiros, ambos compartilhavam a dedicação ao fortalecimento da posição dos negros na Jamaica por meio de um tradicionalismo folclórico. Além de um grupo de artistas autodidatas posteriormente apelidados de “Os Intuitivos”, nas décadas de 1960 e 1970, a tradição negra radical do rastafári também inspirou artistas com formação mais formal. Vários desses artistas, incluindo Osmond Watson, estudaram no exterior, na Europa e na América do Norte, onde se interessaram pela África. Watson, conhecido por ter sido exposto à arte africana em museus europeus, inspirou-se nas tradições das máscaras africanas em seu trabalho e incorporou referências às pinturas etíopes p. 207 sobre painel. O trabalho de outros artistas que surgiram nas décadas de 1960 e 1970, como David Boxer e Petrona Morrison, também mostra influências africanas; Morrison até estudou no Quênia. Como essa diversidade indica, não houve um projeto radical negro singular de 6 relação com a África. Indiscutivelmente, no entanto, o movimento artístico recente que ficou conhecido como Afrikan Vanguard ofereceu as imaginações mais radicais da África e da negritude na Jamaica contemporânea, posicionando-se como explicitamente afrocêntrico, em contraste com gerações anteriores de artistas jamaicanos. Composto por oito artistas visuais, muitos dos quais assumiram nomes “africanos”, este grupo incluía artistas como Omari (“African”) Ra, Khalfani Ra, Oya Tayehimba e Khepera Oluyia Hatsheptwa. O grupo surgiu em meados da década de 1990 com a seguinte declaração: Não somos artistas, não na quintessência ocidental da palavra. Realizamos o ritual do Akoben, como fez Boukman em Bwa Kayman no Haiti há 210 anos: “Jogue fora a imagem do Deus do homem branco, pois seu Deus inspira apenas o crime.” Localizamos nosso início, a verdadeira gênese do Novo Mundo, no triunfo da nova vontade da África. Em nosso impulso evolutivo, reconhecemos o importantíssimo imperativo político entre nação e imagem (imaginação). Como criadores de imagens, não ansiamos pelo novo, mas pelo esquecido e morto; os mortos imortais, fonte de vida eterna – Dessalines, Shakaben Awayo, Marcus Garvey, Bobby Wright et al. (AFRIKAN VANGUARD, 2000, p. 8-9) Esse desejo por aqueles “mortos imortais” – o revolucionário haitiano Dessalines, o pan-africanista jamaicano Marcus Garvey e outros revolucionários – sinaliza o desejo desses artistas de repensar a história dos negros do Novo Mundo, afastando-se do que eles acreditam ser uma narrativa branca (ocidental) dos africanos nas Américas, e aproximando-se de uma versão da história mais afrocêntrica, ou mais pautada pelo nacionalismo negro. Em uma entrevista, Khalfani Ra resumiu esse repensar de forma sucinta ao refletir sobre sua relação com o passado da escravidão: p. 208 Ao contrário da maioria dos jamaicanos e muitos outros, quando penso na África, as imagens que vêm à mente não são do suposto diagrama do navio negreiro de Brookes (essa imagem é autêntica de qualquer maneira?), mas pirâmides, as imagens do vale do Nilo, imagens do Grande Zimbábue; essas são as imagens na minha cabeça. Até imagens do Haiti, imagens de Vodun. O fato de a imagem do navio negreiro estar tão presente e até mesmo reverenciada é motivo de preocupação. Acredito que isso seja parte do subdesenvolvimento do povo negro. Acho que o papel de um artista, que é negro, é desafiar essas imposições. Minha história não começa na escravidão, ela [a escravidão] chegou com mais de dez mil anos de atraso. Não que não tenha sido importante, mas foi apenas um episódio nesta longa história. Algo está definitivamente errado com nossa cultura e nosso povo, se esta é sua imagem icônica, de sua história. 7 Indica uma mentalidade de vítima. Esta citação ilustra o engajamento do Vanguard com uma ontologia política da negritude que imaginava os jamaicanos negros como conectados à África de forma explícita, em termos de orgulho e agência, em vez de vergonha e perda – uma geografia imaginativa de raça que conecta jamaicanos negros a haitianos e africanos, mas descentra o comércio transatlântico de escravizados. Um aspecto contínuo do trabalho de Khalfani Ra é o uso de uma tela vermelha profunda, com pregos salientes saindo da tela. Como ocorre, por exemplo, no trabalho de 2005 intitulado 1804, a geografia prolongada (Jamaica) – altar para (r)evolução #2 (1804, the protracted geography (Jamaica) – altar for (r)evolution #2, Figura 1). Esta “geografia prolongada” oferece uma imaginação visual do que significa ser negro nas Américas, conectando a Jamaica às práticas espirituais e estéticas da África Ocidental e Central. Tanto a cor vermelha quanto o ferro evocam os espíritos de Ogum e Xangô, os orixás iorubás da guerra, trovões e relâmpagos, que Khalfani Ra vê como os espíritos que oferecem poder aos negros no Novo Mundo, o poder que ajudou os negros a vencer a Revolução Haitiana. Ao mesmo tempo, Khalfani Ra usa os pregos para evocar os espíritos das práticas medicinais centro-africanas que fazem uso de imagens e pregos, a força de cura dos N’kisi. Esta e outras obras semelhantes de outros artistas foram apresentadas na segunda grande mostra coletiva do Vanguard em 2004, que buscou comemorar o bicentenário da Revolução Haitiana, em 1804. Assim como na primeira mostra, as obras desta segunda exposição imaginaram fluxos históricos globais de ideias radicais e até militantes por todo o Atlântico Negro que poderiam ser utilizadas para confrontar estruturas persistentes de racismo. Nós sugerimos que esse anseio militante pela África demonstra desilusão com a narrativa nacionalista crioula que dominou a agenda política e, indiscutivelmente, as políticas culturais do período imediatamente pós-independência. A proeminência desse grupo coincidiu com o aumento do discurso nacionalista negro no início dos anos 1990, descrito na seção anterior. Sugerimos que estas são as imaginações radicais da África que estão mudando hoje. Enquanto as práticas artísticas na Jamaica sempre foram variadas e múltiplas, informadas por trajetórias distintas, queremos marcar uma aparente mudança em direção p. 209 Figura 1. 1804, a geografia prolongada (Jamaica) – altar para (r)evolução #2 (1804, the protracted geography (Jamaica) – altar for (r) evolution #2), Khalfani Ra, 2005, fotografia de Donnette Zacca. à incorporação de outro lócus de interesse da luta negra jamaicana, que identificamos aqui como o imaginário espacial “do gueto”. O gueto é um espaço emblemático em que a raça se combina com a pobreza e a violência urbanas e, no contexto da Jamaica, é ocupado quase que exclusivamente pela população negra. Artistas mais jovens, sugerimos, estão recorrendo a esse outro local para a construção de uma imaginação radical, ainda que as ideias de raça e nação continuem compondo uma parte importante de suas inspirações artísticas. Conforme indicado acima, vemos essa mudança como o resultado de uma interação complexa de fatores nacionais e transnacionais. p. 210 No ensaio que introduz o catálogo da exposição Curator’s Eye II (O Olho do Curador II), realizada entre 2005 e 2006 na Galeria Nacional da Jamaica (National Gallery of Jamaica), o curador Eddie Chambers descreve a dedicação da arte na Jamaica à tessitura de um “comentário em várias camadas sobre as vidas e as lutas do povo e do país”. Nesta exposição, embora reconhecendo a importância da África para a imaginação da diáspora, Chambers identifica seu interesse curatorial prévio em como as “gerações mais jovens de artistas da Jamaica estavam trabalhando de formas que refletiam os desenvolvimentos internacionais na prática da arte contemporânea”. Os artistas que ele incluiu na exposição estavam preocupados com “uma história sangrenta que vive e respira, ao mesmo tempo que se envolve e interage com uma ampla gama de preocupações correspondentes e contemporâneas... episódios traumáticos na história da Jamaica com ressonâncias modernas” (CHAMBERS, 2005, p. 4-5). São essas preocupações modernas que, como sugerimos, vieram complementar a ênfase anterior na África. Essa geração mais jovem de artistas está tomando o urbano, e mais especificamente o gueto urbano, como um local distinto para uma experiência negra global e de luta. A exposição de 2013 da Galeria Nacional intitulada Novas Raízes: 10 Artistas Emergentes (New Roots: 10 Emerging Artists) abordou questões semelhantes às da Curator’s Eye ii. Composta por dez artistas “com menos de 40 anos e novos, ou relativamente novos, no mundo da arte jamaicana”, a mostra foi, segundo os curadores, “concebida para identificar e incentivar novos rumos no mundo da arte jamaicana” e apresentou “novas perspectivas acerca do potencial da arte para fomentar a transformação social 8 em tempos de crise”. Embora a novidade da Novas Raízes pareça ter sido em grande parte extraída de novos modos de expressão artística – novos, ao menos, para a cena 9 artística jamaicana –, a exposição parecia enraizar a prática artística e a negociação da identidade e do pertencimento fora das bases vistas em práticas artísticas contemporâneas anteriores. Em sua introdução à exposição, Veerle Poupeye, diretora executiva da Galeria Nacional e uma das curadoras da exposição, faz referência ao apelo de Stuart Hall (1999) para que passemos da ênfase exagerada em raízes a questões sobre rotas na formação da identidade. Poupeye (2013) descreve à exposição da seguinte forma: As obras na exposição são provocantes e certamente colocam questões incômodas, mas não há uma sensação esmagadora de distopia, e a exposição reflete uma nova disposição por parte dos artistas de intervir ativamente em seu ambiente social... Em vez de buscar por novas certezas, as obras [da exposição] Novas Raízes ilustram a vontade dos artistas de abraçar as novas incertezas e fragilidades, a nível pessoal e coletivo, e de encontrar um novo sentido de identidade, mais mutável e questionador, este contexto. A exposição também foi alvo de críticas. Um comentarista online que se identificou como George Blackwell postou um extenso comentário em uma postagem do blog da Galeria Nacional (um diálogo republicado no site da ARC, uma notória revista caribenha de arte), descrevendo a exposição como: uma tentativa desesperada de fugir de qualquer discurso sério que coloque o negro em primeiro plano como o p. 211 Figura 2 I Took the Liberty of Designing One (Eu Tomei a Liberdade de Desenhar Um), Matthew McCarthy, 2013, fotografia cedida pela Galeria Nacional da Jamaica. constituinte essencial nas questões locais de identidade. A exposição tem, portanto, 10 uma curadoria insípida para evitar essa discussão. p. 212 Embora discordemos da afirmação deste crítico de que a exposição e as obras seriam apolíticas, ao contrário, por exemplo, do coletivo Afrikan Vanguard (que ainda estava incluído na exposição Curator’s Eye ii), os artistas da Novas Raízes, ainda que preocupados com a negritude, ofereceram uma nova perspectiva, da qual essa luta emerge entre um repertório mais amplo de preocupações. Simultaneamente, suas obras parecem ter adotado uma linguagem de luta mais popular, com base nas ruas. O trabalho de Matthew McCarthy, por exemplo, embora se aproprie de parte da iconografia rastafári, está mais investido na política democrática da arte do grafite. O trabalho de McCarthy na exposição Novas Raízes, I Took the Liberty of Designing One (Eu Tomei a Liberdade de Desenhar Um) (Figura 2), foi uma instalação participativa em que os visitantes foram convidados a adicionar seus próprios comentários e intervenções a uma cerca de zinco coberta com pôsteres e adesivos. A cerca de zinco simboliza o “gueto” e a pobreza urbana, e McCarthy se baseia nisso como uma forma de pensar sobre as noções de exclusão urbana, raça e classe na Jamaica. Não foi de admirar, então, que uma das curadoras da exposição, Nicole Smythe-Johnson, tenha respondido às críticas de Blackwell com uma revisão da declaração do próprio crítico, redigida como: “uma tentativa desesperada de se afastar de qualquer discurso sério que ponha em primeiro plano qualquer constituinte essencial único em questões locais de identidade”. Ela explica esta revisão como uma tentativa de reformular o diálogo para que “a conversa não seja sobre a ‘negritude’ e o seu peso e densidade relativos no conjunto de ‘todos os constituintes (não essenciais e essenciais) da identidade nacional’. Em vez disso, a conversa é ampliada, com mais nuance e mais atenção às reconfigurações do próprio conceito de identidade para dar lugar a 11 articulações mais inclusivas, múltiplas e flexíveis”. Esse diálogo deixa claro o desejo curatorial de descentrar modelos de identidade singularmente afrocêntricos – um artista da Afrikan Vanguard chegou a descrever esse afastamento curatorial “da identidade positivamente conectada à África” como 12 “um ato grave de repressão e ataque racial”. Para além de tais enquadramentos curatoriais, a obra desta geração mais jovem de artistas demonstra claramente uma preocupação com a sociedade jamaicana que é muito menos orientada pela África e mais interessada em examinar questões de raça através de uma lente interseccional que está atenta a classe, gênero, sexualidade e espaço urbano. Assim como o trabalho de McCarthy, artistas como Ikem Smith, Varun Baker e Nile Saulter engajam modos populares de luta e documentam táticas da vida cotidiana nas ruas de Kingston – uma cidade representada frequentemente como um local distópico de extrema pobreza e violência que é também um local vibrante de empreendedorismo, criatividade e esperança para muitos de seus habitantes diários, muitas vezes silenciados. O que é surpreendente em toda a arte incluída na mostra Novas Raízes – uma amostra representativa do trabalho da geração mais jovem de artistas visuais jamaicanos – é a ausência de qualquer alusão aberta à África. Enquanto isso, o Afrikan Vanguard perdeu muito de sua força coesiva e muitos de seus membros deixaram o movimento. Embora muitos da mais nova geração de artistas jamaicanos continuem a mostrar uma dedicação à negritude, isto se articula na preocupação com outros marcadores de identidade e precariedade da vida na Jamaica urbana, mais do que com qualquer investimento discernível em pensar a África. Ebony Patterson, uma jovem artista que se desloca entre a Jamaica e os Estados Unidos, é, sem dúvida, a artista mais preocupada em repensar o social através das lentes do gueto. Em suas cenas extravagantes e cuidadosamente construídas, Patterson explora a complexidade das vidas no gueto. Os principais protagonistas de p. 213 Figura 3 (Untitled) Disciple VII – (Sem título) Discípulo VII – da série Gangstas for Life (Gangsteres até morrer), Ebony Patterson, 2008. Fotografia cedida pela artista e pela Monique Meloche Gallery, Chicago. p. 214 seu trabalho são os ícones que representam gangsteres jamaicanos, como o badman (“homem mau”), o rudebwoy (“cara rude”) e o don. O trabalho de Patterson oferece uma exploração mais texturizada e em camadas dessas figuras infames, cuja vida é geralmente reduzida a ideias mais simplistas sobre a violência. Em suas cenas, esses jovens negros do gueto – tão raramente retratados em obras de arte anteriores – são poderosos atores sociais, responsáveis por seu próprio futuro, que ajudam a moldar uma nova estética jamaicana. Patterson critica o abandono e a violência de estado que relega certos jamaicanos a um status sub-humano (por exemplo, em sua recente série De 72 (Of 72), que retrata 72 homens mortos pelas forças de segurança jamaicanas nos Jardins de Tivoli, um gueto de Kingston, em 2010). Suas obras de arte contradi13 zem retratos de “gente do gueto” que comumente justificam essa relegação. Uma característica recorrente do trabalho de Patterson é a complexidade da estética do gueto, com jovens recorrendo a um estilo que é hipermasculino, mas que também envolve o clareamento do rosto e a incorporação de padrões de beleza considerados femininos (ver, por exemplo, Figura 3). Patterson também participou da primeira Bienal do Gueto (Ghetto Biennale) realizada no “gueto” haitiano de Grand Rue, Porto Príncipe, em 2009; uma bienal “concebida para expor a imobilidade social, racial, de classe e geográfica” e que aspirava “conter 14 as sementes da possibilidade de transcender diferentes modelos de guetização”. A participação de Patterson na Bienal sugere um contraste com o envolvimento de Khalfani Ra com o Haiti: aqui, a conectividade jamaicano-haitiana é informada, não por uma noção de africanidade compartilhada, mas por uma preocupação compartilhada com a guetização e uma abordagem interseccional acerca das desigualdades urbanas. O trabalho de Patterson, que ecoa o de outros artistas da mostra Novas Raízes, envolve questões de identidade racial e de classe como parte de um projeto político contemporâneo, mas não oferece nenhum envolvimento forte com a África. Esse é um novo tipo de ontologia política da negritude, que, impregnado de diferentes questões do presente, coloca o gueto em primeiro plano como seu principal referente espacial. O trabalho de Patterson e os vários artistas incluídos na exposição Novas Raízes sugerem o surgimento de um imaginário visual rearticulado que não estava presente na arte jamaicana anterior. Esta nova arte envolve ideias de raça e nação moldadas pela precariedade, violência, criatividade e esperança que emergem dos bairros do gueto de Kingston. Nos primeiros anos da arte jamaicana moderna, os artistas estavam preocupados com a África e dedicados a um tradicionalismo que considerava o rural e o folclórico como alicerces da “afro-jamaicanidade”; no período pós-independência, p. 215 o projeto político de negritude dos artistas incluiu várias tentativas de recuperar a África. Agora, o local da negociação está no símbolo do gueto, um espaço urbano de precariedade racializada e, também, de formas de criatividade que desafiam identidades essencialistas. Movimentos musicais da África ao gueto Conforme exposto na seção anterior, dentro da arte visual jamaicana, diferentes imaginários espaciais têm sido centrais para a negritude como ontologia política. Assim como na arte visual, podemos distinguir dois imaginários espaciais distintos, ou lugares conceituais, que desempenham um papel central nos enquadramentos da negritude que emergem da música jamaicana. Um movimento semelhante de descentramento da África é perceptível na música popular jamaicana no período pós-independência. Enquanto a música reggae mais lenta e melódica das décadas de 1960 e 1970 demonstrou uma forte dedicação à África, o gênero mais recente de música dancehall (uma forma de música eletrônica mais rápida que se assemelha ao hip hop) exibe um 15 interesse bem maior no espaço urbano do gueto. Esse engajamento crítico com o gueto como foco principal pode ser entendido, por um lado, como uma expressão de desilusão com a política pós-independência e, em particular, sua incapacidade de melhorar a vida dos negros urbanos. Por outro lado, a mudança pode ser entendida à luz do aumento do intercâmbio entre a cultura popular jamaicana e afro-americana. Essas trocas não só permitiram a emergência de uma espécie globalmente conectada de “contra-público”, com críticas sobre a pobreza urbana e a exclusão, mas também produziram um mercado transnacional para a “música do gueto” (JAFFE, 2012). Nesta seção, discutimos a interação entre representações não essencialistas e estrategicamente essencialistas da negritude na música popular contemporânea, com ênfase em Vybz Kartel, um dos músicos de dancehall mais populares da Jamaica. p. 216 Tanto o reggae quanto o dancehall foram enquadrados localmente como pertencentes a jamaicanos negros de classe baixa (e não a pardos de classe média) (STOLZOFF, 2000; HOPE, 2001). A ênfase no caráter negro do reggae e do dancehall pode ser vista como uma forma de essencialismo estratégico que serve um propósito político, para mostrar às elites de pele clara que a fama da ilha se deve aos esforços dos jamaicanos negros, geralmente dos bairros mais pobres de Kingston. Além disso, o marketing do reggae e do dancehall como negro ou pan-africano também pode ter sido um fator estratégico nas tentativas de obter sucesso comercial entre um público global. Embora compartilhem uma ênfase na negritude, esses dois gêneros lidam de maneira diferente com questões de enraizamento espacial e mobilidade. Como observado acima, a música reggae de raiz tem olhado principalmente para a África. A partir dos anos 1960 e 1970, essas representações musicais da negritude tenderam a se basear no rastafári e em outras narrativas pan-africanistas que localizam a África como o foco geográfico-emocional da identidade negra. Louis Chude-Sokei (1994, p. 80) fala desta geração como uma “que ajudou a empuxar uma ‘África’ mítica para a vanguarda da cultura popular negra nas Índias Ocidentais e, por meio da música reggae e do rastafarianismo, no mundo”. Artistas rastafári cantaram repetidamente sobre repatriação para “Sião” ou Etiópia. Além disso, a solidariedade política com os negros sob o apartheid na África do Sul e com as lutas de libertação nacional na Rodésia colonial e Moçambique desempenhou um papel importante nessas narrativas afrocentradas. Como Peter Tosh, Bob Marley foi, claro, uma figura central nessa política musical orientada em direção à África, com canções como Africa Unite, Zimbabwe e 16 War. Os elementos gráficos dos discos de sua geração também