v.2 n.1
2023
DOSSIÊ
CIDADES
AFRICANAS
Volume 2: Cidades
e arquiteturas
afrodiaspóricas
Laje é uma publicação semestral do ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e
seus Espaços, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura
da Universidade Federal da Bahia. Dedica-se ao giro decolonial
latino-americano, às epistemologias do sul e à descolonização do
conhecimento, priorizando uma produção transdisciplinar em interseção
com diferentes dimensões do urbanismo, da paisagem e da arquitetura.
ISSN: 2965-4904
Laje, volume 2 - número 1, 2023
Dossiê Cidades Africanas.
Volume 2: Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas
ISSN: 2965-4904
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia
R. Caetano Moura, 121 - Federação, Salvador - BA, CEP 40210-905
Editores-Chefes
Leo Name
Tereza Spyer
Equipe de produção editorial
Adriana Caúla
Bruna Otani Ribeiro
Céline Veríssimo
Frank Andrew Davies
João Soares Pena
Larissa Fostinone Locoselli
María Camila Ortiz
Mariana Malheiros
Murad Jorge Mussi Vaz
Oswaldo Freitez Carrillo
Rodrigo da Cunha Nogueira
Concepção do design
Adriana Caúla
Oswaldo Freitez Carrillo (coord.)
João Soares Pena
Leo Name
María Camila Ortiz
Design final e projeto gráfico
Oswaldo Freitez Carrillo
Coordenação gráfica
Leo Name
Oswaldo Freitez Carrillo
Editoração
Oswaldo Freitez Carrillo
Capa
Leandro Ferreira Marques
Tayná Almeida de Paula
Comitê editorial
Alex Schlenker (UASB, Equador)
Alfredo Gutiérrez Borrero (UTADEO, Colômbia)
Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ, Brasil)
Ana Paula Baltazar (UFMG, Brasil)
Andréia da Silva Moassab (UNILA, Brasil)
Bianca Freire-Medeiros (USP, Brasil)
Carolina Bracco (UBA, Argentina)
Christian León (UASB, Equador)
Cláudio Rezende Ribeiro (UFRJ, Brasil)
Cristiane Checchia (UNILA, Brasil)
Joaquín Barriendos (UNAM, México)
Luciana da Silva Andrade (UFRJ, Brasil)
Maria Estela Ramos Penha (UNIME, Brasil)
Rita de Cássia Martins Montezuma (UFF, Brasil)
Yasser Farrés Delgado (USTA, Colômbia)
Editaram esse número
Céline Veríssimo
João Soares Pena
Murad Jorge Mussi Vaz
Colaboraram com esse número
Antonia dos Santos Garcia (In memorian)
Céline Veríssimo
Dú Evangelista
Fábio Macêdo Velame
Francine Cavalcanti
NEIM / UFBA
Joana D´Arc
João Soares Pena
Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira
Luis Guilherme Cruz Pires
Maurício dos Santos
Marizélia Carlos Lopes (Nega)
Mayara Mychella Sena Araújo
Murad Jorge Mussi Vaz
Nayara Cristina Rosa Amorim
Paula Regina de Oliveira Cordeiro
Rivke Jaffe
Rodrigo Nogueira
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Thiffany Odara Lima da Silva
Victor Menck
Wayne Modest
Traduziu nesse número
Carolina Maurity Frossard
DOSSIÊ
CIDADES AFRICANAS
Volume 2
Cidades e arquiteturas
afrodiaspóricas
v.2 n.1 - 2023
Sumário
Editorial
Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas
9
Céline Veríssimo, João Soares Pena e Murad Jorge Mussi Vaz
In Memoriam
Antonia dos Santos Garcia:
teoria e práxis feministas ao vivo e a cores
21
NEIM /UFBA
Entrevistas
Arquiteturas e cidades no Atlântico Negro,
raízes africanas e (re)invenções na diáspora
36
Entrevista com Fábio Macêdo Velame
Pelo “direito ao território” afrodiaspórico.
A especificidade pedagógica da luta quilombola
de Ilha de Maré, Salvador, Bahia
58
Entrevista com Nega (Marizélia Carlos Lopes)
Ressignificação da herança afrodescendente
na engenharia e na arquitetura de Ouro Preto
Entrevista com Dú Evangelista: Movimento OuTro Preto
92
artigos
A presença negra no interior paulista - Brasil
106
Joana D’Arc de Oliveira e Vitor Daniel Menck
“Quem pode ser dono da morada de deuses?”
Terra, terreno, terreiro
132
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Pontos riscados no chão:
a presença da umbanda em Salvador, Bahia
166
Mayara Mychella Sena Araújo e Nayara Cristina Rosa Amorim
Novas raízes:
196
ontologias jamaicanas da negritude, da África ao gueto
Wayne Modest e Rivke Jaffe
Cidade, relações de gênero e raça:
Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais
228
Antonia dos Santos Garcia
Ensaio
Orixás:
virações cotidianas
262
Mauricio dos Santos
Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra:
cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde
o Engenho Velho da Federação, Salvador – BA
298
Luis Guilherme Cruz Pires
Resenha
Travessias em Ponta de Areia:
um mergulho profundo de poder ancestral
enraizado na arquitetura do Omo Ilê Agboulá
Thifanny Odara Lima da Silva
332
Editorial
Cidades e arquiteturas
afrodiaspóricas
Céline Veríssimo
DAMG/UPT, PPGPPD, CAU e MALOCA / UNILA, ¡DALE! / UFBA
João Soares Pena
¡DALE! / UFBA, UNEB
Murad Jorge Mussi Vaz
¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, DEAAU / UTFPR
ste é o volume 2 do Dossiê Cidades Africanas,
da revista Laje, vinculado ao grupo de pesquisa
Decolonizar a América Latina e seus Espaços
(¡DALE!), sediado na UFBA. Intitulado Cidades e
arquiteturas afrodiaspóricas, dá continuidade à
discussão iniciada no primeiro volume, Cidades e arquiteturas na África, deslocando a atenção para territórios afrodiaspóricos no Brasil e na Jamaica Os debates empreendidos
por autores e autoras tensionam e, ao mesmo tempo, desnudam variados processos de enfrentamento, resistência,
apagamentos, permanências e (re)invenção afrodiaspóricos,
no contexto da colonialidade/modernidade.
E
Não é possível fazer essa discussão se não a situarmos geo-historicamente, ou seja, se não tivermos como
elemento de referência a emergência do projeto colonial
europeu que, não apenas mudou a geografia do mundo,
mas que, sobretudo, apresentou a Europa como uma
centralidade pretensamente universal, com base em
dominação e destruição de outros povos, bem como exploração e espoliação de corpos e territórios nos quatro
cantos do mundo.
v.2 n.1
p. 8-19
2023
ISSN:
2965-4904
O sociólogo peruano Aníbal Quijano (1999; 2005) já
mostrou como o projeto colonial se efetivou. A partir da
construção social da ideia de raça, europeus, a partir do
encontro com os povos ameríndios, subjugaram outros
povos, incluindo os africanos, acionando tropos de hierarquização/classificação social pelos quais habitam o que
ele chamou de zona do não-ser. Esta zona do não-ser diz
respeito à desumanização sofrida pelos negros (e também outros grupos alocados fora da branquitude) a partir
do processo de colonização da América e, especialmente,
do tráfico de homens e mulheres da África para aquele continente na condição de escravizados. Estima-se
que, entre 1514 e 1866, mais de 12 milhões de africanos
e africanas tenham sido sequestrados e trazidos para o
continente americano (ZORZETTO, 2020), dentre os quais cerca de 5 milhões tiveram
1
o Brasil como destino. Esses africanos e africanas, e seus descendentes, já do lado de
cá do Atlântico, foram responsáveis pela construção do novo mundo e pela produção
de riqueza que encheu os cofres de colonizadores, sejam daqui ou da Europa. Sim,
o trabalho braçal e os conhecimentos tecnologicos e científicos couberam àqueles
e àquelas de quem elites brancas destituíram de humanidade e, após a abolição da
escravidão, se tem tentado eliminar e invisibilizar a todo custo.
O projeto de domínio e subjugação dos colonizadores sobre pessoas negras envolvia múltiplas dimensões de dominação, entre as quais um processo de epistemicídio,
ou seja, a negação do conhecimento produzido pelos grupos dominados e também da
sua constituição enquanto sujeito de conhecimento. Isto constitui um dos instrumentos
mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial (CARNEIRO, 2005, 96), pois
nega a riqueza cultural e epistemológica dos dominados, impondo-lhe os valores
dos dominadores, dos brancos, os quais seriam, supostamente, os detentores únicos
do saber na sua visão de mundo. Apesar disso, os povos negros foram e têm sido
capazes não só de preservar sua cultura porém não sem perdas e muito sofrimento,
mas também de construir novas possibilidades de vida e expressão cultural. É claro
que isto foi resultado de processos de resistência, enfrentamentos e também de
muito sangue derramado.
Vale ressaltar que tentativas de apagamento da herança africana, no Brasil, de
modo geral, e, particularmente nas cidades, continuam ocorrendo. A despeito da
política urbana brasileira não ser orientada pela preocupação com a população negra,
menos ainda com a sua cultura, os múltiplos desdobramentos que as intersecções
entre os povos originaram e continuam a originar produzem saberes e formas de ser
altamente sofisticadas, nas mais variadas expressões culturais e espaciais, combatendo
e revertendo os valores moderno/coloniais excludentes sustentados pela branquitude.
Esse processo de apagamento atravessa e é atravessado pelas dimensões de compreensão e narrativas históricas nas múltiplas espacialidades, corporeidades e subjetividades da africanidade urbana e rural no mundo.
Entre os inúmeros exemplos que poderíamos trazer, cabe pensar sobre o Museu do
Amanhã, há alguns anos inaugurado na área portuária do Rio de Janeiro, cujo projeto
foi assinado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Como o próprio nome diz, o
museu se projeta para o futuro, porém sem olhar para trás, pois ali perto está o Cais
do Valongo, considerado o maior porto receptor de africanos traficados para a América. O museu se tornou o grande ícone da zona portuária, invisibilizando a memória
p. 11
da diáspora africana e do Brasil, além de não considerar as múltiplas apropriações
cotidianas, de toda a área em questão, pela população que residia e foi removida das
imediações. Vassallo e Cicalo (2015) afirmam, inclusive, que num primeiro momento
do Porto Maravilha, iniciado em 2010, o patrimônio afrodescendente da localidade
não entrava na pauta, então focado em projetos como o do Museu do Amanhã e do
Museu de Arte do Rio. A inclusão da memória negra no projeto de revitalização da área
portuária só foi possível em razão da articulação de acadêmicos e ativistas negros.
Este é só um dos casos em que a permanência e/ou o resgate da herança africana
em nossas cidades não se dá simplesmente pelo reconhecimento de sua importância
pelos governantes, mas pela incansável luta do povo negro.
Como conta Conceição Evaristo (2015), "apesar de eles terem combinado de nos
matar, a gente combinamos de não morrer". Não se trata, aqui, apenas da morte em
uma perspectiva ontológica, mas também da morte por epistemicídio, apagamento
da herança africana nas cidades e outras dimensões sociais, constitutivas da sociedade brasileira. No atual contexto de crise e de aumento do número de famintos no
Brasil, acirrando ainda mais as dificuldades históricas do povo negro que habita o
quarto de despejo das cidades brasileiras, como definiu a escritora Carolina Maria de
Jesus (2014), é preciso não apenas compreender como o racismo tem determinado
o funcionamento da sociedade e legitimado conhecimentos, mas também sistematicamente eliminado, subjetiva e fisicamente, formas de vida e existência: nos becos e
vielas, nos morros e no asfalto, diariamente. Por isso, parece-nos importante e urgente
fortalecer formas históricas e contemporâneas de resistência, além de construir novas
estratégias de enfrentamento às violências perpetradas pelo racismo, pelo patriarcado
e pela colonialidade.