apresentavam várias representações do continente africano (MORROW, 1999). Nesses imaginários do reggae, a África não é apenas o espaço originário da negritude, mas também está associada à mobilidade em termos de exílio e retorno, movimento forçado e voluntário, histórico e futuro. A preocupação do rastafári e do reggae de raiz em comemorar o passado escravista da Jamaica e as origens africanas da população jamaicana – e em relação a isso, os parâmetros de pertencimento étnico-nacional jamaicano – enfatizaram o deslocamento forçado do passado de escravidão, desenraizamento, mobilidade involuntária e migração. Este engajamento com o deslocamento foi equilibrado pelo desejo rastafári de se reconectar por meio da mobilidade voluntária, um desejo mais evidente na insistência de que “a repatriação é uma obrigação”, que eventualmente rastafáris devem deixar a “Babilônia” e retornar a Sião, na África. Parte desse anseio pela África continua no trabalho de artistas contemporâneos do reggae de raiz, como Tarrus Riley e Chronixx, que produziram canções de sucesso com títulos como Africa Awaits, African Queen e African Heritage. Enquanto nas artes visuais um menor envolvimento com a África é encontrado principalmente entre a geração mais jovem, na música essa diferença de foco está menos relacionada à geração do que ao gênero. Em contraste com o envolvimento dos artistas do reggae de raiz com a África, os músicos do dancehall colocaram uma ênfase mais forte nos espaços urbanos locais – e em particular nos espaços do “gueto” no centro da cidade p. 217 da capital Kingston – como a localização espacial da negritude autêntica. Esse foco no espaço urbano talvez seja explicado pelo parentesco musical do dancehall com o hip hop, que compartilha essa forte ênfase na interseção de raça e espaço (ver ROSE, 1994; FORMAN, 2002). Na Jamaica, as raízes da negritude urbana contemporânea a que o dancehall se refere estão localizadas principalmente em Downtown Kingston (Baixa de Kingston) e outras áreas urbanas marginalizadas em toda a ilha (STANLEY-NIAAH, 2010). O foco contemporâneo do dancehall nos guetos como espaços geradores de negritude coloca em primeiro plano a condição de imobilidade social e física. Essa ideia do gueto como um espaço de imobilidade é reforçada linguisticamente por meio do termo área “proibida”: estranhos e até mesmo a polícia têm medo de entrar, enquanto os “de dentro” não conseguem sair (JAFFE, 2012). Ao mesmo tempo, os guetos jamaicanos, assim como os assentamentos informais em todo o mundo, também podem ser associados à mobilidade involuntária, com seus posseiros vulneráveis a remoções à força. p. 218 Essa ênfase do dancehall no espaço do gueto ganhou destaque em comparação com a priorização musical anterior do continente africano. Até mesmo o rastafarianismo e o gangsterismo do gueto se tornaram compatíveis, com artistas de dancehall como Munga reivindicando o apelido de “gangsta Ras[ta]”. No entanto, isso não quer dizer que a África tenha sido totalmente deslocada das negociações musicais jamaicanas sobre raça e nação. Aqui, chamamos a atenção para a figura do artista de dancehall Vybz Kartel e a alguns de seus trabalhos, com o fim de ilustrar como a ontologia política da raça é negociada dentro da música jamaicana. Sua música oferece uma visão sobre as maneiras pelas quais a negritude é essencializada e desconstruída, e como ela é construída por meio dos temas de lugar e mobilidade. Vybz Kartel é um dos artistas do dancehall de maior sucesso das últimas décadas e também um dos mais polêmicos. No momento em que este artigo foi escrito, ele estava apelando de sua condenação por envolvimento em assassinato. No entanto, ele já havia atraído polêmica anos antes, após debates públicos em torno de sua prática de clareamento de pele. Ele promoveu seu próprio clareamento com canções como Pretty Like a Coloring Book e Cake Soap, mas permaneceu inflexível em reivindicar o orgulho negro. Em uma palestra pública na Universidade das Índias Ocidentais (University of the West 17 Indies) em 2011, ele se proclamou seguidor do pan-africanista Marcus Garvey. Ele defendeu seu branqueamento como uma forma de estilo, de auto-expressão, que permitia que suas tatuagens aparecessem melhor, argumentando que: “branquear hoje não significa o mesmo que branquear vinte e cinco anos atrás... Somos uma raça muito mais orgulhosa, sabemos que podemos fazer o que queremos no que diz respeito ao estilo, ditamos estilos e os respeitamos como exatamente isso – estilos.” Sua defesa da prática “feminina” do gueto de branqueamento como compatível com reivindicações de orgulho negro contrasta fortemente com a letra da regravação de African com a qual começamos este artigo: “nunca quero descolorir essa melanina... nunca trairei minha raça... tão preto quanto for, você deve permanecer”. Entre as tatuagens de Vybz Kartel está a palavra “Gaza”, gravada nos nós dos dedos de sua mão direita, que demonstra sua lealdade e enraizamento na comunidade do gueto jamaicano com esse nome. Além dessa fidelidade corpórea ao gueto, o pan-africanismo professado de Kartel é também visual, como se vê na capa de seu álbum de 2006, j.m.t., em que uma imagem de seu rosto em perfil é mesclada com uma imagem do continente africano – sugerindo que o branqueamento não é apenas compatível com a negritude, mas também com a africanidade. Musicalmente, as letras de Vybz Kartel ilustram as maneiras em que as imagens da negritude na cultura popular se conectam a uma política ancorada em lugares, bem como a conceitos de mobilidade e imobilidade. Aqui, para concentrar nossa discussão nessas imagens e conceitos, nós nos voltamos a uma música em específico, Poor People Land (Terra dos Pobres). No entanto, esses temas ecoam de forma ampla no discurso jamaicano atual sobre pertencimento étnico-racial, no gênero dancehall e além. Poor People Land Mi cyaan believe it, government waan fi move mi Mi turn refugee inna mi own country But a long long time mi live yah so Mi cyaan go no weh Dem really tek poor people fi fool Oh Mr. Babylon, a weh yu get da system yah from? Bulldozer dung poor people land Jah know seh mi nah vote again, no sah Cause di mp don’t give a damn A weh yuh get da system yah from ’Bout seh mi live ’pon squatter land True mi don’t rich like Matalon, no sah Mi a born Jamaican Mi nah have no weh fi go Mi born and mi grow yah so inna di ghetto p. 219 Bigga heads, beg yu a bligh now Mi cyaan buy a house up a Cherry Garden Ashes to ashes, and dust to dust Di tribulation inna di ghetto is a must […] Mi know seh mi a born Jamaican Mi deh yah from slavery as a African Somebody tell mi weh Matalon come from? Fi own so much land inna wi island, tell mi Mr. Chin, go back a Japan ‘Cause Jah Jah mek yah fi di black man Eu me tornei um refugiado em meu próprio país Mas eu moro aqui há muito tempo Eu não posso ir a lugar nenhum Eles realmente pensam que os pobres são burros Oh Sr. Babylon, que tipo de sistema é esse? Você demole a terra dos pobres Jah sabe que não vou votar de novo, não senhor Eu não posso acreditar, o governo quer me remover Porque o político não dá a mínima Que tipo de sistema é esse Dizendo que eu moro em terras irregulares Porque eu não sou rico como Matalon, não senhor Eu nasci jamaicano Eu não tenho para onde ir Eu nasci e cresci bem aqui no gueto Pessoal responsável, estou pedindo um favor Não posso comprar uma casa em Cherry Gardens De cinzas a cinzas e do pó ao pó Eu sei que nasci jamaicano Eu estou aqui desde a escravidão como um africano Alguém me diga de onde veio Matalon? Para possuir tantas terras em nossa ilha, diga-me Sr. Chin, volte para o Japão Porque Jah Jah fez este lugar para o homem negro p. 220 Lançada em 2011, Poor People Land conecta os temas expostos acima, narrando as relações dos negros pobres com a terra e o lugar, com a mobilidade e a imobilidade. A música começa com uma declaração forte sobre o movimento involuntário no contexto dos assentamentos urbanos: “Não posso acreditar, o governo quer me remover / Eu me tornei um refugiado em meu próprio país”. Kartel prossegue com uma declaração política em que se refere especificamente a um tipo específico de enraizamento nacional e urbano que se relaciona com a imobilidade dos afro-jamaicanos marginalizados: “Sou jamaicano de nascença... nasci e cresci bem aqui no gueto.” Esta maneira de reivindicar direitos – através do pertencimento nacional e por meio da imobilidade urbana – é reforçada precisamente por uma referência à história de migração forçada de seus ancestrais: “Eu sei que nasci jamaicano / Eu estou aqui desde a escravidão como um africano.” Ao mesmo tempo em que centraliza a marginalidade urbana como o principal alicerce da jamaicanidade, Kartel conecta essa espacialidade à raça e às raízes africanas. Isso se torna evidente em sua oposição ao privilégio das elites não-afrodescendentes – e na negação de suas reivindicações de pertencimento. Ao perguntar a “Matalon” (um conhecido sobrenome judeu jamaicano associado à riqueza) de onde ele é e ao mandar o Sr. Chin (apelido metonímico usado para indicar uma pessoa rica de ascendência asiática) voltar para o Japão, Kartel localiza a África como o local histórico original do pertencimento jamaicano, mesmo quando ele afirma que o gueto é o local contemporâneo para tais vindicações. Vários comentaristas lamentaram o afastamento dos temas mais “conscientes” do reggae de raiz, em favor de preocupações associadas ao dancehall, que centraliza bens materiais, violência e sexo. Louis Chude-Sokei (1994, p. 80-81), por exemplo, argumenta que a música popular jamaicana foi: de uma estética do exílio e da ausência a uma estética da presença bruta e materialista. … Enquanto na cultura rastafári, assim como em outras formas populares de Negritude, sempre houve algum grau de nostalgia por uma África pré-colonial / pré-industrial / pré-capitalista, a cultura [dancehall] é muito voltada para o futuro e voltada para o capitalismo – como a maioria dos negros, apesar das fantasias de muitos líderes nacionalistas autoproclamados. Em vez de condenar ou descartar a estética dancehall do gueto como grosseira ou superficial, sugerimos que é precisamente seu envolvimento com as realidades urbanas contemporâneas que dá ao gênero sua atualidade, dentro e fora da Jamaica. Como Ebony Patterson, ainda que de uma posição distinta e por meios diferentes, artistas de dancehall como Vybz Kartel exploram o significado de ser negro e jamai Lançada em 2011, Poor People Land conecta os temas expostos acima, narrando as relações dos negros pobres com a terra e o lugar, com a mobilidade e a imobilidade. A música começa com uma declaração forte sobre o movimento involuntário no contexto dos assentamentos urbanos: “Não posso acreditar, o governo quer me remover / Eu p. 221 me tornei um refugiado em meu próprio país”. Kartel prossegue com uma declaração política em que se refere especificamente a um tipo específico de enraizamento nacional e urbano que se relaciona com a imobilidade dos afro-jamaicanos marginalizados: “Sou jamaicano de nascença... nasci e cresci bem aqui no gueto.” Esta maneira de reivindicar direitos – através do pertencimento nacional e por meio da imobilidade urbana – é reforçada precisamente por uma referência à história de migração forçada de seus ancestrais: “Eu sei que nasci jamaicano / Eu estou aqui desde a escravidão como um africano.” Ao mesmo tempo em que centraliza a marginalidade urbana como o principal alicerce da jamaicanidade, Kartel conecta essa espacialidade à raça e às raízes africanas. Isso se torna evidente em sua oposição ao privilégio das elites não-afrodescendentes – e na negação de suas reivindicações de pertencimento. Ao perguntar a “Matalon” (um conhecido sobrenome judeu jamaicano associado à riqueza) de onde ele é e ao mandar o Sr. Chin (apelido metonímico usado para indicar uma pessoa rica de ascendência asiática) voltar para o Japão, Kartel localiza a África como o local histórico original do pertencimento jamaicano, mesmo quando ele afirma que o gueto é o local contemporâneo para tais vindicações. Vários comentaristas lamentaram o afastamento dos temas mais “conscientes” do reggae de raiz, em favor de preocupações associadas ao dancehall, que centraliza bens materiais, violência e sexo. Louis Chude-Sokei (1994, p. 80-81), por exemplo, argumenta que a música popular jamaicana foi: de uma estética do exílio e da ausência a uma estética da presença bruta e materialista. … Enquanto na cultura rastafári, assim como em outras formas populares de Negritude, sempre houve algum grau de nostalgia por uma África pré-colonial / pré-industrial / pré-capitalista, a cultura [dancehall] é muito voltada para o futuro e voltada para o capitalismo – como a maioria dos negros, apesar das fantasias de muitos líderes nacionalistas autoproclamados. Em vez de condenar ou descartar a estética dancehall do gueto como grosseira ou superficial, sugerimos que é precisamente seu envolvimento com as realidades urbanas contemporâneas que dá ao gênero sua atualidade, dentro e fora da Jamaica. Como Ebony Patterson, ainda que de uma posição distinta e por meios diferentes, artistas de dancehall como Vybz Kartel exploram o significado de ser negro e jamaicano no século XXI. Embora a afinidade com a África permaneça (e muitos artistas p. 222 de dancehall já tenham se apresentado na África), uma identidade negra é menos imutavelmente fixada na cor da pele e muito mais diretamente ligada à autenticidade urbana. As reivindicações de negritude e jamaicanidade tornaram-se mais explicitamente interseccionais, abordando não apenas questões de classe e gênero, mas também de espaço urbano e mobilidade. Conclusão Como Patterson e Kelley (2000, p. 31) argumentam em seu artigo seminal sobre a construção histórica da diáspora africana, “precisamos ir além das narrativas unitárias de deslocamento, dominação e construção da nação que se concentram na expansão europeia e na ascensão do capitalismo ‘racial’”. Eles clamam pelo reconhecimento de que “a África – real ou imaginária – não é a única fonte do internacionalismo ‘negro’, mesmo para aqueles movimentos que abraçam uma retórica nacionalista ou pan-africana” (ibid., p. 32). Neste artigo, destacamos a espacialidade das ontologias políticas da negritude na Jamaica, observando um descentramento da “África” como o principal referente espacial nas críticas visuais e musicais das exclusões e desigualdades raciais da ilha. A relação entre “ser negro” e “ser africano” na Jamaica, como em outros lugares, sempre foi instável e continua a mudar no século XXI. Em contraste com o que o historiador da arte Petrine Archer-Straw (2004), citado anteriormente neste artigo, postulou, argumentamos que os artistas visuais e músicos jamaicanos contemporâneos não estão (ou pelo menos não estão mais) “procurando desesperadamente a África”. Isso também vai de encontro com alguns dos outros casos discutidos nesta edição especial, em que as autodefinições são cada vez mais articuladas em termos de africanidade. Em vez disso, sugerimos que a negritude no presente jamaicano se voltou para um novo local espacial de pertencimento étnico-nacional, desenvolvendo suas “novas raízes” no gueto e desenhando conexões com guetos fora da Jamaica como novas fontes potenciais de internacionalismo negro. Neste artigo, exploramos como as noções essencialistas e não-essencialistas da negritude figuram na música popular e na arte contemporânea jamaicanas. Acreditamos que as imaginações contemporâneas da negritude devam ser localizadas dentro de trajetórias históricas em que a retórica política formal e as contestações da cultura popular estão em constante diálogo. Na Jamaica, à medida que a política cultural se afastava do nacionalismo crioulo multirracial, reivindicar a negritude tornou-se cada vez mais crucial para o ser jamaicano. Partindo de uma perspectiva atenta aos imagi- p. 223 nários geográficos que informam a política de identidade afro-jamaicana, vemos que a importância de “ser africano” vem mudando nas últimas décadas, com a localização geo-emocional da negritude fazendo referência ao gueto, além do continente africano. Expressões culturais recentes demonstram negociações menos essencialistas de pertencimento à negritude, nas quais o branqueamento da pele e o orgulho negro não são necessariamente vistos como incompatíveis. No entanto, também notamos as lutas estrategicamente essencialistas por direitos econômicos e políticos com base em identidades étnico-nacionais e espaciais. Essa mudança na orientação primária do pertencimento ocorreu dentro de um contexto nacional em transição, onde a pobreza e a violência urbanas eclipsaram a soberania nacional como preocupação primeira. Além disso, esta trajetória se deu em um contexto de intensos fluxos migratórios da Jamaica para cidades norte-americanas e em um mundo musical e artístico cada vez mais interconectado globalmente. Dentro desses circuitos transnacionais, o diálogo com a negritude “urbana” estadunidense tem tido uma importância crescente, e as Bienais do Gueto e o marketing de “música de gueto” passaram a apresentar novas possibilidades comerciais. As políticas de lugar em que o gueto se torna um importante referente espacial para a negritude se cruzam com narrativas e práticas de mobilidade e imobilidade. O movimento global dos jamaicanos os conectou a uma rede transnacional de espaços urbanos, caracterizados por uma condição comum de lutas racialmente marcadas e pela percepção de imobilidade. A antiga ênfase no exílio e no retorno à África, comum à ideologia rastafári pan-africana de meados ao final do século XX, foi reconfigurada por esse novo tipo de movimento e “re-enraizamento”. No entanto, atender a essas novas raízes não é de forma alguma incompatível com a atenção às formas contínuas em que a África informa as interseções entre “ser negro” e “ser jamaicano”. Notas 1 p. 224 Nota dos Editores (N.E.): A versão original deste artigo foi publicada em 2014 com o título na revista African Diaspora, n. 7, 2014, p. 234 - 259. A publicação é de acesso livre sob a licença Creative Commons e está disponível em: https://brill. com/view/journals/afdi/7/2/article-p234_4. xml?language=en. 2 Nota da tradutora (N.T.): A Jamaica está dividida em catorze “paróquias” – unidades administrativas análogas a estados. 3 A letra da segunda música expressa o desejo de Tosh de se reconectar à África como a pátria-mãe, como indicam os versos a seguir: “Eles me tiraram de você, Mamãe África, muito antes de eu nascer... Eles tentam te esconder, mamãe, mas eu te procuro e te encontro... Eu estive esperando, ansiando, procurando, buscando te encontrar”. 7 4 http://nationalgalleryofjamaica.wordpress.com/tag/rex-nettleford-arts-conference/. Acesso em: 21 set. 2014. Na vida cotidiana na Jamaica, as identidades raciais são um tanto fluidas, ou pelo menos mediadas por uma série de outros fatores, incluindo classe, gênero e localização e mobilidade espacial. Na política jamaicana, reivindicações relacionadas à raça costumam ser apresentadas com um pouco mais de rigidez. 5 Isso pode estar relacionado às mudanças entre o movimento rastafári e o estado da Jamaica. O movimento não é mais demonizado pelo estado, que agora destaca a contribuição (e o potencial comercial) do rastafári em seu documento de política cultural nacional de 2003 “Rumo à Jamaica, o Superestado Cultural” (ver MODEST, 2011), por exemplo. Além disso, o movimento rastafári, que costumava ser antagônico ao estado jamaicano, passa, no século XXI, a colaborar com o desenvolvimento do turismo propagado pelo estado, e até mesmo a disputar eleições através de candidatos afiliados a partidos políticos estabelecidos. 6 O posicionamento racial de artistas individuais também influenciou a relação entre seus projetos artísticos e políticos. Por exemplo, vários jamaicanos identificados como brancos, incluindo David Boxer e Laura Facey, se interessaram pela recuperação da herança africana na Jamaica e em sua própria ancestralidade. Embora esses artistas possam ser criticados por omitir sua própria posição historicamente privilegiada, queremos enfatizar aqui a importância dessas imagens de raízes negras e africanas para negociações recentes de identidade e pertencimento na Jamaica. Entrevista com Wayne Modest, 2007. A permissão para o uso do nome e da citação foi concedida pelo artista. 8 9 Esses novos modos incluíram “uma forte ênfase na reportagem fotográfica; reflexões autobiográficas e intervenções sociais provocantes; novas interrogações sobre gênero e corpo; um realismo às vezes implacável, mas também uma capacidade para a poesia visual imaginativa; experimentação com projeção de vídeo, animação e interatividade; e um crescente desrespeito pelas noções convencionais sobre o ‘objeto de arte’ e as disciplinas artísticas tradicionais e segregadas”(POUPEYE, 2013). 10 http://nationalgalleryofjamaica. wordpress.com/2013/09/14/new-roots-an-invitation-todialogue/; ver também: http:// arcthemagazine.com/arc/2013/09/the-national-gallery-of-jamaica -presents-new-roots-an-invitation-to-dialogue/. Acesso em: 21 set. 2014. 11 Todas as citações foram retiradas da página http://arcthemagazine.com/arc/2013/09/ the-national-gallery-of-jamaicapresents-new-roots-an-invitation-to-dialogue/. 12 13 Correspondência pessoal com Wayne Modest, Setembro de 2014. Mais sobre a série Of 72 em Patterson (2012); Ellis (2014, p. 170-171) e http:// anniepaul.net/2012/03/17/who-were-the-tivoli-73-a-preview-of-ebony-gpattersons-of-72/. 14 Ver http://ghettobiennale.org/. p. 225 15 Embora existam vários gêneros musicais surgidos na Jamaica, os dois principais gêneros relevantes aqui são a música reggae de raiz, mais comumente associada ao país, e o dancehall, que só surgiu na década de 1980. Atualmente, o dancehall é o gênero mais popular de música na Jamaica, embora os artistas de reggae de raiz ainda desfrutem de uma popularidade considerável e haja uma série de artistas que gravam canções em ambos os gêneros musicais. 16 Gilroy (2005) oferece uma discussão detalhada do posicionamento de Marley vis-à-vis o continente africano e sua diáspora. 17 Vídeos da palestra foram publicados em http://theislandvibes.com/video/vybz-kartel-uwilecture-very. Para uma discussão sobre a palestra e a política de pele de Vybz Kartel, consulte http://anniepaul.net/2011/03/11/i-decided-to-make-my-skin-a-living-breathing-canvas-vybzkartel-at-uwi/. CHAMBERS, E. Curator’s Eye ii: Identity and History: Personal and Social Narratives in Art in Jamaica. Exhibition catalogue. Kingston: National Gallery of Jamaica, 2005. CLARKE, K. New Spheres of Transnational Formations: Mobilizations of Humanitarian Diasporas. Transforming Anthropology, v. 18, n. 1, 2010, p. 48–65. ELLIS, N. Elegies of Diaspora. 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Durham: Duke University Press, 2011. p. 227 Cidade, relações de gênero e raça: Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais Antonia dos Santos Garcia NEIM / UFBA Cidade, relações de gênero e raça: Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais Resumo As cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização espacial colonial-escravista-capitalista, mantêm suas contradições históricas e contemporâneas, sendo que os diversos agentes sociais da cidade não tratam, com a centralidade e interseccionalidade necessárias, o racismo, o sexismo e o classismo como o tripé das suas estruturas, conforme propõem diversos movimentos sociais de diferentes correntes políticas de esquerda. Este artigo, além do contexto das desigualdades resultantes dessas estruturas, procura refletir sobre as experiências dos movimentos sociais que emergiram nas sociedades capitalistas contemporâneas de grandes desigualdades econômicas, políticas, sociorraciais, de classe, de gênero e de geração, entre outras. Estas experiências colocam, na agenda das sociedades-cidades, questionamentos sobre estas temáticas, especialmente os movimentos sociais urbanos que trouxeram à cena política os bairros populares e favelas, onde as mulheres negras tornaram-se protagonistas das lutas pelo direito à cidade. Estes questionamentos, todavia, ainda se dão de forma fragmentada, sem um projeto de cidade-sociedade que questione e combata a base da estrutura social racista, sexista, classista. Apesar do crescimento dos movimentos de mulheres negras, populares e indígenas, que têm contribuído com os questionamentos no interior dos movimentos sociais e das ciências sociais -, estes ainda não têm centralidade para o enfrentamento de todas as dimensões da dominação, sobretudo se levados em consideração estudos impregnados de eurocentrismo e políticas públicas inexistentes ou desintegradas. Através de Salvador, como a cidade mais cultural e demograficamente negra, a mais negra da diáspora africana, vamos refletir sobre seu perfil sócio-histórico e suas lutas antiescravistas-colonialistas e contemporâneas urbanas, nas quais as mulheres negras sempre tiveram relevante protagonismo. Além disso, vamos analisar as desigualdades sociorraciais do sistema de educação, com recorte de gênero e raça. Palavras-chave: Patriarcado, Racismo, Capitalismo, Desigualdades, Cidade Ciudad, género y relaciones raciales: Salvador, el derecho a la ciudad y los movimientos sociales Resumen Las ciudades latinoamericanas y caribeñas y su organización espacial colonial-esclavista-capitalista mantienen sus contradicciones históricas y contemporáneas, pero los diversos agentes sociales de la ciudad no abordan, con la necesaria centralidad yinterseccionalidad, el racismo, el sexismo y el clasismo como trípode de sus estructuras, como lo proponen varios movimientos sociales de distintas corrientes políticas de izquierda. Este artículo, además del contexto de desigualdades resultantes de estas estructuras, busca reflexionar sobre las experiencias de los movimientos sociales surgidos en las sociedades capitalistas contemporáneas de grandes desigualdades económicas, políticas, socio-raciales, de clase, de género y generacionales, entre otras, y que ponen en la agenda de sociedadesciudades preguntas sobre estos temas, especialmente los movimientos sociales urbanos que llevaron a la escena política los barrios populares y las favelas, donde las mujeres negras se convirtieron en protagonistas de las luchas por el derecho a la ciudad. Estas preguntas, sin embargo, todavía ocurren de manera fragmentada, sin un proyecto de ciudad-sociedad que cuestione y combata la base de la estructura social racista, sexista, clasista. A pesar del crecimiento de los movimientos de mujeres negras, populares e indígenas, que han contribuido a cuestionar los movimientos sociales y las ciencias sociales, los estudios impregnados de eurocentrismo y las políticas públicas inexistentes o desintegradas para enfrentar todas las dimensiones de la dominación no tienen centralidad. A través de Salvador, como la ciudad más negra cultural y demográficamente, la más negra de la diáspora africana, reflexionaremos sobre su perfil socio-histórico y sus luchas anti-esclavitud-colonialistas y luchas urbanas contemporáneas donde las mujeres negras siempre han jugado un papel importante. Además, analizaremos las desigualdades socioraciales en el sistema educativo, con un enfoque de género y raza. Palabras clave: Patriarcado, Racismo, Capitalismo, Desigualdades, Ciudad. City, gender and race relations: Salvador, the Right to the City and Social Movements Abtract Latin American and Caribbean cities and their colonial-slave-capitalist spatial organization maintain their historical and contemporary contradictions, but the various social agents in the city do not deal, with the necessary centrality and intersectionality, with racism, sexism and classism as the tripod of its structures, as proposed by various social movements from different political currents of the left. This chapter, in addition to the context of inequalities resulting from these structures, seeks to reflect on the experiences of social movements that emerged in contemporary capitalist societies of great economic, political, socio-racial, class, gender and generational inequalities, among others, and put on the agenda of societies-cities issues about these themes, especially urban social movements that brought popular neighborhoods and favelas to the political scene, where black women became protagonists in the struggles for the rights to the city. These issues, however, still occur in a fragmented way, without a city-society project that questions and combats the base of the racist, sexist, classist social structure. Despite the growth of black, popular and indigenous women’s movements, which have contributed to questions within social movements and social sciences, studies impregnated with Eurocentrism and nonexistent or disintegrated public policies to confront all dimensions of domination have not centrality. Through Salvador, as the most culturally and demographically black city, the blackest in the African diaspora, we will reflect on its socio-historical profile and its anti-slavery-colonialist struggles and contemporary urban struggles where black women have always played an important role. In addition, we will analyze the socio-racial inequalities in the education system, with a focus on gender and race. Keywords: Patriarchy, Racism, Capitalism, Inequalities, City Negritude: O despertar de dignidade, rejeição da opressão, lutar contra a desigualdade. Aimé Cesaire. Introdução cidade patriarcal e racista não tem em geral sido objeto dos estudos urbanos, exceto por algumas 1 urbanistas, geógráfas e sociólogas feministas. Mesmo assim, os maiores avanços que ocorrem nesta perspectiva se encontram na literatura internacional. Entre elas, Alejandra Massolo (1992), que organiza uma coletânea cuja abordagem trata da questão da mulher na vida urbana em vários aspectos e aponta para questões de ordem teórico-metodológica que preside os estudos: A Uma cultura Com uma metodologia de omissão, implicitamente opera uma hierarquização “entre principal-secundário, superior-inferior, público-privado, que aplicado sobre o gênero das pessoas sobre qualquer categoria social, fenômeno, práticas sociais, atores históricos distorce a produção do conhecimento científico, as interpretações e debate (MASSOLO, 1992, p. 12). v.2 n.1 p. 228-259 2023 ISSN: 2965-4904 Para Roccio Castro (1992, p.13), uma vez entendida a questão do gênero como uma relação de poder primária na vida social, o que significa a subordinação da mulher ao homem, o questionamento das outras relações de poder não só é necessário, mas inevitável: as relações de classe e raça implicam relações de poder exercido pelas classes dominantes sobre as classes populares e o exercício de 2 raça dominante sobre “minorias” étnicas e raciais . O modelo de estudos e configurações das cidades construídas e consolidadas ao longo dos séculos XIX e XX ignorou que o conjunto de cada população e de cada sociedade como homogêneo resultou e resulta na invisibilidade das mulheres, sobretudo nas sociedades mais pobres e negras. As cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização espacial colonial-escravista, exibem suas contradições históricas e contemporâneas, mas os diversos agentes sociais da cidade não tratam estas com a centralidade e interseccionalidade necessárias para compreender e alterar tais estruturas da colonialidade do poder contemporâneo, conforme a perspectiva de Aníbal Quijano: A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo(QUIJANO, 2005, p. 2). 3 Por outro lado, Lugones (2014, p. 940) propõe descolonizar o gênero, fazendo “[...] uma crítica à opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida do social” e afirma: A modernidade organiza o mundo ontologicamente em termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis. A crítica contemporânea ao universalismo feminista feita por mulheres de cor e do terceiro mundo centra-se na reivindicação de que a intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade. Se mulher e negro são termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis, então sua intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras – e não sua presença. Assim, ver mulheres não brancas é ir além da lógica “categorial”. Proponho o sistema moderno colonial de gênero como uma lente através da qual aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de p. 233 dicotomias hierárquicas e de lógica categorial. Quero enfatizar que a lógica categorial dicotômica e hierárquica é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade. Isso me permite buscar organizações sociais nas quais pessoas têm resistido à modernidade capitalista e estão em tensão com esta lógica. (LUGONES, 2014, p. 935). Corroborando com a crítica à colonialidade do poder, do ser e do saber, e possíveis rupturas epistemológicas insubmissas, feministas negras, decoloniais e experiências do feminismo negro, Ângela Figueiredo propõe: [...] resgatar reflexões sobre os percursos teórico-metodológicos do feminismo negro realizados nos últimos anos destacando as principais mudanças e apontando alguns fatores que contribuíram para a emergência de uma nova epistemologia feminista negra. O contexto político e social em que tais movimentos se inscrevem é, efetivamente, propiciado pelas conquistas do movimento negro a partir dos anos de 1980, atrelado às políticas sociais implementadas pelo governo petista, tais como, a expansão do número de universidades públicas e a implementação das políticas de ações afirmativas, possibilitando que um maior número de professores e alunas e alunos negros adentrassem a universidade. Esse ingresso contribuiu para a formação de coletivos negros dentro e fora das universidades, que efetivamente estreitaram laços e alianças com os movimentos sociais, notadamente o movimento de mulheres negras (FIGUEIREDO, 2020, p. 3). Sandra Almeida (2019), por sua vez, traz uma relevante contribuição ao debate sobre a questão, analisando as críticas feministas e as teorias pós/descoloniais quando afirma: p. 234 Se podemos dizer, por um lado, que o pós-colonialismo se fortalece com a interrupção ocasionada pelos estudos feministas, por outro lado, podemos salientar como a crítica feminista, questionada há algum tempo por seu branqueamento e seu ocidentalismo, tem sido insistentemente levada a refletir, pelas próprias críticas feministas e pelo debate ampliado pelas discussões trazidas pelo pós-colonialismo e mais recente pelas teorias descoloniais, sobre a categoria universalista da mulher, abrindo caminho para se teorizar novas formas de se pensar o lugar das mulheres na contemporaneidade, a falácia da universalidade, a diferença entre as mulheres, os vários sujeitos do feminismo, a transversalidade do gênero, entre outros (ALMEIDA, 2019, p. 88). Enfrentar as três bases principais da colonialidade: poder, saber e ser, proposto por autores e autoras com os quais dialogamos, pressupõe desconstruir o poderoso e hegemônico aparato político, ideológico, econômico, etc., nas sociedades latino-americanas e caribenhas da diáspora negra. Nesta perspectiva, nossa proposta analisa as relações de gênero, raça/etnia, espaço e poder no mundo contemporâneo, que são étnica e culturalmente diversas, se expressam no urbano em diferentes dimensões e precisam de outras metodologias como propõe o feminismo, especialmente negro e popular, que aponta as lacunas do feminismo eurocentrado. No caso das correntes marxistas, Harvey (2006, p. 20), ao analisar a crise do materialismo histórico, aponta para a necessidade de uma concepção dinâmica deste e da teoria, para apreender o significado das mudanças que já vinham ocorrendo na economia, na política, na natureza das funções do Estado, nas práticas culturais e na dimensão do tempo-espaço em que as relações sociais e os sujeitos sociais devem ser avaliados. Henri Lefebvre, nesta perspectiva, em sua obra pioneira sobre o direito à cidade “Le droit à la ville”, publicada na década de 1960, é uma referência para pensar o urbano e a cidade de forma mais ampla, através da práxis. Esse conceito, hoje popularizado globalmente, torna-se referência tanto para as ciências sociais como para os movimentos sociais contemporâneo, e sua relevância pode ser confirmado 4 pela decisão do Fórum Urbano Mundial: Adotar o “Direito à Cidade’ como marco referencial para modificar a realidade urbana por meio da construção de cidades mais humanas, democráticas e sustentáveis resultou na sua escolha como temática conceitual e estratégica do Fórum Urbano Mundial 5, que será realizado em março de 2010 no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Essa definição visa não mais o debate para o estabelecimento deste Direito, seu reconhecimento e correlatos, mas sim, para o que os Governos fazem ou podem fazer para garantir sua efetivação, por meio de regulamentações, programas, ações, projetos, políticas, bem como a visão dos interessados sobre esses esforços concretos, discursos, e que direitos ainda não foram atendidos pelas Políticas Públicas (UN-HABITAT, 2010). p. 235 As lacunas do marxismo, apontadas por diversas correntes feministas, inclusive, representam um estímulo à busca de novos caminhos, novas epistemologias, novos paradigmas que compreendam a pluralidade do social e, portanto, a outra parte da humanidade: as mulheres de todas as raças, de todas as classes, mas entendidas nas suas especificidades. Por outro lado, Ana Alice Costa (1998), ao analisar a construção do pensamento feminista sobre o “não poder” das mulheres, embora também se associe às críticas dessas lacunas, lembra: A primeira tentativa de explicar, de forma sistematizada, longe dos não biologismos, as causas da condição da subordinação da mulher nas sociedades modernas foi feita por Kal Marx e Frederico Engels. Partindo da premissa de que a condição de dependência da mulher não é fruto da sua natureza feminina e sim o resultado de todo um processo histórico ligado ao desenvolvimento das forças produtivas e em consequência deste, da própria evolução da família (COSTA, 1998, p. 19-20). Nesse sentido, as lacunas apontadas devem nos conduzir à apreensão da cidade e do urbano, cada vez mais dominada pelo capital, compreendê-las nas suas múltiplas dimensões, inclusive, as espaciais que são pouco tratadas. Portanto, enfrentar a questão é um enorme desafio tanto para as Ciências Sociais quanto para os Movimentos Sociais que lutam pelo direito à cidade, por uma cidade de fato democrática. Todavia, embora nem todos os autores e autoras como Henri Lefebvre (1991), David Harvey (2006), Florestan Fernandes (1965), Clóvis Moura (1988), Otávio Ianni (1987), Milton Santos (2002), Manuel Castells (1983), entre outros e outras, tenham dado, nas suas obras, centralidade às questões mencionadas, nos oferecem a possibilidade de análise dos mecanismos de dominação social e dos desafios à democratização da cidade a partir das lutas sociais de múltiplas dimensões que cobrem o papel do Estado na promoção do direito à cidade de todas as pessoas, como direitos humanos. p. 236 Brasil negro e seus paradoxos passados e presentes Refletir sobre a insuficiência dos macro sistemas explicativos das realidades sociais que produziram, nas últimas décadas, questionamentos importantes, sobretudo nas Ciências Humanas e Sociais, nos permite compreender como o racismo e o sexismo, historicamente, têm moldado as sociedades em geral e, particularmente, a brasileira. Estes questionamentos têm tentado superar diversas dicotomias: economicismo e culturalismo, superior-inferior, público-privado, passando a trabalhar a indeterminação histórica, o campo amplo das mediações com análises mais dialéticas. Como mostra Thomas Skidmore - estudioso do pensamento das elites brasileiras do século XIX, a história do racismo é longa e, de acordo com ele, persistente até hoje, sobretudo a partir de 1860: De um lado, os movimentos abolicionistas triunfaram por todo o mundo do Atlântico Norte, e, finalmente, até o Atlântico Sul. No entanto, nesse exato momento em que a escravidão recuava sob o impacto das mudanças econômicas e o da pressão moral, pensadores europeus ocupavam-se em sistematizar as teorias das diferenças inatas (SKIDMORE, 1976, p. 65). Essa ‘ideologia do branqueamento’ obteve apoio de governos, intelectuais e todos os grupos hegemônicos da sociedade” (BENTO, 1999, p. 30). Analisando a Figura 1, sobre a evolução da população brasileira de 1972-1991, fica claro que as elites escravocratas brasileiras atravessaram séculos com sua política de branqueamento da sociedade e a exclusão negra e indígena. Costa Pinto (1998, p. 71) mostra a tendência de branqueamento da população brasileira desde o século XIX, quando a imigração européia se intPor outro lado, Octávio Ianni (1987, p. 344-47) aponta três marcos históricos da formação brasileira, que têm implicações na formação da nacionalidade e da relação entre a questão racial e a identidade nacional: (1) a Declaração da Independência, em 1822, (2) a Abolição da Escravatura, em 1888, e (3) a Revolução de 1930. Estas datas, todavia, marcaram apenas o momento inicial em que a sociedade se põe diante de problemas, tais como: (1) raça, mestiçagem e população, povo e cidadão; (2) terras devolutas, indígenas, ocupadas, griladas, tituladas; (3) províncias, Estados, o Estado nacional; (4) região e nação, etc. p. 237 Figura 1: Evolução da População Brasileira Segundo a Cor -1872/1991. Fonte: Elaborado pela autora com base em João José Reis/IBGE, 2007. Para o autor, o abolicionismo e a política de incentivo à imigração europeia alteram o quadro inicial, com a valorização crescente do europeu. Com a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, o poder estatal passa para a hegemonia da oligarquia cafeeira. Em decorrência disso, acontece uma alteração fundamental no enfoque da questão racial brasileira com a ruptura representada pela Revolução de 1930 e o delineamento das interpretações mais importantes do problema racial brasileiro: 5 6 formula-se a tese da democracia racial; desenvolve-se o indigenismo; coloca-se o problema racial no âmbito da reflexão da sociedade de classes (IANNI, 1987, p. 344-347). p. 238 Comparando o Brasil, no interior da América Latina, Hasenbalg (1992, p. 52) aponta dois eixos em torno dos quais se estabelecem as semelhanças entre o Brasil e as outras sociedades latino-americanas: a) a concepção desenvolvida por elites políticas e intelectuais a respeito de seus próprios países, supostamente caracterizados pela harmonia e tolerância, e ausência de preconceito e discriminação racial (concepção que coexiste, em todos os casos, com a subordinação social ou virtual desaparição dos descendentes de africanos); b) o embranquecimento, entendido