É nesse sentido que se desenvolvem tanto o dossiê como um todo quanto o
presente volume, especificamente. Buscamos somar esforços àqueles e àquelas
que têm se dedicado ao resgate e à valorização das contribuições do povo negro ao
campo de arquitetura e urbanismo e à produção da cidade, de atividades culturais
e de conhecimento no Brasil e em outros contextos afrodiaspóricos. Cada um dos
textos neste volume contribui com uma reflexão crítica e aprofundada para a temática.
p. 12
Dedicamos este volume a Antonia dos Santos Garcia, mulher negra intelectual e
ativista brilhante que nos deixou durante o processo de organização do dossiê e que
contribui in memoriam com um artigo. Abre o dossiê um “memorial” intitulado Antonia
dos Santos Garcia: teoria e práxis feminista ao vivo e a cores, de autoria coletiva das
integrantes do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Uni-
versidade Federal da Bahia (UFBA). As autoras contam a trajetória de Antonia Garcia,
desde seu nascimento na cidade de Cachoeira, na Bahia, passando pelo ativismo
nos movimentos sociais urbanos, pela política partidária e por sua atuação como
acadêmica, com passagem por universidades na Bahia e no Rio de Janeiro. Com
uma atuação ancorada na teoria e na práxis feminista e na luta anrirracista, Antonia
dos Santos Garcia deu grandes contribuições para a política partidária e movimentos
de base, bem como para os estudos de sociologia urbana, preocupando-se com as
relações entre desigualdades, raça, gênero e cidade.
Este volume segue com a seção de entrevistas. O conjunto escolhido contempla
diversas dimensões constitutivas de arquiteturas, territórios, corpos e sujeitos afrobrasileiros. São narrativas construídas a partir da academia, de movimentos sociais sujeitos
e coletivos que perfazem caminhos de visibilização, lutas e resistências históricas
e contemporâneas a partir de rumos tomados da ancestralidade às intersecções
contemporâneas. A primeira entrevista, intitulada, Arquiteturas e cidades no Atlântico
Negro, raízes africanas e (re)invenções na diáspora”, foi realizada em 2021, a partir do
envio de perguntas por e-mail e por nós, Céline Veríssimo, João Pena e Murad Vaz,
ao arquiteto e urbanista e professor do PPG-AU/FAUFBA Fábio Macêdo Velame. Em
suas respostas, ele fala de sua trajetória profissional e acadêmica, sempre preocupada
com as questões étnico-raciais. Sendo um dos mais proeminentes nomes quando se
trata de arquiteturas afro-brasileiras, Velame tem se dedicado à questão dos terreiros
de candomblé na Bahia, realizando importantes trabalhos em parceria com diversas
instituições, visando a sua preservação e seu registro como patrimônio. Suas contribuições para o ensino de arquitetura passam pela inclusão, na última década, das
primeiras disciplinas que discutem questões étnico-raciais em arquitetura e urbanismo
na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Além disso,
o grupo de pesquisa que coordena, o EtniCidades, realiza anualmente um seminário
voltado às questões étnico-raciais em arquitetura e urbanismo, promovendo diálogo
com pesquisadores nacionais e internacionais. Velame também conta sobre seus
projetos atuais, as parcerias que tem estabelecido com universidades africanas e,
por fim, diz acreditar que é possível descolonizar a arquitetura e o urbanismo, mas
considerando que será um processo longo, que requer a implementação de mais
políticas antirracistas.
Na sequência, Nega (Marizélia Carlos Lopes), militante do Movimento Nacional
de Pescadoras e liderança quilombola da Ilha de Maré, na Bahia, é entrevistada pelas
geógrafas e pesquisadoras Francine Cavalcanti (POSGEO/UFBA) e Paula Regina de
p. 13
Oliveira Cordeiro (UNEB, POSGEO/UFBA) e pela arquiteta e urbanista e pesquisadora Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira (RAU+E, EtniCidades/UFBA), mostrando
o quanto que corporifica as lutas empreendidas cotidianamente por comunidades
quilombolas, sejam urbanas ou rurais. Pelo Direito ao Território afrodiaspórico - a especificidade pedagógica da luta quilombola de Ilha de Maré, Salvador, Bahia reflete
sobre a consistência de lutas de longa duração para a manutenção de modos de vida
que se vinculam diretamente às especificidades do território, da ancestralidade, do
corpo e do lugar. A entrevista é dividida em quatro eixos: 1) Identidade quilombola e
território: sujeito individual e coletivo ancestral; 2) Corpo-política, da luta pelo Direito
ao Território: organização social X conflitos histórico-sócio-ambientais; 3) Limites da
institucionalidade diante do racismo estrutural do Estado brasileiro; 4) Leitura de conjuntura e caráter pedagógico da luta quilombola da Ilha de Maré. Constitui-se, pois,
em uma potente reflexão crítica e política sobre os tensionamentos entre o racismo
estrutural, perpetrado inclusive pelo Estado brasileiro, e formas-outras de existência
conduzidas por povos afro-brasileiros.
Fechando a seção, seguimos com uma entrevista com outra liderança negra, desta
vez de Ouro Preto, em Minas Gerais. Dú Evangelista, engenheiro civil e líder do Movimento Outro Preto, foi entrevistado pessoalmente pelo arquiteto, urbanista, pesquisador do ¡DALE! e docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Rodrigo da
Cunha Nogueira. Ao longo de seu relato, Evangelista não só denuncia a colonialidade
histórica de Ouro Preto, que persiste até os dias de hoje na invisibilização, na marginalização e na segregação espacial da população afrodescendente, mas sobretudo
revela o quanto o patrimônio arquitetônico e urbano da região que é tombado pela
UNESCO como atribuído à colonização portuguesa é resultado de conhecimentos
tecnológicos, científicos e sociais trazidos pelas pessoas africanas escravizadas. Na
luta contra esse epistemicídio histórico, o ativismo do Movimento OuTro Preto mostra
uma outra Ouro Preto, de matriz africana, através da Mina Du Veloso, entre muitas
outras iniciativas que visam a desconstruir o racismo e ressignificar os conhecimentos advindos da herança africana nas áreas de engenharia, arquitetura, urbanismo e
organização do trabalho nos canteiros de obras, que têm sido apagados da história.
p. 14
Neste volume, a seção de “artigos” nos conduz por múltiplas narrativas, referenciais,
contextos e territórios que contemplam diversas corporeidades e espacialidades que
se expressa em lutas, heranças, contribuições simbólicas e culturais, constituindo
resistências ao racismo estrutural que nos atravessa de múltiplas formas.