tanto como projeto nacional implementado por políticas de povoamento e imigração, como em termos da obsessão em representar as respectivas sociedades como essencial ou predominantemente brancas e de cultura hispânica ou, de forma mais inclusiva, européia. De acordo com Bento (1999), entre 1870 e 1930, tivemos um grande crescimento das teorias racistas que pregavam o cruzamento inter-racial como forma de resolver o problema de um país negro e mestiço, “Essa ensificou às custas dos cofres públicos: os brancos, que representavam 38,11% da população em 1872, passam a 63,52%, em 1940, enquanto os de cor (pretos e pardos) diminuíram para 35,88%. De fato, o crescimento da população branca, desde o processo de imigração intensiva de europeus no século XIX, é resultado da estratégia de branqueamento das elites a partir da crise do escravismo, do movimento abolicionista, da substituição da mão de obra escrava pela livre quando o negro e o mulato perdem, gradativamente, espaço para o imigrante branco europeu. Mas, segundo Ianni (1987, p. 23), a abolição e o próprio abolicionismo explicam apenas parcialmente a transformação do escravo em trabalhador livre. Para o autor, os processos econômicos e sociais, responsáveis pela expulsão do escravo da esfera dos meios de produção, são os mesmos que provocam o afluxo de imigrantes e, em menor escala, o deslocamento de caboclos e roceiros para as fazendas de café e para os núcleos urbanos. Os caminhos percorridos pela sociedade brasileira na difícil construção dos direitos humanos, do direito à cidade e da democracia plena estão marcados por avanços, retrocessos e, acima de tudo, profundas contradições. A tradição autoritária e oligárquica herdada do passado colonial-escravista se faz presente, ainda hoje, sob variadas formas, ora sutis, ora explícitas, geralmente tomadas como naturais e inevitáveis em nossa sociedade, onde predominam os valores racistas, sexistas/patriarcais homofóbicos e e lesbofóbicos. O patriarcado e o racismo, como eixos estruturadores nas relações sociorraciais e de gênero, são imprescindíveis para entender nossa sociedade através de estudos e políticas de superação das sociedades e cidades racistas e patriarcais, como propõem os movimentos revolucionários no seu devir. Na discussão sobre o colonialismo e suas diversas violências e maniqueísmos, 7 Fanon (1968) critica o nacionalismo e o imperialismo, sendo uma obra bastante atual sobre o padrão de colonialidade que vivemos, ao mesmo tempo que propõe uma descolonização radical do mundo: p. 239 A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se: torna transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe: dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação - ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono - foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. O colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial (FANON, 1968, p. 26). No livro O Navio Negreiro: uma história humana, Marcus Rediker (2011), analisa um dos aspectos mais terríveis da escravidão moderna: o tráfico transatlântico. Entre histórias terríveis do tráfico de africanos, conta a história de uma mulher que morreu e foi jogada ao mar: A história dessa mulher constitui um ato no que o grande erudito e ativista afro-americano W.E.B DuBois qualificou como ‘o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade: a transferência de 10 milhões de seres humanos da beleza negra de seu continente natal para o recém-descoberto Eldorado do Ocidente. Eles desceram ao inferno’ (REDIKER, 2011, p. 12). p. 240 Peregalli (1988) também mostra, entre outras coisas, a grande violência que foi o processo colonial. Por um lado, não tem nada haver com “cordialidade”, “democracia racial”, que se tornaram elementos de referência para o debate da questão racial brasileira e, por outro, a reação de africanos e africanas, com a formação de quilombos rurais semiurbanos e urbanos, revoltas, atentados contra senhores e seus feitores, assassinatos, suicídios e fugas que se espalharam intermitentemente em todo o território brasileiro. No período escravista o negro e a negra eram apenas uma questão econômica ou policial. Ao definir o negro como um problema racial, um obstáculo a um destino nacional que se desejava em padrões europeus e inspirados em ideologias racistas deste continente, setores importantes da intelectualidade brasileira (representando os interesses hegemônicos da classe dominante), iniciaram a montagem do ideário 8 racial brasileiro. Mas este ideário apresenta vários pontos em comum com outros países que também viveram sob escravidão, especialmente a América Latina. Ao longo do tempo, os processos de negação do racismo, bem como o processo de branqueamento forjado desde o século XIX, tiveram consequências importantes que precisam ser estudadas e compreendidas nas Américas, no Brasil da colonização portuguesa, e na formação das cidades sob novas epistemologias. Com a Revolução de 1930, a tese da democracia racial desenvolvida por Gilberto Freyre, seu maior expoente, influenciou muitas pesquisas sobre a interpretação da questão racial. As desigualdades raciais são tratadas, pelo autor, como um não-problema, para quem brancos, negros e mestiços se relacionavam harmoniosamente, como mostra Ianni (1987). Apesar dos avanços produzidos pelos movimentos antirracistas e o feminismo negro sobre o conhecimento sociológico, etnográfico, histórico, econômico, entre tantos aspectos, o racismo e o sexismo continuam sendo tratados no Brasil como um não-problema, embora o nosso cotidiano seja repleto de classificações raciais. Em conseqüência, torna-se mais difícil entender e combater as desigualdades específicas entre negros e negras, indígenas e brancos e brancas. Florestan Fernandes define assim as nossas ambiguidades e contradições: O padrão brasileiro de dominação racial engendrou uma ambivalência inexorável no meio negro – e esta não pode ser combatida e extirpada sem a eliminação prévia daquele. Isso quer dizer que, enquanto o negro não romper com a visão mistificadora da realidade racial, dispondo-se a colocar o branco no centro de um antagonismo que deve ser, inevitavelmente, de ‘classe’ e de ‘raça’, ele será vítima de várias confusões morais e da capacidade de lutar, de fato, por posições coletivas nas estruturas de poder (FERNANDES, 1965, p. 73). Segundo Carlos Hasenbalg (1992, p. 14), os estudos brasileiros sobre relações raciais das últimas décadas podem se caracterizar (mesmo com simplificação), por uma peculiar divisão disciplinar do trabalho: os historiadores, que, apesar dos notáveis p. 241 Figura 2 - População do Brasil por cor ou raça no Brasil, 2020. Fonte: Elaborado por Agenor G. P. Garcia com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral/2020 do IBGE. Figura 3 - População da Bahia por cor ou raça. Fonte: Elaborado por Agenor G. P. Garcia com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral/2020 do IBGE. p. 242 progressos no estudo da escravidão, negligenciaram amplamente a história social do negro no pós-abolição; os antropólogos, que, seguindo os caminhos abertos por Nina Rodrigues e Arthur Ramos, privilegiaram o estudo da cultura negra, com ênfase particular nas religiões afro-brasileiras; e, finalmente, os sociólogos, que estudam as relações raciais, dando destaque à estratificação e às desigualdades raciais. Kabengele Munanga, por sua vez, alerta que alguns estudiosos da questão fogem do conceito de raça, substituindo-o pelo conceito de etnia para ser “politicamente correto”, mas continua-se a falar das mesmas camadas hierarquizadas, da mesma oposição entre dominantes e dominados - “O que mudou, na realidade, são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e exclusão ficou intacto” (MUNANGA, 2003, s/p). Nesse contexto, o nosso olhar deste Brasil do século XXI, uma sociedade urbana, feminina, negra, multirracial, multiétnica, multicultural, alimentada pelo mito da democracia racial, até hoje é tributário do estupro colonial de mulheres indígenas e negras e da política imigratória ligada à ideologia do branqueamento, que afetou a composição racial em todas as regiões, mas sobretudo no Sul e no Sudeste. Considerando todo o processo aqui analisado, apesar de todo o racismo, o Brasil do século XXI se autodeclara negro: 56,0% contra 43% de brancos (ver Figura 2). Contudo, esta maioria é composta pelas pessoas pardas, o que pode significar que o mito da democracia racial permanece no imaginário racial brasileiro. A Bahia (ver Figura 3) contrariou a tendência de branqueamento, historicamente engendrado pelas elites escravocratas, e se reafirma como negra, demográfica e culturalmente afrodescendente, com 82% de pessoas que se autodeclaram pardas-pretas. Paradoxalmente, o racismo predomina, levando às desigualdades raciais e espaciais muito reveladoras da hegemonia dos 18% de brancos. Contudo, a hegemonia não é uniforme e, portanto, é composta pela burguesia, classe alta e classe média que ocupam os bairros privilegiados em qualquer município, sobretudo as famílias tradicionais originárias da casa grande. Em Salvador, mapeamos esses bairros e vimos alta segregação na cidade (GARCIA, 2009). Nesse contexto, recorremos a Fanon (2008) para pensar nos significados da suposta “democracia racial brasileira”, engendrada pelo mito da referida democracia, que continua muito forte e contribui para a ausência de grandes mobilizações em torno das demandas históricas dos movimentos negros e de mulheres negras, tanto em relação às políticas públicas quanto às pesquisas neste campo. p. 243 Embora todos esses significados estejam presentes no imaginário coletivo popular, nem sempre as estatísticas permitem captar a sua verdadeira força nas práticas cotidianas, na recriação de relações sociais e raciais. Portanto, pesquisas qualitativas são também necessárias para contribuir com a construção da classe para si, a raça para si e a mulher para si na perspectiva de dois expoentes da luta antirracista: Ora, inconscientemente, desconfio do que em mim é negro, isto é, da totalidade do meu ser. Sou um preto – mas naturalmente não o sei, visto que o sou. Em casa, minha mãe canta para mim, em francês, romances franceses nas quais os pretos nunca estão presentes. Quando desobedeço, ou faço barulho demais, me dizem: “não se comporte como um preto”. Um pouco mais tarde lemos livros brancos e assimilamos paulatinamente os preconceitos, os mitos e o folclore que nos chegam da Europa (FANON, 2008, p. 162). Guerreiro Ramos (1995), sociólogo de projeção, ao escrever sobre “O Negro desde dentro”, faz profundas críticas à sociologia importada e subordinada: Povos brancos, graças a uma conjunção de fatores, históricos e naturais, que não vem ao caso examinar aqui, vieram a imperar no planeta, e, em consequência, impuseram àqueles que dominam uma concepção de mundo feita à sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre esses valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos (RAMOS, 1995, p. 241). p. 244 O reexame de muitas das lutas contra a opressão mostra o não conformismo de dominadas e dominados contra o regime escravista e que existiam alianças tanto entre rebeldes urbanos e rurais quanto entre indígenas e quilombolas. De acordo com Clóvis Moura (1988), são três as principais formas de luta dos escravizados e escravizadas, como mostra a historiografia mais recentemente: a) a revolta organizada pela tomada do poder, que encontrou sua expressão nos levantes dos negros e negras malês (mulçumanos/as) na Bahia, entre 1807 e 1835; b) a insurreição armada, especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no Maranhão; c) a fuga para o mato, de que resultaram os quilombos; e, d) as guerrilhas, extremamente móveis, pouco numerosas e que representavam sentinelas avançadas dos quilombos. Na contemporaneidade outras formas de luta contra a subalternidade negra, indígena e feminina buscam as transformações necessárias para se criar uma sociedade de igualdade e de plena cidadania (MOURA,1988). A cidade negra, paradoxos e desafios contemporâneos Sem um passado negro, sem um futuro negro me era impossível viver minha negritude. Franz Fanon Alguns movimentos sociais, especialmente os urbanos que emergiram nas sociedades capitalistas contemporâneas de grandes contradições econômicas, políticas, sociorraciais, de gênero, de geração, entre outras, têm colocado na agenda das cidades questionamentos sobre estas temáticas. Contudo, isto ainda ocorre de forma fragmentada, sem um projeto de cidade-sociedade que questione a base da estrutura social racista, sexista, classista, lesbofóbica e homofóbica, por exemplo. Conforme dito anteriormente, as cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização espacial colonial-escravista, exibem suas contradições históricas e contemporâneas, mas os diversos agentes sociais da cidade não tratam estas com a centralidade e interseccionalidade necessárias para compreender e alterar tais estruturas como deveriam. Contudo, a persistência e a tradição dos estudos em geral, e os urbanos em particular, em modelos explicativos eurocêntricos, androcêntricos e sua perversa engrenagem teórica e prática no Brasil e na América Latina, tem ignorado as categorias de gênero, raça, geração, entre outras, como explicativas da segregação sociorracial e das desigualdades nas cidades e na sociedade, negando-se a ver a “divisão racial do espaço desde a casa grande e senzala, sobrados e mocambos” como formas espaciais e culturais díspares, como bem caracterizou a ativista feminista negra e acadêmica Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982) ao afirmarem: p. 245 O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural no negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” [...] dos dias de hoje, o critério tem sito simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (HASENBALG; GONZALEZ, 1982, p.15). Como afirmam autoras e autores do livro “Cidades Negras” (FARIAS et al.,2006), entre os séculos XVI e XIX, parte da história da escravidão no Atlântico aconteceu em tanto em cidades quanto no campo. Ao longo do tempo, contudo, os processos de negação do racismo nas cidades negras constituídas no passado e o processo de branqueamento forjado desde o século XIX tiveram consequências importantes. No chamado Novo Mundo, cidades como Buenos Aires, Caracas, Charleston, Nova Orleans, Nova York, Cidade do México, Gauyaquil, Havana, Lima, Port-au-Prince, San Juan, Santo Domingo, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís se tornaram brancas, exceto Salvador (FARIAS et al., 2006). Na comparação entre a cidade do colonizador e a do colonizado, Fanon (1968), mostra que a dominação escravista que moldou as sociedades construídas no chamado Novo Mundo são bem diferentes e desiguais e afirma: p. 246 A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade: acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade: de árabes. O olhar que o colonizado, lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente, mas sempre alerta: ‘Eles querem tomar o nosso lugar’. É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono (FANON, 1968, p. 29). Marcada desde os tempos coloniais-escravistas por quilombos, senzalas, mucambos, pelourinhos e cortiços, a urbanização brasileira, caracterizada contemporaneamente por favelas e/ou bairros populares majoritariamente negros e afroindígenas, precisa ser objeto dos estudos críticos e das políticas urbanas inclusivas na perspectiva dos direitos à cidade. A partir das reflexões que fizemos até aqui, passamos a refletir teórica e empiricamente sobre a velha Salvador. Salvador, cidade das mulheres e dos negros: as lutas pelo direito à cidade Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. Rosa de Luxemburgo A velha Salvador, com 472 anos completados em 29 de março de 2021, é a quarta metrópole do país e, talvez, a mais emblemática da Diáspora Africana. Considerada a cidade mais negra fora da África, como se reafirma em autodeclaração, quando comparamos os censos 2000 e 2010, Salvador continua majoritariamente negra. Observe-se que em números absolutos e relativos houve crescimento tanto de pardos como de pretos entre 2000 e 2010 e redução de autodeclarações de pessoas brancas. De acordo com Nei Lopes: Diáspora Africana tem dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio de escravo, ocasionou a dispersão de africanos tanto através do Atlântico quanto através do oceano Índico e no Mar Vermelho caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV - quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a imigração, sobretudo na Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. O termo ‘Diáspora’ serve também para designar, por p. 247 extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram (LOPES, 2004, p. 236). Salvador, como cidade da Diáspora Africana, não é somente a mais negra demograficamente, conforme os levantamentos dos censos 2000 e 2010 do IBGE, é também de forte cultura afrodescendente e, ao longo da sua história, manteve-se assim. No imaginário popular é a cidade brasileira religiosa e culturalmente mais africana de todas. Como no passado, desde o quilombo, a senzala e, contemporaneamente, as favelas, os bairros populares e todas as periferias negras, as mulheres negras recriam e tecem identidades e lutas. Elas são protagonistas cotidianamente de formas diversas de sociabilidades nos espaços urbano e rural. A cidade está entre as mais desiguais no Brasil, racialmente, apesar de ser a cidade majoritária em termos demográficos e culturais. Nesse contexto, é importante não somente olhar através do retrato estatístico e cartográfico que mostra uma cidade onde há o crescimento do número de pretos e pardos, sobretudo dos primeiros, enquanto cai o percentual de brancos entre os censos 2000 e 2010. Mas também é preciso ver os problemas fundamentais das desigualdades que atingem grande parcela da população negra e seu pertencimento racial e perceber, através deles, o resultado de um processo histórico de introjeção da inferioridade que todas as pessoas negras tiveram ao longo de suas vidas, tendo na infância o seu marco inicial e principal. Depois de quase quatro séculos de escravidão, de mão de obra escravizada que construiu nosso país, do desenvolvimento capitalista industrial dependente e tardio, o Brasil reproduziu para os grupos sociais subalternos as péssimas condições de trabalho e a exclusão da força de trabalho negra na substituição da mão-de-obra escravizada pela mão de obra livre. Assim, negros e negras perderam espaço gradativamente para o imigrante branco europeu, como salientou Florestan Fernandes (1965), no caso de São Paulo, e Luiz Costa Pinto (1998), em relação ao Rio de Janeiro, cidades onde o projeto de dominação capitalista mais se desenvolveu e o branqueamento e a substituição de mão de obra também. p. 248 Costa Pinto (1998), que analisou o censo de 1940 com o recorte de gênero e raça, constata que, no Rio de Janeiro (DF), entre as mulheres o maior número de empregadas domésticas encontra-se entre as pretas; em cada 100 mulheres pretas, 31,47% eram domésticas, na proporção de 16,44% entre as pardas e de 3,67% entre as brancas. Se, para os homens negros, a principal via de inserção no mercado de trabalho, historica- mente, esteve vinculada a funções subalternas, para as mulheres negras a condição é mais limitada e persistente, como mostram estudos mais recentes sobre a questão. Em consequência, esse desenvolvimento aprofundou as desigualdades de gênero, de raça, urbanas e regionais que se mantêm inarredáveis até hoje. Entre os séculos XIX e parte do XX, em Salvador, a indústria têxtil era o ramo fabril por excelência e as mulheres tinham participação fundamental na composição do operariado industrial da cidade. Segundo Mário Augusto Silva Santos (1992), no período de 1890-1930, o emprego da mão de obra feminina e infantil passou a assumir um significado crescente e o mais interessante é que, em 1920, dentre os trabalhadores da indústria 42% eram mulheres. Elas tinham pequena participação em todos os ramos, mas eram maioria esmagadora no setor de “vestuário e toucador” (72%), e no têxtil (63%). Observe-se que parte dessa história foi vivida no período da escravidão, como em Plataforma, bairro popular-operário da periferia negra de Salvador, onde mulheres e crianças trabalhavam na fábrica têxtil, instalada em 1875. Mesmo assim, elas ficaram e continuam ficando invisíveis na sociedade até hoje. Nos EUA, segundo Ângela Davis (2013), a fiação e a tecelagem eram ocupações domésticas e as mulheres foram as primeiras a serem contratadas pelos donos dos moinhos para operar os novos teares. Todavia, conforme avançou a industrialização, mudando a forma de produzir da casa para as fábricas, a importância dos trabalhos domésticos das mulheres sofreu uma erosão. Heleieth Saffioti (1987), pensadora marxista, alerta que é importante olhar para os diferentes significados da naturalização que se faz do papel da mulher na sociedade de classe: Do ponto de vista das classes sociais, podem-se distinguir, basicamente, dois sentidos da história: o das classes dominantes e o das classes subalternas. Do angulo das categorias de sexo, as mulheres, ainda que façam história, tem constituído sua face oculta. A história oficial pouco ou nada registra da ação feminina no devenir histórico. Isto