No artigo A presença negra no interior paulista - Brasil, a arquiteta, urbanista e
pesquisadora Joana D’Arc de Oliveira e o graduando em arquitetura e urbanismo
Victor Menck, ambos do IAU/USP, nos levam a refletir sobre a presença negra nas
cidades do interior paulista. A partir de um referencial teórico interdisciplinar, traçam
um histórico da trajetória das populações negras nos municípios de São Carlos e
Americana, em São Paulo, resgatando e apresentando as alternativas e as formas
múltiplas que a população negra historicamente tem criado para se apropriar do
espaço urbano, concebido para lhes marginalizar. Com base em uma leitura sobre a
consolidação espacial de tais municípios, buscam desnudar, a partir da dimensão do
território, enfrentamentos sociais, políticos e econômicos, entre outros, que se espacializam e formam espaços de disputa. Como a autora e o autor nos mostram, através
da resistência, negras e negros têm ressignificado e africanizado suas trajetórias em
organizações familiares que se empenharam em preservar suas práticas culturais e
religiosas em seus espaços habitacionais. Desta forma, pela prática e pela oraldiade,
as matrizes culturais, ancestrais e contemporâneas são mantidas em variadas manifestações, também nos espaços privados dos quintais negros urbanos.
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino, professor da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e pesquisador do MALOCA/UNILA, em seu texto “‘Quem pode ser dono da
morada de deuses?’ Terra, terreno, terreiro”. O texto enriquece sobremaneira este
dossiê, ao discutir interseções e contribuições da diáspora africana que tensionam
dimensões que perpassam o direito, as práticas sociais e espaciais, as noções de patrimônio cultural, as existências e as cosmovisões que se espacializam em formas-outras,
diversas das constituídas hegemonicamente. Seu olhar sobre conflitos impetrados no
processo de tombamento da Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, na Bahia,
nos convida a refletir sobre a possibilidade de explorar outras compreensões, como
por exemplo a contaminação recíproca entre nomos (o mundo normativo do Estado)
e axé (o mundo normativo afroatlântico) que ocorrem no âmbito da corporeidade e da
existência de múltiplos territórios afrobrasileiros em constante luta por reconhecimento
e visibilização.
No artigo “Pontos riscados no chão: a presença da umbanda em Salvador, Bahia,
Mayara Mychella Sena Araújo, da Faculdade de Arquitetura da UFBA, e Nayara Cristina
Rosa Amorim, da pós-graduação em arquitetura e urbanismo desta mesma instituição, apresentam um levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento
em Salvador, na Bahia. Para isso, problematizam as diferentes inserções das autoras
no universo da Umbanda para se explicitar o amalgamento entre o olhar externo e
o olhar interno na compreensão desta religião de dimensões afrodiaspóricas, bem
p. 15
como de suas ramificações, com vistas a relacioná-las com a produção do espaço
urbano de Salvador. Ao longo do texto, as autoras dão especial atenção às lacunas
na produção acadêmica e realizam uma listagem de diversos terreiros, levantados
por meio de ferramentas on-line no momento do isolamento social em virtude da
pandemia de covid-19.
Discute questões raciais e urbanas a partir de expressões artísticas o artigo Novas
raízes: ontologias jamaicanas da negritude, da África ao gueto”, de autoria dos pesquisadores s Wayne Modest e Rivke Jaffe, sediados nos Países Baixos, e traduzido por
Carolina Maurity Frossard, professora brasileira da Universidade Livre de Amsterdã,
também dos Países Baixos. O autor e a autora discutem a negritude como questão
ontológica de fortes dimensões espaciais. Analisando a arte contemporânea e a música popular, argumentam que o local da negritude, como se imagina na Jamaica,
começou a se deslocar da África para o gueto. Wayne Modest e Rivke Jaffe explicam
que a Jamaica tem uma forte e longa consciência política negra, com movimentos
sociais, religiosos, políticos e, acrescentamos, artísticos que se voltam às questões
raciais. Modest e Jaffe apresentam brevemente as abordagens artísticas jamaicanas
nos períodos colonial e pós-colonial e a importância da África nesses trabalhos. A
partir da análise de exposições artísticas ocorridas nas últimas décadas, apontam que
artistas contemporâneos têm focado nos guetos jamaicanos, com abordagens que
discutem desigualdades através de uma lente interseccional que está atenta a classe,
gênero, sexualidade e espaço urbano. Também apontam que a música contemporânea dancehall tem recebido um interesse maior pelos guetos, o que tem relação
tanto com a desilusão com a política interna do país quanto com o intercâmbio com
a cultura afro-americana. Por fim, afirmam que esses aspectos como um novo tipo de
movimento e re-enraizamento da negritude jamaicana.
p. 16
Antonia dos Santos Garcia (in memoriam), professora, intelectual, ativista e pesquisadora do NEIM/UFBA, em seu necessário artigo crítico Cidade, relações de gênero e raça: Salvador, o direito à cidade e os movimentos sociais, conduz diversas
discussões convergentes às questões empreendidas neste dossiê. Aborda a capital
baiana, exemplar na formação de cidades brasileiras, na qual as desigualdades raciais
têm sido historicamente orientadas por múltiplos fatores e com desdobramentos
socioespaciais contundentes. Para tanto, Garcia resgata tanto dados de escolaridade,
com recorte de raça e gênero, quanto um olhar afrocentrado em termos de filosofias
e epistemologias, buscando tensionar a hegemonia da mulher única, que inviabilizou
a luta das mulheres negras das senzalas às favelas, refletindo sobre as contradições
urbanas e dos movimentos urbanos, históricos e contemporâneos, indissociáveis das
violências do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo. Assim, a partir da consolidação do feminismo negro e popular, a autora nos apresenta um estímulo à busca
de novos caminhos, novas epistemologias e novos paradigmas que compreendam
a pluralidade do social”.
Na sequência, temos a seção de “ensaios”, que se inicia com o potente e poético
trabalho visual Orixás: virações cotidianas, do antropólogo e pesquisador do MALOCA/
UNILA Maurício dos Santos. Suas potentes fotografias, com múltiplos retratos de
cotidianidades, nos conduzem por uma Salvador-Cidade Terreiro. As imagens provêm
de um trabalho de campo feito junto aos povos de terreiro na cidade, dos quais as
gentes, os territórios e os lugares traduzem a terreirização do Brasil nas lidas diárias
de improváveis orixás, nas palavras do autor. Seu ensaio tensiona, então, as narrativas
convencionais sobre cidades brasileiras, permitindo que, a partir da capital baiana, a
herança e a presença afro-brasileiras sejam evidenciadas.
O segundo ensaio chama-se Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra: cosmopercepções e epistemologias negras acerca e desde o Engenho Velho da Federação,
Salvador BA, do arquiteto e urbanista Luis Guilherme Cruz Pires, discute os laços
entre Brasil e África a partir de um bairro negro na capital baiana. É o resultado do
Trabalho Final de Graduação (TFG) na FAUFBA. O autor traz belas imagens que se
integram à narrativa sobre o Engenho Velho da Federação. A discussão se baseia na
tríade Terreiro Caminho Encruzilhada, adotada como dispositivo conceitual e analítico
para se debruçar sobre tal território afrodiaspórico. Essa tríade tem importância tanto
nas religiões de matriz africana, notadamente o candomblé, quanto na morfologia
urbana do bairro. A partir de uma imersão sensível nesse bairro negro, o autor revela
a importância da cultura negra na dinâmica local e nas práticas espaciais. Ele também
relata sua necessidade de renascer como arquiteto e urbanista, in-corporando valores
e práticas afrodiaspóricos e ancestrais para enxergar a cidade negra para além da
perspectiva eurocêntrica. Por fim, o ensaio evidencia a importância dos terreiros de
candomblé que, além de lugares de resistência, acolhimento e trocas, constituem a
alma da cidade negra.
Para este volume, escolhemos para a seção de “resenhas” a obra Arquiteturas da
ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no
Brasil, de autoria de Fábio Macêdo Velame. Em sua consistente leitura crítica, intitulada
“Travessias em Ponta de Areia: um mergulho profundo de poder ancestral enraizado
na arquitetura do Omo Ilê Agboulá, a ialorixá e mestranda da UNEB, Thiffany Odara
p. 17
Lima da Silva, recupera e traz aos leitores e leitoras as variadas contribuições tanto do
trabalho de pesquisa de Velame especificamente sobre o terreiro Omo Ilê Agboulá
indo além de sua dimensão física, mas apresentando estratégias de sobrevivência e
resistência, constituindo-se peça imprescindível em seu processo de tombamento,
quanto, em um espectro mais amplo, da discussão sobre a contribuição urbanística,
arquitetônica e histórica dos povos afro-brasileiros, negada e minorada pela atuação
do racismo e do epistemicídio. Nas palavras da autora, o livro é um bálsamo ancestral
para entabular os estudos afrodiaspóricos e africanos no Brasil.
Ainda são muitas as questões a serem abordadas e, inclusive, formuladas. Ainda há
muitas lutas a serem travadas e múltiplas são as camadas de colonialidade que nos
subjugam. Através deste volume, que trata da diáspora, desejamos a todas e a todos
que o contato e as reflexões a partir de suas contribuições nos motivem a avançar um
pouco mais no combate ao racismo que estrutura a sociedade e, consequentemente, se manifesta no campo de arquitetura e urbanismo. Esperamos que, a partir das
reflexões e das interseções resultantes dessa leitura, possamos percorrer e construir
outras abordagens teóricas, epistemológicas e metodológicas.
Notas
1
Cf.: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 30 jul. 2022.
Referências
CARNEIRO, S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado
em Educação) - Universidade de São Paulo,
2005.
EVARISTO, C. Olhos d`água. Rio de Janeiro:
Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2015.
p. 18
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São
Paulo: Ubu Editora, 2020.
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de
uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014.
QUIJANO, A. ¡Qué tal raza! Ecuador Debate,
n. 48, p. 141-151, 1999.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. in: LANDER, Edgardo
(org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:CLACSO, 2005,
p. 117-142.
VASSALLO, S.; CICALO, A. Por onde os africanos chegaram: o Cais do Valongo e a institucionalização da memória do tráfico negreiro
na região portuária do Rio de Janeiro. Horizontes Antropológicos, ano 21, n. 43, p.
239-271, 2015. 2022.
ZORZETTO, R. América, mosaico africano. Pesquisa FAPESP, 3 mar. 2020. Disponível em:
https://revistapesquisa.fapesp.br/america-mosaico-africano/. Acesso em: 30 jul. 2022.
p. 19
In Memoriam
Antonia dos
Santos Garcia:
teoria e práxis
1
feministas ao vivo e a cores
NEIM /UFBA
Figura 1: Antonia dos Santos Garcia Fonte: G1 Bahia, 2021
C
v.2 n.1
p. 20-33
2023
ISSN:
2965-4904
om certa surpresa e muita comoção, tomamos conhecimento do falecimento de nossa
companheira militante e pesquisadora Antonia
dos Santos Garcia, no dia 5 de dezembro de
2021. Este dia 5 ficou marcado para o Núcleo
de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), como um dos
mais difíceis e dolorosos dias deste já difícil e impensável
ano! Perdemos ANTONIA DOS SANTOS GARCIA, nossa
companheira de muitas lutas, pesquisadora associada ao
nosso Núcleo e um exemplo de superação, coragem e
dedicação à construção da justiça social em nosso país!
Onde tudo começa
Antonia Garcia nasceu em Cachoeira, Estado da Bahia, em 13 de junho de 1948
(dia de Santo Antônio), e conforme suas palavras:
“Minha ancestralidade negra deve-se provavelmente a grupos de escravizados e a descendência indígena de grupos étnicos que predominaram no
Recôncavo.
Fui filha de um carpinteiro e uma dona de casa.