não se passa apenas com mulheres. Ocorre com outras categorias sociais discriminadas, como negros, índios, homossexuais. Deste fato decorrem movimentos sociais, visando ao resgate da memória, geralmente não registrada, destes contingentes humanos que, atuando cotidianamente, ajudaram e/ou ajudam a fazer história. É de extrema importância compreender como a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras categorias sociais constitui caminho p. 249 mais fácil e curto para legitimar a “superioridade” dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos (SAFFIOTI, 1987, p. 11). Para Ana Alice Costa, Saffioti foi quem conseguiu aproximar-se mais da essência da relação entre patriarcado e capitalismo, na intenção de explicar a desigualdade social da mulher. A partir de uma nova análise do patriarcado, em perspectiva do materialismo histórico, Saffioti chega ao que denomina ‘a simbiose patriarcado-racismo-capitalismo’ (COSTA, 1998, p. 38). Do ponto de vista das lutas sociais, Salvador, como cidade sede do processo de dominação escravista da América portuguesa e sua capital até 1773, quando foi transferida para o Rio de Janeiro, assim como outras cidades, constituiu vários processos contra-hegemônicos como vimos anteriormente. Como assinala Reis (1988, p. 88-89), “Nenhuma outra região do país havia experimentado, no curto período de 30 anos (1807-1835), um número tão formidável de revoltas e conspirações escravas”. A greve de 1857 parou a cidade por dez dias em protesto contra uma postura que lhes impunha um imposto e o uso no pescoço de uma placa de metal gravada com o número de registro da câmara, portanto inventaram a greve urbana no Brasil (REIS, 1988) e criaram o primeiro Movimento Social Negro desde Palmares. Conhecer a história das mulheres negras, e seu protagonismo na rebeldia política, religiosa, entre outras, da Colônia, passando pelo Império até a República, é muito relevante para que se aprofundem os estudos numa perspectiva descolonial, superando a alienação para propor processos à revolução. Em “Bahia de todas as Áfricas”, João Reis (2009) mostra que no século XIX, em Salvador, era nos subúrbios que acontecia a maior parte das atividades de candomblé e, devemos lembrar também, o maior número de quilombos, ambos considerados perigosos, com destaque para a sacerdotisa Nicácia: p. 250 Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes, quando fora seguida por uma multidão até a cidade, ao ser levada presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o conde da Ponte. Esse governador desencadeador de uma vigorosa campanha repressiva contra os candomblés e quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos (REIS, 2009, p. 40-41). Outro exemplo de guerreira é Zeferina, do Quilombo do Urubu no Subúrbio Fer9 roviário de Salvador: Algumas líderes dos levantes, que irromperam às vésperas da abolição, eram como reis e rainhas. Segundo documentos, Zeferina era uma dessas rainhas, representante do quilombo do Urubu, em Salvador. Durante sua última luta, empunhou seu arco e flecha e soberanamente conduziu a resistência negra na capital baiana. De acordo com relatos da época, Zeferina ‘custou a se entregar, antes fazia muita diligência para se reunir aos pretos dispersados’ (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007, p. 95). Como vimos, a necessária ruptura com o pensamento eurocêntrico é um grande desafio para que a cidade patriarcal e racista se torne objeto dos estudos urbanos, sociológicos, políticos, históricos, geogáficos, da urbanização capitalista, marcada desde os tempos coloniais-escravistas por senzalas e mucambos, quilombos, pelourinhos, cortiços e, contemporaneamente, por favelas e/ou bairros populares majoritariamente negros e afroindígenas. Nas lutas contemporâneas contra a ditadura civil-militar de 1964, por exemplo, os movimentos feministas e populares urbanos, em particular, tiveram grande protagonismo trazendo à cena política mulheres das classes populares, das favelas e bairros negros. Nesse contexto, vamos ao estudo teórico-empírico de Salvador a partir de uma variável muito relevante na vida de qualquer sociedade: a educação que mobilizou mulheres de todas as raças e classes sociais. A perspectiva da teoria marxista compreende que as instituições sociais são reprodutoras dos valores dominantes e a escola brasileira tem sido, de fato, uma das instituições sociais das mais importantes na reprodução desses valores racistas, sexistas, classistas, misóginos, colonialistas, imperialistas etc, compreendendo que: O primeiro momento dessa dominação é econômico: é a dominação do capital sobre o trabalho, que corresponde à exploração das classes subalternas. Tal exploração é base da luta de classes, que se expressa na política, na luta ideológica, na disputa por hegemonia (GRAMSCI apud MOCHCOVITCH, 2001, p. 13). p. 251 Na perspectiva da crítica dialética da dominação e da subordinação intelectual e à luz das evidências empíricas das desigualdades raciais e de gênero na educação, vamos refletir sobre o processo de lutas pela hegemonia, onde a instituição escola pode fazer a “elevação cultural das massas”. As lutas sociais por uma educação libertadora e a conquista da Lei n° 10.639/2003, que legaliza o estudo da História da África nas escolas públicas e privadas que entrecruzam a cultura e história afro-brasileira, possibilitam narrativas contra hegemônicas, embora sofra de desconhecimento e resistências após 18 anos de sancionada, mas é uma esperança. A “Lei das Cotas” (Lei n° 12.711/2012), sancionada em 2012 por Dilma Rousseff, também foi outra grande 10 conquista dos movimentos negro e feminista negro, principalmente. Mais uma vez, as elites escravocratas deram um golpe em 2016 contra o governo Dilma Rousseff/PT, primeira presidenta do Brasil em 132 anos de República, para impedir os avanços nas políticas públicas como um todo e na educação em particular, resultando também na eleição da extrema direita nazifascista nas eleições de 2018. Marcada por golpes, a República brasileira tem recorrido a eles para impedir o desenvolvimento do povo. Na longa luta contra a ditadura de 1964, os movimentos sociais de diversos tipos, como os movimentos populares urbanos de Salvador, de base negra e feminina, por exemplo, também contribuíram para a sua derrubada e, consequentemente, para a construção dos processos democráticos, incluindo a Constituição de 1988 que, entre outros direitos, garante educação como um direito de todos as pessoas e dever do Estado. No século XX as mulheres conquistaram vários direitos: voto, educação e mercado de trabalho, entre outros. Contudo, são grandes as desigualdades intragênero, raça e classe como mostram os dados educacionais de Salvador, a partir da comparação dos Censos 2000 e 2010. p. 252 A análise comparativa dos censos 2000 e do 2010, em relação ao nível de instrução em Salvador, revela que as desigualdades educacionais não reduziram significativamente, apesar das políticas públicas de inclusão terem melhorado. Com os recortes de gênero, raça e classe, verifica-se que 51,1% da população em 2000 estava no nível fundamental, sendo que as brancas e os brancos são, respectivamente 34,1% e 34,1%, enquanto entre as negras e negros são 54,5% e 59,5% que só alcançaram este nível de escolaridade. Entre as mulheres, a distância percentual era de 20,4 e entre os homens 25,4, ou seja, naquele ano negras e negros tiveram grande desvantagem e só alcançaram o nível mais elementar da escolaridade em uma terra de negros e negras. Já no censo 2010 houve uma redução do total dos que só chegaram a esse nível educacional, na medida em que são 37,3% em 2010 e em 2000 eram 51,1%. Todavia, com os recortes adotados, as brancas e brancos são 24,1% e 23,9%, enquanto negras e negros tiveram uma redução para 38,4% e 43,1%, ou seja, a redução alterou as difereças entre os grupos brancos e negros, embora permaneçam as distâncias percentuais muito acentuadas. Entre mulheres nesse grau de escolaridade a distância era de 14,3% e entre os homens de 19,2%. Quanto ao nível médio, em 2000 entre as mulheres brancas e negras a distância era de 1,0%, indicando um esforço significativo das negras para melhorar sua escolaridade, já entre os homens era de 2,7%. Analisando o nível superior, brancas e brancos que alcançaram este nível são 24,3% e 26,9% e negras e negros são 5,5% e 5,9%, respectivamente, em 2000, com distâncias significativas: 18,8% entre as mulheres e 20,94% entre os homens. No censo 2010, brancas e brancos aumentaram seu capital educacional em 27,2% e 28,5% e negras e negros em 10,4% e 8,9%, com importante crescimento. Contudo, as desigualdades permanecem com uma distância percentual de 16,6 entre mulher branca e mulher negra e entre homens brancos e negros a diferença é ainda maior: 19,6%. Na pós-graduação, nível mais elevado que as pessoas tinham em 2000, mulheres brancas eram 1,0% e homens brancos 1,7%, já em 2010 eram 8,9% e 9,2%, respectivamente. Por outro lado, no grupo negro em 2000 eram 0,1% de negras e 0,2% de negros, já em 2010 as mulheres negras eram 2,6% e os homens negros 1,8%. Entre as mulheres brancas e negras a distância é de 6,3% e entre homens brancos e negros é de 7,4%. Isto mostra que as desigualdades raciais se mostram mais expressivas que as de gênero, indicando que o racismo atua na educação, onde as conquistas negras não conseguiram superar as desigualdades históricas de quem tem origem na casa grande e na senzala, mesmo em uma cidade onde a população afrodescendente é ampla maioria. Portanto, mulheres e homens brancos não enfrentam as barreiras racistas que, historicamente, mulheres e homens negros enfrentam. Assim sendo, a análise da educação em Salvador com os recortes de gênero e raça permite compreender as diferenças, as singularidades do fenômeno e as desigualdades raciais e intragênero em todo o sistema educacional. Sabe-se que negras e negros enfrentam várias barreiras: não frequentam pré-vestibular de alto custo, como as pessoas brancas, e têm que trabalhar para estudar e, desse modo, estudar nos cursos noturnos quase inexistentes em universidades públicas, o que constitui uma das muitas barreiras p. 253 a enfrentar. Além disso, a concorrência é desigual para o acesso à universidade pública (quadro que está melhorando com as leis e ações afirmativas), já que a maioria dos brancos freqüenta escolas particulares e pré-vestibular de melhor qualidade Para compreender todas as contradições que ocorrem no sistema educacional tanto em geral como intragênero em particular – diferenças entre mulheres e homens no interior do grupo negro e do grupo branco – é necessário recorrer às teorias feministas, em particular ao feminismo negro que questiona as teorias homogeneizadoras. Inclui-se aí as teorias feministas que são instrumentos importantes para criação de novos paradigmas e novas práticas, mas ainda insuficientes para dar conta, por exemplo, das contradições de gênero, classe, raça e espaço existentes no interior do grupo feminino. Como propõe Saffioti (apud COSTA 1988, p. 38), deve-se entender este processo de “simbiose patriarcado-racismo-capitalismo” dialeticamente. Considerações finais Como refletimos ao longo do texto, desde o século XIX, a questão do ideal do branqueamento, materializado pela mestiçagem e a construção do mito da democracia racial, ocupou as elites brancas e escravocratas e também afetou a formação das cidades latino-americanas e caribenhas, onde a maioria compartilha aspectos fundantes de sua formação sócio-histórica e, particularmente, as cidades brasileiras que se tornaram brancas. Salvador, cidade considerada a mais africana do Brasil, mostra grandes desigualdades raciais e, ao analisar seus dados de escolaridade, com recorte de raça e gênero, verifica-se desigualdades também intragênero. p. 254 Refletimos também sobre as contradições urbanas e os movimentos sociais urbanos históricos e contemporâneos antirracistas, antisexistas, anticlassistas, antiescravistas, anti-imperialistas-capitalistas, anti-homofóbicos-lesbofóbicos, tentando compreender processos multifacetados, dialeticamente. Nesse sentido, buscamos as epistemologias negras que questionam a mulher única – que por muito tempo contribuiu com a invisibilidade das mulheres negras da senzala às favelas –, valorizando suas lutas históricas e contemporâneas, a construção do feminismo negro para um projeto comum, revolucionário, em múltiplas dimensões. Portanto, livrarmo-nos das velhas teorias eurocêntricas para explicar nossa realidade, inclusive a urbana. Desse modo, adotamos um olhar afrocentrado, suas filosofias e epistemologias, para perceber a importância da participação feminina-feminista negra nas lutas ur- banas pelo direito à cidade em seus territórios, onde historicamente constroem suas territorialidades, seu lugar de fala, seus questionamentos sobre a ausência, especialmente das mulheres negras na construção do espaço urbano, da cidade. Por fim, os movimentos sociais urbanos de Salvador, com ampla base social, negra e feminina, eram hierarquicamente classificados como de “mulheres populares” e nunca como “feministas populares”. A construção e o crescimento do feminismo negro e popular representa um estímulo à busca de novos caminhos, novas epistemologias e novos paradigmas que compreendam a pluralidade do social. Entre os avanços em relação ao direito à cidade, o Fórum Urbano Mundial mostra os caminhos práticos para a superação das desigualdades urbanas em um mundo de rápida urbanização. Espera-se que o feminismo acadêmico e militante, como um todo, olhe o urbano e a cidade, dando a necessária centralidade e interseccionalidade, como espaço de transformação. Notas 1 Em Mujeres, Espacio y Sociedad: hacia una Geografía del Género (1995), Ana S. Martínez, Juana R. Mota e María de Los A. Muñoz organizam o manual de Geografía de Gênero que muito contribui para compreender que a Humanidade não é um todo homogêneo, uniforme e assexuado e as diferenças sociais entre homens e mulheres devem ser consideradas em todo momento. Por outro lado, Alejandra Massolo (1992) organiza a coletânea intitulada Mujeres y Ciudad: participación social, vivienda y vida cotidiana, na qual reflete sobre as mulheres como sujeitas da investigação urbana; movimentos urbanos populares e feminismo popular. 2 Demograficamente, muitas cidades brasileiras têm maioria negra, inclusive nas capitais nordestinas. 3 Uma das estudiosas sobre a dominação masculina na perspectiva da descolonialidade, que busca novas epistemologias da igualdade propôs uma leitura da relação entre o colonizador e o/a colonizado/a em termos de gênero, raça e sexualidade (LUGONES, 2014). 4 O Fórum foi criado pela Organização das Nações Unidas para analisar um dos problemas mais prementes do mundo de hoje: a rápida urbanização e seu impacto sobre as comunidades, cidades, economias, as alterações climáticas e políticas. Desde a primeira reunião em Nairóbi, no Quênia, em 2002, o Fórum tem crescido em tamanho e estatura, uma vez que viajou para Barcelona, em 2004, Vancouver 2006 e Nanquim, em 2008, e Rio de Janeiro em 2010. p. 255 5 Democracia racial é uma expressão sob a qual se aninha a falsa ideia de inexistência de racismo na sociedade brasileira. Construída a partir da ideologia do luso-tropicalismo, procura fazer crer que, graças a um escravismo brando que teria sido praticado pelos portugueses, as relações entre brancos e negros, no Brasil, seriam, em regra, cordiais. Essa falsa ideia tem se revelado obstáculo à conscientização do povo negro e ao enfrentamento do preconceito etnorracial no país (LOPES, 2004, p. 232). 6 Para Alcida Rita Ramos (2012, p. 28), o Indigenismo é “[...] um fenômeno político no sentido mais abrangente do termo. Não está nem limitado a políticas públicas ou privadas, nem às ações geradas por elas. Inclui também os meios de comunicação, a literatura ficcional, a atuação da Igreja, de ativistas dos direitos humanos, as análises antropológicas e as posições dos próprios índios, que podem negar ou corroborar a imagética do índio. Todos esses atores contribuem para construir um edifício ideológico que toma a questão indígena como sua pedra fundamental.” Urpi M. Uriarte (1998), ao discutir o indigenismo no Peru, cita Monoya e afirma que “O indigenismo foi, fundamentalmente, um estado de ânimo, uma vontade (mais discursiva que prática) de valorização e defesa da população indígena”. 7 O livro de Franz Fanon Os condenados da Terra (1968), conta com um prefácio de Jean-Paul Sartre e um título inspirado no hino do movimento comunista internacional. 10 Vale lembrar também que no período do governo Lula, o primeiro presidente operário da nossa história, houve a expansão da Rede Federal de Educação Superior com a interiorização dos campi das universidades federais. Foram criadas 14 novas universidades e mais de 100 novos campi que possibilitaram a ampliação de vagas e a criação de novos cursos de graduação. A expansão continuou no governo Dilma Rousseff, com a criação de mais 4 universidades. Referências ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen, 2019. ALMEIDA. S. R. G. Crítica Feminista e Narrativas Pós/Descoloniais: os limites do gênero e da representação. In: VEIGA, A. M.; NICHNIG, C. R.; WOLFF, C. S.; ZANDONÁ, J. (org.). Mundos de mulheres no Brasil. Curitiba: CRV, 2019. BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010. BENTO, M. A. S. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1999. CASTELLS, M. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 8 CASTRO, R. Las mujeres de América Latina y Africa. Africa-América Latina, Cuadernos, n. 9, 1992. Disponível em:https://publicaciones.sodepaz.org/images/uploads/documents/ revista009/01_mujeresamericalatinaafrica. pdf. Acesso em: 01 dez. 2021. 9 COSTA, A. A. A. As donas no poder: mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBA; Assembleia Legislativa da Bahia, 1998. Thomas Skidmore (1976) fez uma análise minuciosa do pensamento racista no interior da elite intelectual brasileira. p. 256 e em 2019 o rebatizou como Bloco Zeferina. Em 2016 criou a Banda Negra e Feminista Zeferina (GARCIA; SERPA; GARCIA, 2014). Em 2013, o Centro da Mulher Baiana – CEM, recriou o Bloco do Bacalhau, criado por operárias da fábrica de tecidos fundada em 1875, DAVIS, A. Mulher, Raça e Classe. Lisboa: Plataforma Gueto, 2013. FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FARIAS, J. B.; GOMES, F. dos S.; SOARES, C. E. L.; MOREIRA; C. E. A.. 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Se acolá, como cantam, “nesta cidade todo mundo é de Oxum”, aqui fica arriado nosso bater de cabeça para o povo/divindade, que fez da morte o encantamento e a terreirização do Brasil. “VIMOS EM SALVADOR IMPROVÁVEIS ORIXÁS” nos afazeres do dia a dia, Exu está na Liberdade; Ogun está em Ogunjá; Oxóssi está na Boca da Mata; Ossain está na Mata Escura; Omolu e Obaluaiyê estão na Saúde; Naná está na Lagoa Grande; Oxumarê está em Mussurunga; Oxum está em Águas Claras; Iansã está em Pitangueiras; Iemanjá está na Praia do Rio do Vermelho; Ibeji está em Água de Meninos; Xangô e Aiyrá estão em Barros Reis e Oxalá está no Alto das Pombas. Palavras-chave: Orixás, Salvador, cotidiano, fotografia, antropologia, diáspora africana. Orixás: variar todos los días Resumen “SALVADOR DÁ SANTO, LA CIUDAD OXUM: BAILA IJEXÁ”. Este es un ensayo fotográfico, compuesto en Salvador, Bahía en 2017. Fue realizado durante el trabajo de campo con la gente del terreiro, en medio de una investigación etnográfica sobre el lengua-de-santo, que es una lengua afrobrasileña. Son fotografías en las que tratan de la re-existencia y reinvención de la CIUDAD-TERREIRO. Sí allí, como canta la “ciudad todos son de Oxum”, aquí pedimos bendición, para el pueblo / divinidad, que hizo de la muerte el encanto y la terreirização de Brasil. “MIRAMOS EN SALVADOR ORIXÁS IMPOSIBLES” en las tareas diarias, Exu está en Libertad; Ogun está en Ogunjá; Oxóssi está en Boca da Mata; Ossain está en la Mata Escura; Omolu y Obaluaiyê están en la Saúde; Naná está en Lagoa Grande; Oxumarê está en Mussurunga; Oxum está en Aguas Claras; Iansã está en Pitangueiras; Iemanjá está en la playa de Rio do Vermelho; Ibeji está en Água de Meninos; Xangô y Aiyrá están en Barros Reis y Oxalá está en Alto das Pombas. Palabras clave: Orixás, Salvador, diario, fotografía, antropología, diáspora africana. Orixás: everyday turns Abtract “HOLY SALVADOR, THE CITY OF OXUM: IJEXÁ DANCE”. This photographic essay was conducted in Salvador, Bahia, in 2017. These photographs were taken during an ethnographic field-research with the Terreiro people regarding their língua-de-santo, which is an Afro-Brazilian language. The images deal with the re-existence and the reinventing of the TERREIRO CITY. If overthere, as they sing “city, everyone is from Oxum”, here is asking for a blessing to the people/deity, who made death the enchantment and the terreirização of Brazil. “WE SAW IN SALVADOR IMPROBABLE ORIXÁS” in the daily tasks, Exu is in Liberty; Ogum is in Ogunjá; Oxossi is in the Forest Mouth; Ossain is in the Dark Forest; Omolu and Obaluaiyê are in Health; Naná is in the Great Lagoon; Oxumarê is in Mussurunga; Oxum is in Clear Waters; Iansã is in Pitangueiras; Iemanjá is in Red River Beach; Ibeji is in the Water of Boys; Xangô and Aiyrá are in Barros Reis and Oxalá is in Alto das Pombas. Keywords: Orixás, Salvador, daily life, photography, anthropology, African diaspora. Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra: cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde o Engenho Velho da Federação, Salvador – BA Luis Guilherme Cruz Pires EtniCidades / PPGAU-UFBA Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra: cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde o Engenho Velho da Federação, Salvador – BA Resumo A elaboração do presente ensaio buscou confeccionar e costurar narrativas - textuais e visuais - acerca das metodologias de apreensão e leitura do Engenho Velho da Federação, sujeito-objeto da investigação proposta. É possível compreender o bairro do Engenho Velho da Federação e a cidade de Salvador como territórios negros oriundos e formados a partir do processoexperiência da diáspora africana. Se, por um lado, Salvador é considerada a “cidade mais negra fora da África”, por outro lado, o Engenho Velho da Federação é considerado um dos bairros negros da cidade, especialmente pela presença e forte expressão de culturas e práticas afrodescendentes a exemplo dos terreiros de candomblé. Nesse sentido, o trabalho recorre às cosmopercepções e epistemologias que emergem das diversas tradições de matriz africana encontradas nos espaços dos terreiros, apropriando-se das linguagens próprias desses territórios para confeccionar a costura das narrativas. Assim, lança mão de uma tríade “afro epistemológica” [Terreiro – Caminho - Encruzilhada] como dispositivo conceitual e analítico, para desvelar os espaços-tempos transportados, ressignificados e reinventados na construção desses territórios afrodiaspóricos encontrados na cidade negra. Palavras-chave: diáspora africana; cosmopercepções; epistemologias negras; Engenho Velho da Federação; Salvador-Bahia. Sentir, vivir y hacer la ciudad negra: cosmopercepciones y epistemologías negras sobre y desde Engenho Velho da Federação, Salvador - Bahia Resumen La elaboración de este ensayo buscó crear y coser narrativas – textuales y visuales – sobre las metodologías de aprehensión y lectura de Engenho Velho da Federação, sujeto-objeto de la investigación propuesta. Es posible entender el barrio de Engenho Velho da Federação y la ciudad de Salvador como territorios negros originados y formados a partir del proceso-experiencia de la diáspora africana. Si, por un lado, Salvador es considerada la “ciudad más negra fuera de Africa”, por otro lado, Engenho Velho da Federação es considerado uno de los barrios negros de la ciudad, especialmente por la presencia y fuerte expresión de las culturas y prácticas afrodescendientes, por ejemplo los terreiros de candomblé. Em este sentido, la obra utiliza cosmopercepciones y epistemologías que surgen de las diversas tradiciones de origen africana que se encuentran en los espacios de los terreiros, apropiándose de los linguajes de estos territórios para hacer coser las narrativas. Y hace uso de una tríada “afro epistemológica” [Terreiro – Camino - Encrucijada] como dispositivo conceptual y analítico, para develar espacios-tempos transportados, resignificados y reinventados en la construcción de estos territórios afrodiaspóricos encontrados en la ciudad negra. Palavras clave: diáspora africana; cosmopercepciones; epistemologías negra; Engenho Velho da Federação; Salvador - Bahia. Feel, live and make the black city: world-senses and black epistemologies about and since Engenho Velho da Federação, Salvador - Bahia Abstract The elaboration of this essay sought to create and sew narratives – textual and visual – about the apprehension and reading methodologies of Engenho Velho da Federação, subject-object of proposed investigation. It is possible to understand the neighborhood Engenho Velho da Federação and the city of Salvador as black territories originating and formed from the experience- process of the African diaspora. If, on the one hand, Salvador is considered the “blackest city outside Africa”, on the other hand, Engenho Velho da Federação is considered one of the black neighborhoods of the city, especially due to the presence and strong expression of Afrodescendant cultures and practices, for example terreiros de candomblé. In this sense, the work uses the world-senses and epistemologies that emerge from the diverse traditions of African origin found in the spaces of terreiros, appropriating the languages of these territories to make the narratives stitch. And, it makes use of an “afro epistemological” triad [Terreiro – Path - Crossroads] as a conceptual and analytical device, to unveil transported, resignified and reinvented spaces-times in the construction of these afro-diasporic territories found in the black city. Key-words: African diaspora; world-senses; black epistemologies; Engenho Velho da Federação; Sakvador - Bahia. Figura 1 – Abre caminhos Colagem elaborada pelo Autor (2021). Imagem de Exu: Carybé (1980). Trechos de músicas: Dinucci (2008); Germano (2008); Marçal (2016). Figura 2 – Enunciações do bairro negro Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapas: elaborados pelo Autor com base no Google Maps (s/data). Imagens do bairro: Google Street View (s/data) - editado pelo Autor; Acervo do Autor (2017). Figura 3 – Tríade afroepistemológica Colagem elaborada pelo Autor (2021). Figura 4 – Terreiro do Bogum na encruzilhada da Diáspora Colagem elaborada pelo Autor (2021). Imagens do Bogum: Herskovits (1941-42); Trecho de música: Martins (2016). Figura 5 – Encontro das nações do Candomblé no Engenho Velho da Federação Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapa: elaborado pelo Autor com base em CEAO/UFBA (2008) e Ramos (2013); Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens dos Terreiros: Acervo do Autor (2017); Burley (2017); CEAO/UFBA (2008); Google Street View (s/data); Toluaye (2008). Imagens das Sacerdotisas: Alvarez (2018); Cardoso (s/data). Figura 6 – Toponímia dos caminhos do Engenho Velho da Federação Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapa: elaborado pelo Autor com base em Ramos (2013) e no Google Maps (s/data); Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens antigas: Acervo pessoal de Makota Valdina (s/data); Cordeiro (1989); Fundação Gregório de Matos (1977); Popó (1934); Verger (s/ data). Imagens dos Terreiros: Google Street View (s/data); Herskovits (1942). Imagem de Seu Orlando: Rosa (2011). Figura 7: Encruzilhadas do Engenho Velho da Federação Colagem elaborada pelo Autor (2021). Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens das ruas: Google Street View (s/data); Acervo do Autor (2019). Imagens da Romaria de São Lázaro: Acervo da Família Santos (1990, 1992); Saravá (2017). Imagens da Caminhada: Acervo do Autor (2017); Caminhada (2019). Imagens aéreas do bairro: Google Maps (s/data). Introdução presente ensaio emerge de investigações e inquietações que atravessam o processo de construção do meu Trabalho Final de Gradua1 ção(TFG), que consiste em um trabalho de cunho empírico-conceitual e propositivo para o bairro do Engenho Velho da Federação, situado na cidade de Salvador, Bahia. O Gostaria de destacar que os primeiros passos partem do encontro com a obra “Espaço urbano e afrodescendência: estudo da espacialidade negra urbana para o debate das políticas públicas” (CUNHA JÚNIOR; RAMOS, 2007), colocando-se como disparo para instaurar e problematizar a questão étnico-racial no campo da arquitetura e do urbanismo, até então muito incipiente. No ensaio “Afrodescendência e Espaço Urbano”, o professor Henrique Cunha Jr. (2007) desenvolve uma reflexão acerca dessa relação para pensar políticas públicas para espaços urbanos de maioria afrodescendente ao explorar os conceitos de afrodescendência e territórios de maioria afrodescendente. Segundo o autor, é o espaço urbano que unifica a população afrodescendente, já que essa população possui uma história em comum, que vem de África e continua a ser (re)construída nos territórios afrodiaspóricos das cidades brasileiras, como é o caso de Salvador. v.2 n.1 p. 298-329 2023 ISSN: 2965-4904 Os próximos passos caminharam ao encontro do trabalho da arquiteta, professora e pesquisadora Maria Estela Ramos (2013) a partir da sua tese de doutorado, na qual a autora desenvolveu um estudo empírico e conceitual no bairro do Engenho Velho da Federação, localizado em Salvador – Bahia, ao caracterizá-lo como um bairro negro, apontando para uma lacuna nos estudos urbanísticos acerca desses territórios urbanos. Para a escolha do lugar de afet-ação do TFG, o bairro do Engenho Velho 2 da Federação, desde então, torna-se também o sujeito-objeto das investigações e investidas do autor. Ao entender o trabalho como obra e construção coletiva, não poderia deixar de registrar as contribuições e provocações advindas das professoras e dos professores 3 orientadores e membros da banca avaliadora, que, de certo modo, já vinham abrindo e indicando caminhos possíveis desde antes da elaboração do próprio TFG. Não menos importante, registro os ensinamentos e orientações de moradores e lideranças do bairro que assumem, também, o lugar de sujeitos das histórias e narrativas aqui contadas, moderadores dos meus (des)caminhos pelo bairro, em especial os mais 4 velhos da comunidade, com os quais tornei-me um aprendiz, os mestres griôs e guardiões da ancestralidade afro-brasileira: Makota Valdina (in memoriam) e Everaldo Duarte, a quem dedico o trabalho. Em consonância com o tema proposto para o dossiê, o presente ensaio é parte de um processo de (re)visitação do próprio TFG a fim de evidenciar os laços transatlânticos entre Brasil e África, tendo o Engenho Velho da Federação como caso típico do que seria um território formado a partir da diáspora africana ou, ainda, um bairro negro em Salvador, uma cidade (afro)brasileira e eminentemente negra. Em síntese, o bairro é um lugar de confluência de muitas Áfricas. Territórios da diáspora africana: contextualizando o bairro negro na cidade negra Estamos a falar de territórios negros que se conformaram a partir da diáspora de povos africanos que vieram para as Américas e para o Brasil no contexto de escravização e domínio branco-europeu. São povos oriundos de várias partes do continente africano e que simbolizam as (muitas) Áfricas, ou porções dela, que estruturaram a formação das cidades brasileiras, em especial Salvador por ter recebido um dos maiores contingentes dessa população afrodiaspórica. Povos e culturas de tradição nagô-yorubá, ewe-fon, bantu, dentre tantos outros, que, desgarrados e apartados de sua terra mãe-África, recriaram e ressignificaram seus mundos em solo brasileiro, inventando outros modos de (r)existências que sedimentaram e sustentaram as instituições e agregações negras fundadas no país, como as irmandades religiosas p. 311 afro-católicas, os terreiros de candomblé, os blocos afro e afoxés, escolas de samba, dentre outros grupos. 5 Salvador, também conhecida como a “Roma Negra”, é considerada por muitos 6 pesquisadores e estudiosos a “cidade mais negra fora da África”, não só pelo grande contingente de povos africanos que recebeu, mas, sobretudo, pela expressão das culturas e modos de vida desses povos que estão impregnados nos espaços da cidade e estruturam os mesmos. Dessa forma, a população negra soteropolitana habita os territórios conhecidos como bairros negros, situados, em sua maioria, em regiões 7 periféricas da cidade como o Subúrbio Ferroviário e o Miolo . O Engenho Velho da Federação é um bairro que está situado próximo à Orla Atlân8 tica e ao Centro Tradicional de Salvador, com alta concentração de população negra 9 cuja presença no território é datada desde o século XVIII, momento histórico da 10 implantação dos primeiros terreiros de candomblé no bairro. Para além dos dados censitários oficiais, Ramos (2013) toma as culturas negras como referência conceitual para identificar o bairro negro e compreender as relações socioespaciais no Engenho Velho da Federação. Os moradores mais antigos reconhecem a presença dos terreiros como uma importante referência para o bairro, o qual pode ser entendido como extensão dos espaços dos terreiros, um território de confluência da população negra na cidade de Salvador, constituindo-se como um caso exemplar do que Muniz Sodré chamou de “forma social negro-brasileira” (RAMOS, 2013; SODRÉ, 1988). Metodologias de apreensão e leitura do bairro negro p. 312 O trabalho propõe uma leitura e apreensão do território em diálogo com as cosmopercepções e epistemologias oriundas dos terreiros de candomblé, tendo como 11 suporte o corpo-Bara e seus movimentos por entre os caminhos, as encruzilhadas e os terreiros do Engenho Velho da Federação. Essa escolha metodológica está anco12 rada no método etnográfico (URIARTE, 2012) e no trabalho de campo que buscou realizar a apreensão do bairro negro a partir de vivências e experiências que foram acumulando-se ao longo da pesquisa e possibilitaram as movimentações do corpo-pesquisador atreladas às dinâmicas locais (com momentos de aberturas, avanços, paradas e limites), que emergiram do próprio território e também foram colocados pelos interlocutores da pesquisa e moradores do bairro. 13 A noção de cosmopercepção está presente em “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero”, livro escrito pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021), e foi apropriada pelo professor e filósofo Renato Noguera para tratar a epistemologia como um “paladar de mundo” em contraposição à “visão de mundo” das culturas ocidentais, tendo Exu como princípio cosmológico, ético e epistemológico; “aquele que come primeiro”, segundo a cosmologia yorubá e dos povos de terreiro (NOGUEIRA, 2020). Entende-se como epistemologias de terreiro a produção de conhecimento com base nos saberes e fazeres das comunidades religiosas de matriz africana, tendo como princípios e valores ético-estéticos a ancestralidade africana e afro-brasileira e a tradição oral. A tríade afro epistemológica [Terreiro – Caminho - Encruzilhada] O trabalho propõe uma epistemologia negra do sentir, viver e fazer (n)a cidade e (n)o bairro negro que emerge da cosmologia e das práticas rituais e cotidianas do Candomblé, aqui entendido não apenas como religião, mas também como estrutura social e política que propicia outros modos de viver, fazer e pensar os territórios da diáspora africana. Podemos também falar de uma “afroepistemologia” que está assentada na tríade que opera através das palavras: Terreiro, Caminho e Encruzilhada, 14 que, conectadas, possibilitam a “Energia em Movimento” – o fluxo contínuo do Axé e o desvelamento da cidade negra. ademais, são: “palavras, que vão além do conceito, porque no universo negro dos candomblés a palavra tem poder de realização, porque 15 estão vinculadas ao axé”. A tríade como dispositivo conceitual está presente na cosmologia dos candomblés de tradição nagô, nos quais “é possível encontrar a confirmação do valor fundamental da tríade em muitos discursos míticos e rituais recorrentes no mundo do candomblé” (SERRA, 2002, p. 87). O número três constitui no candomblé “tudo aquilo que é dinâ16 mico, o que possibilita o movimento e o acontecimento”, sendo também associado a Exu como elemento que “abre a possibilidade do infinito diverso e aquele que possibilita a linguagem” (SODRÉ, 2017, p. 178). Portanto, a tríade, assim como o número três, está no campo (simbólico e material) dos domínios de Exu, mais especificamente 17 de Oritá Métà ou Igbá Keta, “aquele que é o 3 por excelência”, “energia propulsora p. 313 do dinamismo e das interações”, “quem cria a partir das desconstruções e desordens” (RUFINO, 2016, p. 4). Conforme narrativa mítica contada nos terreiros: [...] conta-se que em tempos imemoráveis Exu recebeu a opção de escolher entre duas cabaças. A primeira continha o pó mágico referente aos elementos que positivavam a vida no universo, enquanto na segunda estava outro pó, referente aos elementos que negativavam a vida no universo. Frente ao dilema entre as duas opções, Exu acabou surpreendendo a todos quando optou por uma terceira cabaça, esta vazia, sem absolutamente nada dentro. Assim foi feito: trouxeram a terceira cabaça e a entregaram a Exu. Tendo a terceira cabaça em seu domínio, Exu retirou o que havia na primeira ฀ o pó mágico referente aos elementos positivadores ฀ e despejou na cabaça vazia. Logo em seguida, repetiu o procedimento com a segunda cabaça, retirando dela os elementos negativadores, e os despejou na terceira. Exu, então, chacoalhou a terceira cabaça, misturando os dois elementos, e em seguida os soprou no universo. A mistura rapidamente se espalhou por todos os cantos, sendo impossível se dizer o que era parte de um pó ou do outro, mas, agora, um único, um terceiro elemento (RUFINO, 2016, p. 4). Portanto, é nessa tríade exuística, ou nessa encruzilhada de três caminhos (Oritá Métà), que o corpo-Bara do pesquisador está inserido e movimenta-se em direção ao encontro dos caminhos, das encruzilhadas e dos terreiros do Engenho Velho da Fede18 ração. O corpo afrodiaspórico que gira e parte de Pambu a nzila (encruzilhada) no sentido de “ir para frente, ir para trás, ir para direita, ir para esquerda, ir para cima, ir para baixo, e, sobretudo, ir para dentro de si mesmo a fim de fazer a escolha correta de que caminho tomar” (PINTO, 2015, p. 165). [1] Terreiro p. 314 Proponho aqui uma leitura do Terreiro como território conquistado e (re)criado pelos povos africanos em diáspora que assentaram-se em solo brasileiro – especialmente os que vieram para Salvador, na Bahia –, fruto de lutas incessantes e de resistência ao poder colonial e às suas formas de dominação e doutrinação político-ideológica. É também um espaço sagrado de culto à ancestralidade negro-africana, construído com base na contribuição dos povos e etnias africanas que estruturaram as bases do Candomblé e demais cultos afro-brasileiros. Nesse sentido, a concepção de Terreiro na encruzilhada da diáspora negra aponta para caminhos múltiplos (próprios da natureza de Exu): instituição religiosa afro-brasileira; espaço sagrado de culto à ancestralidade negro-africana; lugar de resistência e acolhimento – reconstituição de laços familiares perdidos ao longo das travessias transatlânticas; dentre tantos outros. Luiz Rufino propõe uma noção de terreiro, com base na sua “Pedagogia das Encruzilhadas”, que não se limita apenas à dimensão física do espaço de culto, pois “abrange todo campo inventivo, seja ele material ou não, emergente das criatividades, das necessidades e dos encantamentos dos tempos/espaços” (RUFINO, 2018, p. 83). A perspectiva lançada pelo autor pretende pluralizar o termo “terreiro” para além da compreensão físico-territorial e alcançar os campos simbólico e político, pois “as invenções de terreiros nos possibilitam mirar o alargamento das interpretações e conhecimentos acerca do mundo” (RUFINO, 2018, p. 83). Muniz Sodré (1988), em sua célebre obra “O terreiro e a cidade”, apresenta uma ideia cosmológica de Terreiro, pois compreende o terreiro como um entre-lugar, “uma zona de intersecção entre o invisível (orum) e o visível (aiê), habitado por princípios cósmicos (orixás)” (SODRÉ, 1988, p. 75). Em outras palavras, entende o terreiro como um espaço de comunicação, elo entre os corpos que habitam o mundo visível (pessoas, animais e natureza) e o mundo invisível (das entidades e espíritos ancestrais). Além disso, a existência do Terreiro só pode ser assegurada se houver o Axé, porque é essa força que “assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir [...] É o princípio que torna possível o processo vital” (SODRÉ, 1988, p. 87). A presença dos terreiros de candomblé no bairro do Engenho Velho da Federação pode ser considerada a maior expressão da cultura negra local, pois remete a uma história de luta e resistência de negros africanos escravizados que habitavam as terras que hoje correspondem ao território do bairro e obtiveram êxito ao implantar o terreiro como espaço de culto e manutenção de saberes e práticas ancestrais, tendo o corpo, a memória e a oralidade como suportes do que convencionou-se chamar de Candomblé, a maior expressão afro-religiosa baiana. Por meio de uma narrativa mítica ou estória – como prefere chamar –, Everaldo Duarte descreve com muitos detalhes o começo da comunidade do Bogum: Já amanhecia o dia 1º de janeiro, quando os dois chegaram ao lugar. Era uma pequena clareira entre várias gameleiras e três cajazeiras, cujas raízes se destacavam acima do solo e se enroscavam umas nas ou- p. 315 tras, deixando espaços redondos vazios próprios para oferendas [...] Os dois caminharam cerca de uns 20 metros e ela então desatou o Ojá, retirou os Otás de Bogum e Dan, escondidos entre os seios, e os entregou a ele [...] O homem então ergueu os dois Otás acima da cabeça e cantou duas canções, invocando um e outro Vodum [...] Ficaram ali, ambos imóveis, enquanto, por entre as folhas das cajazeiras, uma serpente escura, com uma crista vermelha entre os olhos, observava. Três arco-íris desciam em cima dos Otás. Três deles se misturavam como que demonstrando a validade da missão que fora delegada ao casal. Era a presença de Mawu-Lissá e Ayduwedo. Estava plantado o Axé do Bogum (DUARTE, 2018, p. 16). Complementando a narrativa, ainda segundo Duarte (2018), na noite de 31 de dezembro de 1719, um casal de negros fugiram do Engenho que situava-se na área