Aos 15 anos, em 1963, durante o governo de João Goulart, participei do
treinamento realizado pelo Movimento de Educação de Base (MEB) para alfabetização de adultos pelo rádio. A sala de aula foi montada na sala de
visitas de nossa casa, com a contribuição da comunidade, e eu ministrava
o curso. Em abril de 1964, o rádio se calou e não sabíamos por quê. Por
esta experiência, acabei sendo professora no Grupo Escolar da Vila de
Belém, quando faltou professora e a Prefeitura não a substituiu”
Por volta de 1966 Antonia foi selecionada para fazer um curso de enfermagem,
como parte do trabalho de base da Juventude Agrária Católica, a JAC. Fez o curso de
parteira em Cachoeira e estágios subsequentes em Feira de Santana, sendo escolhida
para dar continuidade ao trabalho da JAC.
“Segui este caminho e tornei-me coordenadora nacional da JAC, e fui
aprendendo mais sobre as causas das desigualdades sociais (as raciais e
as de gênero não eram tratadas).
Participando da Coordenação Nacional da Ação Católica pela JAC participei de muitos eventos locais, regionais e nacionais, inclusive como
coordenadora, mas, em crise, a Ação Católica, e particularmente a JAC,
buscava formas mais eficientes de atingir o povo, pois considerava que
suas ações estavam excessivamente difusas, sem consolidar o processo organizativo de base. Assim, a saída pensada pela equipe foi realizar um
trabalho assistencial, perfeitamente compatível com a ação da Igreja, e
tornei-me parteira em Cabaceiras do Paraguaçu, onde durante dois anos
fizemos muitos partos nas condições precárias do lugar, com muito entusiasmo, muita utopia, achando que a esquerda no mundo inteiro conseguiria a sonhada revolução, embaladas pelo legado de 1968”.
p. 23
Teoria e práxis feministas:
muito mais que um slogan
No início dos anos 1970, Antonia veio para Salvador, acabando por fixar residência
no Subúrbio Ferroviário de Plataforma em 1977, onde desenvolveu um intenso trabalho
comunitário nesta antiga vila operária, iniciando por reunir as mulheres para lutar por
melhorias no bairro e fundando a Associação de Mulheres de Plataforma.
O trabalho de bairro acontecia não só em Plataforma e juntamente com outros
companheiros ligados a diferentes associações uniram-se e fundaram a Federação
das Associações de Bairros de Salvador (FABS). Dentre estes cita-se: Sr. Leonidio, da
Associação de Jaqueira do Carneiro; Sr. Nelson, da Associação Alto da Teresina; Antonio
Lazzarotto, da Associação Beira Mangue; Vera Lazarotto, da Associação Beira Mangue;
Tania Nogueira, da Associação Luís Anselmo; Claudio Primo, da Associação de Bom
Juá; Mário Nogueira, da Associação de Luís Anselmo; José Alves, da Associação Marechal Rondon (Zé Guarda); Jorge Pimentel, da Associação de Pero Vaz. Esta Federação
travou diversas lutas por melhorias na cidade, apoiando o trabalho de bairro. Motivada
por isso, a Associação de Mulheres converteu-se na Associação dos Moradores de
Plataforma (AMPLA), ampliando suas lutas e suas conquistas.
Ainda sob a Ditadura Militar, que, no entanto, vivia seus estertores e na ausência de
uma atividade político partidária ativa, as pessoas ficavam muito motivadas em atuar
junto à atividade política de movimento de bairros. Foi um período muito fecundo de
atividade política, com as pessoas de base participando ativamente. Havia um grupo
que acompanhava este trabalho e se reunia em uma casa da paróquia em Escada
(outro bairro do Subúrbio), à margem da Baía de Todos os Santos. Antonia e pessoas do
Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), Pe. Gaspar e Pe. Oliveira, acabaram fundando
a Associação de Cooperação Comunitária para Áreas Problemas de Salvador (ACCAP),
que captou projetos no exterior e apoiou os movimentos de bairro.
p. 24
Além da AMPLA e da FABS, instituições que ela ajudou a fundar, além de participar
de seus Colegiados por várias gestões (não havia “presidentes”), Antonia também
contribuiu ativamente com a Confederação Nacional das Associações de Moradores
(CONAM) como fundadora e diretora da Comissão de Saúde. Foi também fundadora
e diretora por vários anos do Centro da Mulher Suburbana (CEM), posteriormente de
Salvador e, por fim, Centro da Mulher Baiana.
Figura 2: Antonia Garcia (candidata à vereadora) com Lula (com adesivo de Pelegrino,
candidato a prefeito) e Zélia de Plataforma. Fonte: Acervo pessoal
O NEIM começou sua parceria com Antonia Garcia a partir da AMPLA, que estava
sob sua liderança no desenvolvimento do projeto de Criação do Centro da Mulher
Suburbana, que teve o apoio da Fundação Ford e resultou, dentre outras ações, na
publicação do livro “Creche Comunitária: Uma alternativa Popular”, organizado por
Ana Alice Costa (1991). Neste mesmo período, Antonia concluía o curso superior de
Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Logo depois concluiu o mestrado,
em 2001, seguindo-se o doutorado, no Rio de Janeiro, em 2006.
O movimento por creches públicas embalou os movimentos sociais de mulheres,
especialmente de bairro, onde atuavam mulheres pobres e negras, sendo muitas
arrimo de família. Em 1983 foi lançada a Campanha Unificada por Creches em manifestação coordenada pela FABS em Salvador, seguindo um movimento que ocorreu em
todo Brasil e levou à Constituinte estas reivindicações, tornando-se lei na Constituição
de 1988. Com efeito, o debate sobre a importância da creche na liberação das mulheres
e a responsabilização do Estado e da sociedade sobre a educação infantil tornou-se,
constitucionalmente, “Um Direito da Criança e um Dever do Estado”.
Uma longa parceria se desenvolveu desde então entre a equipe do NEIM e Antonia, culminando com sua entrada definitiva no nosso núcleo como pesquisadora
associada, tendo ela também desenvolvido estágio pós-doutoral no Programa de
p. 25
Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo
(PPGNEIM/UFBA), em 2010. Também ministrou disciplinas e orientou trabalhos de
conclusão de curso de mestrado, participando de várias bancas de mestrado em
Salvador, Rio de Janeiro e outros estados.
Suas lutas nos bairros levaram-na a uma atuação político-partidária, tendo sido uma
das fundadoras do Partido dos Trabalhadores (PT) na Bahia, tornando-se Secretária
das Mulheres de Salvador e destacando-se como primeira mulher negra a ocupar a
presidência do partido, também em Salvador.
Ainda pelo Partido dos Trabalhadores, candidatou-se à Assembleia Legislativa
da Bahia e, posteriormente, à Câmara de Vereadores de Salvador, não chegando a
eleger-se, mas concorrendo, por certo, com um dos mais pertinentes slogans de
campanha: “ANTONIA Garcia, mulher de raça!”
Ela escreve:
“Em 2007, aceitei um convite para ser subsecretária da reparação – SEMUR
– em Salvador. Estava louca para voltar do Rio de Janeiro, onde fiquei com
meu marido por seis anos (quando fiz o doutorado na UFRJ). Voltei com tanto
entusiasmo, feliz por retomar minha militância, mas logo vieram os problemas de extrema competição no interior da SEMUR.”
Se foi difícil conquistar o espaço no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
onde fez o doutorado, esse outro lado da discriminação foi muito duro para
Antonia. No entanto, ela continuou sua trajetória:
“Fui secretária até abril de 2008, quando o PT resolveu sair do governo. Durante este período fiz o tratamento do câncer com radioterapia e, como tomei
anticoagulante durante seis meses, muitas vezes nas reuniões, inclusive com
o prefeito, havia sangramento que me obrigava a sair (das reuniões).”
Agregando sua militância a práxis acadêmica
p. 26
Aos 36 anos e com três filhos, Antonia Garcia entrou no curso de Ciências Sociais
na UFBA e já na monografia iniciava o estudo científico da sua práxis, sob a orientação
da professora Inaiá Carvalho, o que resultou na publicação: “Rompendo as amarras: o
movimento de mulheres na periferia de Salvador” (GARCIA, PACHECO e LOPES, 1992).
“Como militante dos movimentos urbanos, especialmente do movimento de
mulheres populares, busquei na academia compreender a cidade, palco das
nossas lutas. Verifiquei que a produção marxista sobre a cidade não deu
conta de outras dimensões da opressão social, tais como gênero e raça.
Contudo, os movimentos sociais que emergiram no maio de 1968 produziram uma série de questões novas dentro e fora do marxismo, levando a
pensar sobre determinadas dimensões do conflito capital e trabalho que
não estavam apenas nas relações de produção. Estes avanços, contudo, não
atingiram os estudos urbanos e, ao fazer o mestrado e doutorado, tentei
compreender outras dimensões da opressão mesmo dentro dos movimentos
feministas e antirracistas, que também não compreenderam e/ou priorizaram a dimensão espacial das desigualdades que os movimentos sociais
urbanos, pela própria natureza do seu ativismo, colocavam.
Como ativista desses movimentos, tinha enormes dificuldades de compreender a ‘mulher universal’, não encontrada nos movimentos de bairro, cuja
base social e racial negra era subsumida na categoria mulher e, mais
recentemente, gênero.”
Este debate aparece então na sua dissertação de mestrado em Geografia na UFBA:
“As Mulheres da Cidade d’Oxum: Relações de Gênero, Raça e Classe: e a Organização
Espacial do Movimento de Bairro de Salvador”, publicado pela EDUFBA, Salvador,
em 2006, e na sua tese de doutorado no IPPUR/UFRJ: “Desigualdades Raciais e
Segregação Urbana em Antigas Capitais: Salvador Cidade d’Oxum e Rio de Janeiro,
Cidade d’Ogum”, publicado pela Garamond, Rio de Janeiro, em 2009, com apoio da
FAPERJ por ter conquistado a “Bolsa Nota 10”.
Neste livro, Antonia Garcia trabalhou os microdados do Censo de 2000, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com recorte de raça, e dados georreferenciados para mostrar, de forma insofismável, como o espaço das cidades modernas
e seus serviços repetem a divisão entre casa grande e senzala, entre ricos e pobres,
entre brancos e negros.
Trabalho inovador, no IPPUR:
“As dificuldades de tratar da questão racial e de gênero foram grandes,
mas meu orientador, Luiz Cesar Ribeiro, aceitou minha proposta de tese
sobre as desigualdades raciais, com a limitação da pesquisa às categorias classe, raça e espaço. Segundo ele, acrescentar o recorte de gênero
tornaria a análise demasiadamente complexa. Vários estudantes de pós-graduação no Brasil usaram este livro como inspiração e referência.”
p. 27
Antonia participou de muitas bancas, mesmo não sendo professora universitária.
Expressivo exemplo é este e-mail recebido de um mestrando do IPPUR: “... pude
descobrir seu livro na biblioteca. Uau! Que encontro! Seu livro me deu muita força para
os enfrentamentos que tive no IPPUR em virtude da racialização da minha pesquisa.”
A contribuição teórica
a partir das principais publicações
Em sua tese, Antonia analisa a distribuição espacial dos indivíduos e a distribuição
das residências nas duas cidades, Rio de Janeiro e Salvador, demonstrando que as
desigualdades estão muito vinculadas à forma pela qual o racismo se introduziu e se
desenvolveu na sociedade brasileira. A análise de indicadores de ocupação, educação,
renda, bens urbanos e serviços de consumo coletivos evidenciam como a metrópole
moderna recria a hierarquia racial, ou seja, a categorização racial é também um critério
hieraquizador na sociedade. A autora busca, ainda, desvendar como o “racismo à
brasileira” tem perpetuado as desigualdades raciais mediante a retórica anti-racialista,
que reforça a naturalização de tais disparidades, e as práticas racistas continuam sendo
tratadas como um não problema no país, embora o nosso cotidiano seja repleto de
classificações raciais.
Contribuiu com mais de uma dezena de publicações em capítulos de livros e
artigos como: Contradições na cidade negra: Relações de gênero, raça, classe, desigualdades e territorialidade, em Saberes em Perspectiva (2012), cujo resumo pode
dar a dimensão de sua acuidade no problema:
p. 28
Salvador, antiga capital colonial e contemporaneamente terceira maior metrópole brasileira, é a mais
emblemática cidade do processo histórico brasileiro
por sua densidade demográfica e cultural negras. Neste
artigo fazemos uma análise teórica e empírica sobre
as desigualdades socioeconômicas, sociorraciais por
cor/raça e sexo para compreender as relações raciais
e de gênero nos espaços concretos e simbólicos que
marcaram nossa forma de organização do espaço. Os
dados estatísticos e cartográficos foram baseados no
Censo do IBGE 2000 e analisados socioespacialmente.