que hoje é conhecida como Pedra da Marca (localidade vizinha e adjacente ao bairro) 19 com a missão de plantar o Axé dos Voduns trazidos da região do Mahi, na África. Diante das condições adversas, eles precisavam encontrar um lugar seguro onde pudessem plantar esse Axé, sendo o lugar escolhido correspondente hoje ao território do Zoogodô Bogum Malê Rundó, mais conhecido como Terreiro do Bogum, e áreas adjacentes, como a localidade do Alto do Bogum. Naquela época, essa era uma região tomada por muitas árvores e mata, como fica evidente na estória contada por Duarte. Esse acontecimento pode ser considerado um marco – histórico, político e simbólico, pois o espaço foi sacralizado, possibilitando uma abertura para a vinda de outros negros escravizados que moravam nas senzalas do engenho citado, que, aos poucos, estabeleceram-se no território com a missão de alimentar o Axé que havia sido plantado ali, p. 316 [...] informados de tudo, sabiam o que o Axé fora plantado e que podiam organizar novas fugas, sabendo para onde. Assim, várias outras “visitas” foram feitas ao local sacralizado [...] Em cada visita, o Axé era revitalizado e durava o tempo que os Voduns permitiam [...] Numa dessas visitas, destacou-se outra também importante [...] Um forte guerreiro, herdeiro dos segredos de Kevioso, também portava missão semelhante. E foi mais ou menos do mesmo modo que a fuga do guerreiro se completou ao achar o mesmo local dos assentamentos de Bogum e Dan ao lado do assentamento de Inhangui e Lissá. Junto a eles, o guerreiro colocou os Axés dos Kavionos (DUARTE, 2018, p. 18). Pouco tempo depois, o espaço do terreiro passou a abrigar outros negros militantes políticos que eram perseguidos pelas autoridades, evidenciando também o caráter político da comunidade-terreiro, que contou com a participação de vários dos seus frequentadores durante a famosa Revolta dos Malês, em 1835 (DUARTE, 2018), cuja a 20 expressão “‘malê” foi incorporada ao nome da própria comunidade-terreiro “Zoogodô Bogum Malê”. Por esse motivo, o termo “bogum” também costuma ser associado ao levante dos malês, conforme depoimento de Orlando Barbosa, morador e presidente da Associação de Moradores: Aqui era conhecido pelo esconderijo do tesouro dos malês, da Revolta dos Malês. Onde eles guardavam suas economias. O que era o Bogum? Bogum eram aquelas malas de dinheiro que os malês guardavam, enterravam aí. Daí ficou conhecido como Largo do Bogum, no fim de linha do Engenho Velho da Federação (Orlando Barbosa apud RAMOS, 2013, p. 119). De acordo com Maria Estela Ramos (2013), os terreiros constituem uma importante referência para o bairro negro, tanto para os adeptos do culto como para os demais moradores, que mesmo não sendo praticantes da religião possuem o que a autora 21 conceituou como afro-consciência espacial. Em sua tese de doutorado, ela propõe uma apreensão do bairro negro (afro)centrada nos terreiros, onde o Engenho Velho da Federação seria uma “extensão dos terreiros”, um território de confluência da população negra na cidade de Salvador. Usando outros termos da autora, os terreiros seriam os “nucleadores urbanos do bairro”, isto é, “agenciadores de espacialidades urbanas”. Ao longo da pesquisa foi elaborado um mapeamento dos terreiros em atividade nas várias localidades que constituem o Engenho Velho da Federação. Essa pesquisa teve como suporte outros mapeamentos realizados anteriormente, como o projeto 22 “Mapeamento dos terreiros de Salvador” (2008) e o mapeamento realizado por Ramos (2013) em sua tese, além das informações obtidas através do trabalho de campo que desvelou espaços-terreiros que não haviam sido identificados nos mapeamentos citados. Após análises, os mapeamentos citados foram sobrepostos e somados à experiência de campo, no qual foi elaborado um novo mapeamento que identificou 23 terreiros, localizados e circunscritos dentro dos limites territoriais do 23 bairro, pertencentes a matrizes africanas e afro-brasileiras diversas – ou nações, 24 como as comunidades-terreiros convém chamar . p. 317 No bairro em questão, é possível encontrar terreiros das quatro principais nações 25 ou tradições do candomblé da Bahia: Ketu, Angola, Jeje e Ijexá, sendo que há uma predominância das nações Ketu (14) e Angola (6). Ainda, há moradores que afirmam que há um número maior de terreiros em relação ao que foi indicado pelas pesquisas e mapeamentos citados, contudo o presente trabalhou só conseguiu identificar um número total de 23 terreiros. [2] Caminho O caminho-percurso-trajeto que parte da encruzilhada e nos leva aos terreiros retorna ao princípio de sua imanência: Exu/Nzila/Legba. Nesse sentido, destaco e reverencio duas das muitas facetas e qualidades do orixá Exu: Exu Lonan ou Onan, o senhor de todos os caminhos; e Exu Elegbara, o senhor do poder mágico, da transformação e das possibilidades. Partindo da cosmologia dos terreiros, falar de caminho é evocar a presença e os domínios das energias/forças que o constitui. Rufino (2018) nos traz a figura de Exu como possibilidade, do andarilho que perambula pelo mundo, reinventando-o a partir de 26 travessuras. Pinto (2015) nos revela a força de Unjira ou Nzila, o inquice dos caminhos, cujo vocábulo “nzila” da língua Kikongo possui múltiplos sentidos, podendo significar: caminho, vereda, atalho, passagem, rota; expediente; meio ou maneira de chegar a, de conseguir; caminho, direção para. Em suma, Exu/Nzila/Legba são e constituem o próprio caminho, pois atuam sobre o mesmo, acompanham, direcionam e protegem os corpos-sujeitos andarilhos que caminham e experimentam as ruas da cidade. Existe o caminho que se mostra à priori através da escala mais reduzida e distanciada dos mapas e das imagens aéreas no qual é possível projetar e planejar percursos e trajetos ideais, assim como existe o caminho que está condicionado à presença do corpo no território, que se desvela e se constrói junto ao movimento desses corpos-sujeitos andarilhos que investigam, esmiúçam e são afetados e contaminados pela energia propulsora da vida das e nas ruas. Ao longo da pesquisa meu corpo se movimentou nessas duas direções a fim de compreender como os caminhos e o cotidiano do bairro estavam impregnados das culturas afrodescendentes. p. 318 Caminhar pelo bairro foi se revelando uma ferramenta potente de apreensão da cultura negra local e da escala do cotidiano, onde o ato pedestre de andar poderia ser comparado ao ato da fala, ou nas palavras do próprio Certeau (1998): caminhar na cidade é um “ato de enunciação”. Os caminhos vivenciados pelo corpo negro enunciam a cultura negra local, marcada, principalmente, pela religiosidade, que se mostra híbrida e justaposta por conter tanto elementos das africanidades encontradas no Candomblé quanto o apelo popular a determinados santos católicos também cultuados pela comunidade negra. Seguimos falando dos nomes dos lugares e caminhos do bairro, através da sua toponímia, termo que se refere ao estudo histórico das origens dos nomes dos lugares. Segundo Ramos (2013), a análise da toponímia nos ajuda a compreender a relação dos moradores com muitos dos caminhos, assim como a formação histórica das localidades que constituem o bairro. Por exemplo, o caminho denominado “Avenida Parente” foi construído e transformado em arruamento pelos parentes e familiares de Seu Orlando: “Eu moro na Avenida Parente. Quem fez a Avenida Parente? Meus parentes! E outras pessoas lá, que cavaram com picareta, com enxada, pã pã, e abriram a rua. Derrubou mangueira, derrubou jaqueira, tirou... E fez a rua!” (Orlando Barbosa apud RAMOS, 2013, p. 252). Há também ruas que carregam o nome de pessoas e lideranças importantes dos terreiros do bairro: Rua Elizabete, nome da fundadora do terreiro Tanuri Junsara; Rua São Romão, nome em referência ao Seu Romão, ogã do Terreiro do Bogum; Vila Flaviana, em referência ao nome da fundadora do Terreiro do Cobre. A noção de caminho que aparece e está assentada no bairro do Engenho Velho da Federação é compreendida como possibilidade de (auto)construção gerida pelos próprios moradores que se encarregaram de criar uma rede de caminhos que hoje serve de circulação interna e acesso às residências, mas que também possibilitava acessar e apropriar-se de lugares que hoje povoam o imaginário da comunidade, como fontes d’água, áreas de mata, quintais, terreiros, dentre outros espaços que propiciavam as relações socioculturais de vizinhança. Os caminhos do bairro foram desbravados e delineados pela população local: “criadas pelos próprios moradores, as trilhas e caminhos de terra batida foram abertos em mata fechada; com o adensamento das construções, as trilhas ficaram mais estreitas, constituindo becos e vielas” (RAMOS, 2013, p. 134). Do ponto de vista da morfologia urbana, atualmente o bairro é formado por uma rede de caminhos (ruas, becos, vielas, escadarias etc.) que se integra ao sistema viário da cidade, possibilitando conexões com outros bairros e localidades adjacentes, através das principais vias do tráfego local (ruas Apolinário Santana, Manoel Bonfim-Ladeira do Bogum e Palmeiras), direcionadas tanto para veículos como para pedestres. Ao adentrar essa rede de caminhos, sobretudo por meio da entrada físico-corpórea no p. 319 território, é possível identificar uma variedade de formas e tipos de caminhos que ajustam-se às necessidades coletivas e à topografia local, por exemplo, como caminhos que conectam as áreas de cumeadas, onde estão as principais vias de circulação, às áreas de baixadas, onde estão situadas importantes localidades como a Fonte do Forno, Baixa da Égua, através de escadarias e ladeiras, que, por sua vez, recebem outros nomes: rua, travessa, avenida, etc. Para fechar a compreensão do caminho, no que tange à morfologia urbana e à afroconsciência espacial dos moradores, trago o conceito de “caminhalidade”, elaborado por Ramos (2013) na sua compreensão da forma urbana negra do bairro. De acordo com a autora, boa parte dos caminhos foi delineada de forma concomitante aos assentamentos familiares e servia de referência como divisa para demarcação dos terrenos. Além de compor a rede de caminhos por onde circula o fluxo de pessoas e objetos, esta caminhalidade é também um espaço onde se cultivam as relações de conviviabilidade, por meio dos encontros, das referências familiares e redes de vizinhança: [...] parte da origem desta rede de caminhos foi criada através destas relações sociais, e não através de um desenho planejado, do ‘concebido’, mas resultado do ‘vivido’, do apreço conquistado entre os vizinhos, numa demonstração da conviviabilidade (RAMOS, 2013, p. 249). A noção de caminho aqui proposta se dá através da prática e da vivência in-corporada na e da rua com todos os elementos (pessoas, edificações, seres vegetais e animais, energias, objetos) que constituem a (i)materialidade urbana do lugar. Em outras palavras, é caminhando, desbravando, construindo, compartilhando, investigando, esmiuçando, se fazendo de corpo presente na vida urbana que se faz o caminho! [3] Encruzilhada p. 320 A travessia em que consiste este ensaio partiu e retorna à encruzilhada, por entender os movimentos de partida e chegada que a constituem. A encruzilhada é um lugar de tomada de decisão, onde o corpo-sujeito se coloca de pé para avaliar a miríade de caminhos que se revelam como possibilidade de (re)criação e (re)constituição de mundos no continuum da diáspora africana. As encruzilhadas são, portanto, “campos de possibilidades, tempo/espaço de potência, onde todas as opções se atravessam, dialogam, se entroncam e se contaminam” (RUFINO, 2018, p. 75). O campo de forças que age sob e desde a encruzilhada nos traz, continuamente, a presença de Exu que faz dela sua morada nos espaços urbanos da cidade negra, especialmente em Salvador, onde as encruzilhadas são lugares notadamente reconhecidos pelo Povo de Santo, pois o saber-fazer do terreiro nos ensina que: não se passa por uma encruza sem pedir licença e reverenciar Exu/Nzila/Legba. É nas encruzilhadas onde são depositadas oferendas para Exu ou, ainda na linguagem do Povo de Axé, onde são despachados e arriados os ebós, com o intuito de atender às práticas rituais e litúrgicas das comunidades-terreiros ou solicitações pessoais de seus adeptos e praticantes. Nesse sentido, Exu nos apresenta mais uma de suas facetas: 27 seus domínios de Enugbarijó, o Senhor da boca coletiva ou, na linguagem própria dos terreiros, “a boca que tudo come”. Ainda nessa abordagem da encruzilhada como morada do sagrado afro-brasileiro, gostaria de interagir com outras duas veredas de Exu: Oritá Métà e Òkòtó. Oritá Métà é um título que lhe confere o domínio sobre as encruzilhadas, especificamente quando há o encontro de três caminhos ou ruas conformando um desenho-forma 28 tipo “Y”, encontrando sentido também na interpretação de Exu como sendo o “+1”. 29 Já a representação de Òkòtó aparece através da figura do caracol que remete ao movimento espiralar de Exu, rumo ao “infinito diverso” de possibilidades ( SODRÉ, 2017, p. 178). Essa noção de movimento espiralar é também apresentada por Jocevaldo Santiago (2020) na conferência “Exu como epistemologia”, na qual lança mão de um 30 diagrama denominado “Exugráfico” para grafar a ideia de tempo espiralar, que o autor reconhece como elemento importante para pensar os movimentos ou “movências” (expressão utilizada por Santiago) de Exu. Se partirmos de uma perspectiva que considera a morfologia urbana da cidade, a encruzilhada poderia ser incluída no hall dos elementos estruturantes que constituem esse campo de estudo, sobretudo nas abordagens que evidenciam a produção dos espaços na cidade negra, a exemplo desse ensaio. Há que se levar em consideração que alguns elementos espaciais, considerados estruturantes do desenho urbano (a exemplo das quadras, da concepção do lote com recuos, ou ainda de praças e outros espaços livres projetados) não fazem parte nem do planejamento urbano estatal e governamental (praticamente inexistente nos bairros negros), nem do desenho/forma e da produção (autônoma e coletiva) dos espaços urbanos que constituem o bairro negro. Desse modo, a encruzilhada poderia ser definida através dos caminhos que se encontram, (inter)cruzam e também se bifurcam em outras direções. Dentro dessa dimensão morfológica, poderíamos falar também de tipos ou tipologias que pudessem p. 321 classificar e diferenciar as encruzilhadas entre si. Tomando como base o discurso das comunidades-terreiro, a encruzilhada pode ser caracterizada em função da quantidade de “pernas” ou caminhos que a constituem, a exemplo de uma encruzilhada de 3 ou 7 pernas, que possuiria força simbólica e ritual destacada, já que os números 3 e 7 estão intimamente ligados aos domínios de Exu. Ou ainda, se pensarmos nos tipos de desenho/forma que elas grafam no espaço urbano. Assim, poderíamos ter encruzilhadas tipo “T” (encontro/cruzamento de 2 caminhos) ou tipo “Y” (encontro/ bifurcação de 3 caminhos). Para o contexto do bairro do Engenho Velho da Federação, foram mapeadas diversas encruzilhadas que se conformam através do cruzamento dos muitos caminhos (ruas, becos, vielas, passagens etc.) e, por ora, se sobrepõem aos espaços públicos livres existentes como pequenos largos e praças. Entretanto, foram destacadas quatro encruzilhadas pela importância que possuem, seja pela dimensão morfológica, simbólica e/ou histórica: duas encruzas de “entrada/saída” que dão acesso ao bairro a partir de avenidas adjacentes e duas encruzas mais locais que constituem as centralidades mais antigas do bairro. Gostaria de debruçar um pouco mais de atenção sobre as encruzilhadas do Largo do Engenho Velho e do Largo do Bogum. A primeira dessas encruzas faz referência ao nome do espaço público do Largo do Engenho Velho, também chamado de Primeiro Largo, em referência à Avenida Cardeal da Silva, que dá acesso ao bairro e ao trajeto percorrido pelos ônibus que integram a rede metropolitana de transporte público e conectam o bairro a outras regiões da cidade. De acordo com Ramos (2013), é a segunda centralidade mais antiga do bairro e no espaço urbano do referido largo concentram-se usos e práticas diversas, em especial aquelas ligadas ao comércio e serviços como quitandas, mercadinhos, barzinhos, farmácias, barbearias, dentre outros, sendo atividades que tornam a área movimentada durante o dia, à noite e também nos fins de semana. p. 322 A outra encruza refere-se ao espaço do Largo do Bogum/Alto do Bogum, que, por sua vez, está associado ao Terreiro do Bogum e é considerada a centralidade mais antiga do bairro (RAMOS, 2013), possuindo alguns acessos a partir de caminhos/ ladeiras que ligam a Avenida Vasco da Gama ao espaço citado. Essa encruzilhada 31 ainda comporta a Praça Mãe Runhó, que se caracteriza mais como um canteiro ou área residual do sistema viário, onde encontram-se erigidos o busto de Mãe Runhó, que dá nome ao espaço, e a imagem de São Lázaro,que está relacionada à romaria e devoção da comunidade ao santo católico. Para além dessas camadas, podemos adicionar mais uma, já que o espaço é também o “Fim de Linha” dos ônibus que circulam sob a Rua Apolinário Santana, umas das principais vias locais. Todas essas camadas estão sobrepostas e sedimentadas nessa encruzilhada, notadamente a mais importante do bairro, onde estão concentradas muitas forças, em especial aquelas vinculadas à dimensão religiosa. 32 Em torno do canteiro onde está situado o busto de Mãe Runhó, reúnem-se os adeptos das comunidades-terreiros do bairro e da cidade em prol da “Caminhada pelo Fim da Violência, da Intolerância Religiosa e pela Paz”, que acontece desde 2004 e percorre as ruas do bairro e do entorno no intuito de denunciar as violências físicas e simbólicas engendradas pelo racismo religioso – oriundo, em sua maioria, de grupos neopentecostais –, que incide sobre as práticas religiosas de matriz africana. É na encruzilhada e largo do Bogum que se tem início a Caminhada, onde Exu/Nzila/Legba são reverenciados com pedidos de licença, materializados através de um despacho/ ebó com a finalidade de abrir e proteger os caminhos do corpo coletivo que vai percorrer as ruas do bairro. Essa encruza é também o ponto de chegada da Caminhada, onde os participantes se reúnem em volta do Busto de Mãe Runhó, através de ato simbólico em reverência a Oxalá, com pedidos de paz e cânticos em louvor ao orixá. A Caminhada assume a força da festa (SODRÉ, 1988) ao sacralizar espaços-tempo ao longo do seu trajeto. É o corpo negro afrodiaspórico que se apropria dos espaços das ruas e das encruzilhadas, como extensão dos terreiros, para denunciar, protestar, reivindicar, celebrar, dançar, cantar, comer e marcar sua presença negra na cidade. Algumas considerações in-conclusivas Conforme as considerações finais do professor Fábio Macêdo Velame acerca do TFG – semente embrionária desse ensaio – o axé do trabalho, ou seja, o poder de acontecimento, está na proposição de uma epistemologia negra, afro-brasileira no olhar, viver, experimentar, fazer e propor cidade. O TFG como fonte matricial da construção desse ensaio identifica, apreende e in-corpora as cosmopercepções e epistemologias negras oriundas do bairro negro do Engenho Velho da Federação, em especial aquelas praticadas e percebidas nos espaços dos terreiros de candomblé e suas extensões na cidade. Para isso foi necessário que o autor “renascesse” como arquiteto urbanista, desvencilhando-se de sua formação arquitetônica e urbanística eurocêntrica, modernista e ocidental, herdada da academia, e passasse a in-corporar os valores e práticas da comunidade e território afrodiaspórico em questão, o Engenho Velho da Federação. p. 323 Buscou-se sentir, viver e fazer a cidade negra através do corpo-Bara e suas cosmo-sensações vinculadas à ancestralidade negro-africana e afro-brasileira, às espacialidades e territorialidades afrodescendentes, às energias e forças invisíveis que se fazem presentes e materializam-se nos espaços urbanos, sobretudo na natureza e, por fim, ao axé, princípio vital da existência para o Povo de Santo. Isto para que o corpo-Bara pudesse ver, escolher e trilhar o Caminho (Nzila), onde só se enxergava o sistema (macro) viário; para alimentar (dar de comer e de beber) e mover-se na Encruzilhada (Pambu), onde antes só se enxergava esquinas e quadras; para reconhecer o espaço do terreiro como lugar de resistência, acolhimento, manutenção e troca de saberes, territórios-mundos sagrados que constituem a alma da cidade negra do Salvador e do bairro do Engenho Velho da Federação. Notas 1 Intitulado “Verde limiar: entre o visível e o invisível. Desvelando espaços verdes no Engenho Velho da Federação”, o trabalho foi apresentado à Faculdade de Arquitetura da UFBA em julho de 2019 para obtenção do título de Arquiteto e Urbanista. 2 Desde a sua gênese, o trabalho buscou subverter a lógica do fazer acadêmico que costuma situar o/a pesquisador/a como sujeito e os indivíduos/comunidades como objeto de estudo, tomando o pensamento negro insurgente de Makota Valdina que nos convoca, indivíduos e comunidades negras, a nos tornarmos sujeitos da nossa própria história, ou em suas palavras: “é preciso ser sujeito e não objeto”. p. 324 3 O trabalho foi orientado pelo Prof. Fábio Macêdo Velame e coorientado da Prof.ª Marta Raquel da Silva Alves; e avaliado por Maria Estela Ramos (professora, pesquisado- ra e arquiteta convidada), Gabriela Leandro Pereira (Gaia) e Thais Portela, ambas professoras da Faculdade de Arquitetura da UFBA. 4 Sujeitos reconhecidos pela comunidade como herdeiros e detentores de saberes e fazeres da tradição oral (HAMPATÉ BÂ, 2010; PACHECO, 2006). 5 O epíteto “Roma Negra” é uma frase me- tafórica cunhada pela famosa Iyalorixá Mãe Aninha – fundadora do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá – para se referir à cidade de Salvador como um centro difusor da religião de matriz africana no Brasil (SILVA, 2018, p. 7). 6 Em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE, 8 em cada 10 moradores de Salvador eram negros (autodeclarados pretos ou pardos) e somavam 82,1% da população total. Disponível em: https://bahiaeconomica. com.br/wp/2018/11/19/ibge-salvador-e-a-capital-mais-negra-do-brasil-e-tambem-onde-esta-maior-desigualdade-salarial-entre-brancos-e-pretos/. Acesso em: 20 mar. 2021. de candomblé (a partir da interlocução com moradores e membros das comunidades-terreiro do bairro). 7 8 Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí utiliza o termo “cosmopercepção” ao invés do termo “cosmovisão” para descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou, até mesmo, uma combinação de sentidos (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 29). Para mais informações ver Carvalho e Pereira (2008). Segundo dados do Censo 2010 realizado pelo IBGE, no que tange à classificação da população de acordo com sua raça/cor, 87,22% dos moradores do Engenho Velho da Federação autodeclaram-se negros (RAMOS, 2013). 9 Everaldo Duarte, ancião do Terreiro do Bogum, conta que, no ano de 1719, um casal de negros fugiram de um Engenho que situava-se próximo ao bairro com a missão de plantar o Axé dos Voduns que foram trazidos da região do Mahi (África) no território que hoje conhecemos como sendo o bairro do Engenho Velho da Federação (DUARTE, 2018, p. 16). 10 As casas de candomblé mais antigas do bairro seriam o Terreiro da Casa Branca e o Terreiro do Bogum, ambas foram fundadas em meados do século XIX e instalaram-se em terrenos próximos (RAMOS, 2013; SANTOS, 2008). 11 O conceito de “Bará do corpo” ou “Exu do corpo” foi introduzido nas religiões afro-brasileiras através do livro “Os Nagô e a Morte”, de Juana Elbein dos Santos, e afirma que o Bará do corpo seria uma “qualidade de Exu” que existiria dentro de cada pessoa, dando-lhe movimento e vida, responsável pela comunicação com o mundo exterior (MARINS, 2016, p. 2). 12 O trabalho de campo foi realizado entre 2017 e 2019 através de caminhadas e visitas guiadas pelo bairro, conversas e entrevistas com moradores e lideranças locais, participação em eventos de caráter político-religioso e festas públicas nos terreiros 13 14 Termo de origem yorubá que significa “energia”, “poder”, “força”; ou, ainda, segundo Juana Elbein dos Santos, a força vital, princípio-chave da cosmovisão do candomblé que “assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem axé, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital” (SODRÉ, 1988, p. 87). 15 Extraído do Parecer do TFG (Trabalho Final de Graduação) do Autor, elaborado pelo professor e orientador Fábio Macêdo Velame, apresentado em 03/07/2019 aos membros da banca avaliadora e presentes no dia da defesa do trabalho na Faculdade de Arquitetura da UFBA. 16 17 Idem. De acordo com Luiz Rufino (2016, p. 4), é “um dos títulos de Exu que confere a ele a condição de o Senhor da terceira cabaça, podendo ser também conhecido como o Senhor da encruzilhada de três caminhos”. 18 Expressão ou vocábulo da língua Kikongo, uma das línguas faladas no candomblé de tradição angola, que quer dizer “encruzilhada no caminho” (PINTO, 2015, p. 165). 19 Os Voduns correspondem às entidades espirituais que compõem o panteão jeje (matriz africana a qual está vinculado o Ter- p. 325 reiro do Bogum). Para mais informações sobre os Voduns e demais entidades que constituem o panteão jeje ver o capítulo “O panteão jeje e suas transformações”, no livro “A formação do Candomblé”, do antropólogo Luis Nicolau Parés (2006). 20 21 Referente aos negros africanos mulçumanos, também conhecidos como muçurumins. “A afro-consciência espacial é um conceito voltado para a interpretação do espaço dos bairros negros, carregado de ações implícitas de seus habitantes, de caráter material e imaterial. Interessa-nos com este conceito evidenciar, principalmente, a subjetividade das interpretações, de como o real pode ser pensado, incorporando o espaço físico nas relações e práticas sociais na produção do espaço do bairro negro” (RAMOS, 2013, p. 244). 22 Coordenado pelo professor e antropólogo Jocélio Teles dos Santos, o projeto foi uma iniciativa das Secretarias Municipais da Reparação e da Habitação do Município de Salvador em parceria com o CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. A pesquisa foi desenvolvida entre 2006 e 2007 através do levantamento cadastral e diagnóstico dos terreiros da cidade tendo como objetivo principal a implementação de políticas públicas voltadas para as comunidades-terreiros, em especial aquelas voltadas para a regularização fundiária desses territórios (SANTOS, 2008). 23 Os limites territoriais adotados foram definidos a partir da delimitação proposta por SANTOS et al. (2010) na publicação “O Caminho das Águas”, que propõe limites para os bairros de Salvador levando em consideração um estudo das bacias hidrográficas da cidade. p. 326 24 Refere-se ao “padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia estes sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs – sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que vêm se transmitindo através dos tempos e a mudança nos tempos” (LIMA, 1976, p. 77). 25 26 Para mais informações ver LIMA (1976) e CARNEIRO (2002). De acordo com Makota Valdina, o in- quice ou n’kisi para o candomblé de tradição angola é “entidade, a energia/ força, a essência existente em toda a natureza, contida nos elementos da natureza, mas que também se mostra para nós através da incorporação nos seres humanos por ele escolhidos”. Recebe a mesma reverência dos iniciados no candomblé, quando comparados aos voduns e aos orixás, entidades/divindades cultuadas nos candomblés de tradição jeje-nagô (PINTO, 2015, p. 156). 27 “Enugbarijó é um dos títulos de Exu que o concede a condição de boca do mundo ou boca coletiva [...] É aquele que engole de um jeito para cuspir de outra forma” (SIMAS; RUFINO, 2018. p. 69). 28 Segundo Rufino (2018, p. 77), “esse caráter o dimensiona enquanto ser inacabado, como potência que pode vir a se somar e alterar toda e qualquer situação”. 29 “É representado pelo caracol-agulha, mostra a evolução de tudo o que existe sobre a Terra [...] O dono da evolução, o caracol” (LIMA, 2016, p. 143). 30 De acordo com Santiago (2020), essa ideia de tempo espiralar também está presente na obra de Mestre Didi e nas teorias de Leda Maria Martins. Para mais informações ver a publicação “Èsù” autoria de Mestre Didi com Juana Elbein dos Santos (SANTOS; SANTOS, 2014) e “Performances do tempo espiralar” de Leda Maria Martins (2021). 31 A praça foi inaugurada em 1993 pela Prefeitura Municipal de Salvador, onde foi erigida a estátua de Mãe Runhó, que na época da inauguração era o único monumento público na cidade em homenagem a uma mulher negra e sacerdotisa de um templo religioso de matriz africana (SERRA, 2007). 32 Maria Valentina dos Anjos da Costa (1877-1975), mais conhecida como Mãe Runhó, foi uma famosa Doné (sacerdotisa e liderança religiosa de tradição jeje-mahi) do Terreiro do Bogum. Referências CARVALHO; I. M. M. de; PEREIRA; G. C. As “Cidades” de Salvador. In: CARVALHO; I. M. M. de; PEREIRA; G. C. (orgs.). Como anda Salvador e sua Região Metropolitana. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 81-108. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ ri/1724. Acesso em: 08 mai. 2021. CERTEAU, M. de. 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Acesso em: 26 abr. 2021. p. 329 Resenha Travessias em Ponta de Areia: um mergulho profundo de poder ancestral enraizado na arquitetura do Omo Ilê Agboulá Thifanny Odara Lima da Silva PPGEDUC / UNEB o presente texto pretende-se uma resenha crítica do livro Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no Brasil, editado em 2019 pela Edufba, de autoria de Fábio Macêdo Velame, arquiteto e urbanista, mestre e doutor em arquitetura e urbanismo e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Trata-se de uma obra que é fruto de extensa e honorável pesquisa de mestrado, que apresenta outros horizontes epistemológicos no que tange à compreensão das complexidades e singularidades que estruturam os espaços sagrados afro-brasileiros, oferecendo ao público leitor um mergulho no legado ancestral compartilhado pelos que preservam os cultos e rituais litúrgicos de origem africana. N Um eterno peregrino, que extrai da ancestralidade a sua essência, o seu caminho norteador no aiê, o retrato das dinâmicas de gênero nas sociedades secretas diante de diversos pontos peculiares, revela uma história que carrega consigo o caráter plurifuncional que algumas vezes é político, noutras subjetivo, retratando diante de si um mundo diverso e repleto de significados próprios. A comunidade de Ponta de Areia é o início da imensidão vista no mar que não apaga, mas que preserva os caminhos ancestrais. v.2 n.1 p. 332-339 2023 ISSN: 2965-4904 Os registros apresentados na escrita de Velame, em linhas gerais, desvelam a tessitura que vai além da composição arquitetônica, enaltece o cuidado e a peculiaridade vistos no terreiro Omo Ilê Agboudá. Este terreiro se constitui como um espaço de cuidado e preservação de rituais sagrados, cheio de símbolos imateriais e significados complexos, que são revividos através de cultos em que os mortos conduzem os vivos. O livro conta com quase trezentas páginas de informações profundamente valiosas e instigantes. O autor divide o seu texto em quatro capítulos, que não são apenas capítulos, mas caminhos que percorrem grandes poderes da sabedoria no que tange à expansão da existência milenar de origem nagô, principalmente o culto da sociedade secreta Egungun, que dá origem ao culto a Egum no Brasil. A bússola aqui é o seu ponto de partida, sob direcionamentos dados do orum para o mergulho profundo e imensurável nas narrativas de um universo amplo, cheio de complexidades, que contribui para o resgate histórico e religioso do culto de Egum, sendo um mecanismo potencial para desfrutar todo o legado e acervo imaterial instaurado pelas edificações ancestrais desse espaço sagrado. A pesquisa de Velame traz, a partir da arquitetura do Terreiro Omo Ilê Agboulá, localizado no povoado de Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, a compressão da cultura e da dinâmica religiosa da população negra, especialmente do culto a Egum. Velame destaca que o culto tem como princípio o entendimento africano de Egum: [...] os Egum eram os ancestrais masculinos que representavam descendências nobres, reis, dinastias reais e famílias nobres, pais fundadores das cidades e linhagens, guerreiros, sacerdotes e outras lideranças que tinham conseguido, durante a vida, certo prestígio e poder (VELAME, 2019, p. 15). Assim, Velame abre um leque histórico tanto para as análises das arquiteturas das cidades brasileiras quanto para se pensar as relações étnico-raciais que atravessam o Brasil. Surge de forma incipiente o racismo sistêmico e estrutural, que incansavelmente deslegitima a importância das contribuições dos povos originários africanos na construção arquitetônica do país. Ainda que cada pedaço de chão e cada suor preto derramado demarquem a importância do povo negro para a construção histórico-cultural brasileira, esta problemática ainda é pouco discutida do ponto de vista urbanístico, arquitetônico e histórico. Ao construir seu texto, Velame se coloca na contracorrente dessas áreas de conhecimento. Para essa construção narrativa, o autor se propõe a pensar a arquitetura levando em conta o tempo e o espaço histórico e político, desde o processo de escravização no Brasil até os dias atuais, através de um breve histórico sobre as perseguições policiais, jurisprudência via código penal e tudo o que sistemicamente acomete os negros. Para o autor, a arquitetura é compreendida como espaço de edificações onde ocorre o acolhimento, além da morada física. Segundo ele, p. 335 [...] numa estância e circunstância, em sua simplicidade, ao jogo em espelho do mundo, entre terra, céu, mortais e divinos, mediante a articulação e organização de seus espaços, sendo estes regidos por uma cultura formada e constituída, por um sistema simbólico singular, que veiculam concepções e significados próprios (VELAME, 2019, p. 17). Esses espaços são, literalmente, reelaborados e repensados para preservar a cultura e cultuar os ancestrais, correspondidos por meio da arquitetura e instaurados por “uma arquitetura afro-brasileira de uma sociedade específica de culto aos seus ancestrais ilustres, uma arquitetura única, singular, particular, sem qualquer paralelo e similar na África” (VELAME, 2019, p. 18). Com isso, a ideia central do livro é compreender como a cultura dos povos originários africanos e afro-brasileiros realizou toda a composição urbanística, arquitetônica e cultural do templo mais antigo de culto aos egum no Brasil: O Omo Ilê Agboulá. Trata-se de uma retrospectiva importantíssima para a análise histórica da sociedade secreta Egungun, como é conhecida no território africano. Além dos fatores relacionados ao próprio axé, a localização do terreiro está intimamente ligada ao processo urbanístico da Ilha de Itaparica, através de seu marco de resistência. Desde a sua primeira instalação podemos, literalmente, ser religados à história do Omo Ilê Agboulá através de sua instalação inicial no povoado de Ponta de Areia, na área de orla, em uma vila pesqueira onde a maioria dos pescadores e moradores, até então, eram vinculados ao terreiro de culto de Egum. Com a truculência racista do Estado nos anos 1940, o terreiro é invadido pela polícia porque as práticas religiosas de matriz afro-brasileira eram vistas como práticas de charlatanismo e oficialmente proibidas. Com isso, o terreiro migra para a localidade conhecida como Barro Vermelho, uma área à época afastada do meio urbano, o que levou o terreiro a permanecer aí até o final da década de 1960. p. 336 Com o início do processo de urbanização ocorre, concomitantemente, o processo de especulação imobiliária e, consequentemente, a invasão de uma parte da área ambiental do terreiro. Esta “eventualidade” foi fruto do racismo religioso que, por sua vez, faz com que, nos dias de hoje, alguns indivíduos se sintam autorizados a invadir, perseguir e desapropriar territórios sagrados. Tal adversidade força, mais uma vez, o terreiro a migrar para uma localidade mais afastada, desta vez para Bela Vista, já no final da década de 1960, onde permanece até os dias de hoje. É importante pontuar que a aquisição desse espaço foi feita pela Yalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá e Ia Egbé (Mãe da comunidade) do Omo Ilê Agboulá, Mãe Senhora. Sendo o terreiro mais antigo de culto aos Egum em todo o Brasil, Velame afirma que: Ele recebeu não apenas os rituais, as músicas, os fundamentos, ou seja, a tradição do culto aos Egum, mas também toda uma linhagem de ancestrais, sejam eles africanos ou afro-brasileiros que pertenciam aos terreiros de Egum do século XIX. Atualmente, é referência para todos os demais membros dos terreiros de Egum no país [...] (VELAME, 2019, p. 22). Velame pontua que, através dos laços que atravessam a história pela relação de gênero que está estruturada, os Ojés são os sacerdotes responsáveis pelo equilíbrio da comunidade por grau hierárquico. O que se estabelece dentro desses espaços são as dinâmicas de gênero, ratificadas pelas sociedades secretas iorubás masculinas e femininas e, dentre elas, as sociedades secretas masculinas de Egungun. É isso que traz para o culto a Egum no Brasil o homem na posição de centralidade. Dentre as posições hierárquicas mais importantes destacam-se o Alapini, que é o sacerdote supremo, e o Alabá, o chefe do terreiro. No Omo Ilê Agboulá, o Ojé Alabá é o senhor Balbino Daniel de Paula. Na sociedade de Egum o antepassado sempre estará atrelado à figura masculina, o que não invalida nesse espaço a presença feminina. Diferente do candomblé, que é também uma religião de matriz africana, porém matriarcal, em que as mulheres estão na posição sacerdotal, no culto a Egum elas ocupam posições complementares e/ou de apoio. O autor nos apresenta o espaço e as relações forjadas nele com riqueza de detalhes. Aquilo que nos permite compreender as peculiaridades e subjetividades, vistas a partir de panoramas importantes sobre a compreensão desse espaço, são as dinâmicas litúrgicas, compreendidas como locais sagrados. Já os locais não-sagrados, chamados de profanos, coabitam o espaço, sabendo que todo o seu direcionamento é regido pelo sagrado: Todavia, os espaços sagrado e profano, no Omo Ilê Agboulá, não ocorrem de maneira oposta, polarizada, e dicotômica, mas sim concomitante. O sagrado rege e acontece no profano no dia a dia, no cotidiano das pessoas – em suas condutas, comportamentos, valores éticos, e escolhas –, estando presente na sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais da alimentação, sexualidade, trabalho e do ciclo da vida (VELAME, 2019, p. 169). p. 337 Nessas palavras, é notório compreender como o autor nos apresenta as divisões arquitetônicas no Omo Ilê Agboulá, constituintes de mecanismos imprescindíveis, pois possibilitam a conexão com ancestrais ilustres. Reporta-nos ao passado observando o presente, partindo do direcionamento dos Egum, sem perder de vista o culto à mãe Terra e sua conexão com os orixás. As circunstâncias do passado moldam o tempo presente, visto que “Os tempos sagrados e profanos constituem as temporalidades que balizam a existência do homem religioso” (VELAME, 2019, p. 181). O livro mostra que os tempos sagrado e profano estão intrinsecamente lado a lado, fazendo da religião um sistema cultural que, através do tempo, vem modelando pessoas e espaços. Isto impacta diretamente na relação delas com os tempos: “Todavia, o tempo sagrado e profano, na sociedade de culto aos ancestrais, no Omo Ilê Agboulá, não são duas categorias dicotômicas, polarizadas, antagônicas; elas coexistem, uma está presente na outra” (VELAME, 2019, p. 181). O que torna a descrição desse espaço sagrado, a partir de uma cosmovisão que direciona ao poder, vida e fecundidade, é uma vida habitada por vir a ser. Trata-se de algo demarcado além de “aquele habitado pelos deuses, heróis e ancestrais no início do tempo −, regido pela eficiência e não numa ilusão, num mundo disforme e amorfo” (VELAME, 2019, p. 69). Reitero, por meio dessas breves palavras, a importância do livro Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no Brasil, do Professor Doutor Fábio Macêdo Velame. O corpo teórico retrata as contribuições dos afro-brasileiros para o urbanismo e a arquitetura no Brasil. O livro enaltece o processo de preservação da tradição dos povos originários iorubás em solo baiano. O que é discorrido ergue-se não só na arquitetura do templo sagrado, mas é enaltecido nas estratégias de sobrevivência e resistência de todo o legado existente no terreiro Omo Ilê Agboulá, através de sua unicidade como casa matriz de culto a Egum no Brasil. A pesquisa de Velame se tornou não só um material acadêmico que busca averiguar informações sem nenhum tipo de retorno à comunidade pesquisada, ao contrário, ultrapassou as paredes da academia e, assim como o autor, foi um agente imprescindível para o processo de tombamento do terreiro Omo Ilê Agboulá como patrimônio cultural do Brasil, no ano de 2015, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Isto representa um avanço tanto do ponto de vista histórico quanto para o fortalecimento étnico dos povos iorubás e da cultura afro-brasileira. p. 338 O livro é muito mais do que um retrato vivo que realinha a cronicidade de um dos legados dos povos nagô para os afro-brasileiros. É um mergulho imensurável na transmissão milenar que é enaltecida e preservada pela sabedoria ancestral que se mantém comandada pelos Eguns. Eles nos conectam com a terra ancestral dentro da terra atual, sendo o livro um bálsamo ancestral para entabular os estudos afrodiaspóricos e africanos no Brasil. Glossário: Aiê – O mundo terrestre. Alabá – Nome do sacerdote chefe de um terreiro de culto aos Egum. Alabá Babá Mariô – Título honorífico do sacerdote chefe do terreiro de Egum. Alapini – Título do sumo sacerdote do culto aos ancestrais, o sacerdote supremo de todos os terreiros de Egum. Axé – Energia, poder, força da natureza. Nagô – Refere-se ao povo do antigo imp.rio africano cuja capital política era Oió. Egum – Espírito ancestral. Egungun – O mesmo que Egum. Ojé – Sacerdote do culto de Egum. Referência VELAME, F. M. Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019. p. 339 Laje é uma publicação semestral do ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Dedica-se ao giro decolonial latino-americano, às epistemologias do sul e à descolonização do conhecimento, priorizando uma produção transdisciplinar em interseção com diferentes dimensões do urbanismo, da paisagem e da arquitetura. ISSN: 2965-4904