Na pesquisa qualitativa, utilizamos entrevistas com
diversos sujeitos sociais da cidade para analisar a
percepção das pessoas sobre a dinâmica social-urba-
na, sobre racismo, sexismo, discriminação, etc. Assim, articulamos classe, gênero, raça e espaço como
categorias centrais de análise nas suas interseccionalidades para compreender como o sexismo, racismo
e classismo, ao hierarquizar os indivíduos segundo
atributos físicos em superiores e inferiores, são
determinantes na formação sócio-histórica no Brasil.
Busca-se compreender esses fenômenos como estruturantes das desigualdades socioeconômicas e sociorraciais
e culturais como se expressam no espaço urbano, particularmente as territorialidades negras e femininas
e seus múltiplos significados, para pensar os processos coletivos, os processos libertários, o Direito
à Cidade nas perspectivas feminista, anti-racista e
anti-classista (GARCIA, 2012).
Em Desigualdades Raciais e Segregação Urbana Contemporâneas, nos anais Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional (ENANPUR), realizado em maio de 2007, ela faz a seguinte discussão:
Neste artigo fazemos uma análise das desigualdades
raciais e a segregação urbanas em Salvador e Rio de
Janeiro utilizando os microdados do Censo do IBGE de
2000 e recorte territorial por AED – Área de Expansão
Demográfica. Partindo da tentativa de compreender a
forma particular pela qual o racismo se introduziu e se
desenvolveu na sociedade estudada e as desigualdades
raciais e segregação residencial, visando compreender
a organização sócio-territorial em diferentes abordagens. Analisam-se ainda as mudanças demográficas,
socioeconômicas, sociais e simbólicas e o processo
de branqueamento ligados aos incentivos à imigração
europeia e seus significados na cidade contemporânea,
com o estudo da distribuição espacial da população
urbana por cor ou raça, através de mapas temáticos
objetivando a repartição de diferentes indicadores no
território das cidades. Tomando a variável cor ou raça
como central para construção dos indicadores de bens
urbanos e serviços de consumo coletivos verificamos
como a metrópole moderna recria a hierarquia racial,
examinando a distribuição espacial dos indivíduos e
a distribuição das residências para compreender como
a estratificação social e racial dos indivíduos se
vincula com os locais de moradias e as oportunidades
sociais a que dão acesso (GARCIA, 2007).
p. 29
Este outro artigo recupera os seus estudos anteriores acrescentando novos conhecimentos: Relações de Gênero, Raça, Classe e Desigualdades Sócioocupacionais
em Salvador, e foi produzido para o Congresso Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, realizado em Florianópolis, de 23 a 26 de agosto de 2010.
Este artigo tem como objetivo analisar as desigualdades raciais, espaciais e de gênero em Salvador com
a variável ocupação, a partir da interseccionalidade
de gênero, raça e espaço. Empiricamente analisamos
as desigualdades sociorraciais urbanas e de gênero
na histórica divisão racial do espaço brasileiro,
através do Censo IBGE 2000 e divisão territorial por
Área de Expansão Demográfica do mesmo instituto. É
central, em nossa metodologia, entender os fatores
condicionantes da situação social dos grupos étnicos
e femininos que coexistem em Salvador, bem como as
relações que mantêm entre si através da estratificação social inscrita no espaço urbano. Compreender as
circunstâncias históricas particulares que as engendraram e fazem com que “não sejam duas realidades
independentes, mas apenas dois ângulos pelos quais
pode ser observada a configuração única e total das
relações de classe e raça no Brasil” (PINTO, 1998, p.
87). Neste artigo entendemos classe como: “um conjunto de relações sociais que define uma posição objetiva
na sociedade; aquelas relações e essas posições não
são fixas e imutáveis, pois mudam com a transformação
histórica da organização social da produção (PINTO,
1998, p. 90) (GARCIA, 2010).
Neste último artigo publicado em revista, observamos que Antonia Garcia ampliava
sua observação para outros espaços: Espaço, gênero e raça: os movimentos sociais e
os desafios contemporâneos, publicado na Revista da ABPN, em 2020:
p. 30
Neste artigo vamos refletir sobre as origens e histórias comuns da América Latina, Caribe e África considerando-se que o sistema colonial escravista moldou nossas sociedades e cidades, e o Brasil nesse
contexto. A construção eurocêntrica das sociedades
e cidades no chamado Novo Mundo, tem seu tripé no
colonialismo-escravismo, patriarcalismo-racismo e no
mercantilismo-capitalismo, que também produziu modelos explicativos que alimentam até hoje uma perversa
engrenagem teórico-ideológica-política que favorece
a reprodução de desigualdades e a perpetuação no po-
Figura 3: Bloco das Zeferinas (Carnaval de 2020). Da esquerda para a direita: Eliana Santana,
Joseane Cruz, Claudia Santos, Antonia Garcia, Bárbara Alves e Patricia. Fonte: acervo pessoal
p. 31
Figura 4: Antonia Garcia, durante a Mudança do Garcia, na Folia Feminista, com cartaz
reivindicando a Secretaria Estadual dos Direitos da Mulher. De pé, Carol. Sentada,
Eulalia, do Neim. (s.d.) Fonte: acervo pessoal
der dos grupos brancos hegemônicos. Enfrentar a metodologia da omissão na perspectiva da raça, gênero,
classe e espaço nesses continentes é crucial para
projetos de emancipação humana e superação do sistema
de opressão universal (GARCIA, 2020).
A vida é também uma festa
Como uma boa militante, Antonia Garcia participava com entusiasmo das atividades
festivas promovidas pelas entidades, pelo partido e pela universidade. Com apoio
do NEIM, e reeditando uma antiga tradição do bairro operário descoberta por Cecília
Sardenberg, promoveu com o CEM a saída do “Bloco do Bacalhau” (que as operárias
da antiga fábrica faziam após o trabalho) por anos durante o Carnaval em Plataforma,
o qual se tornou depois o “Bloco das Zeferinas”, em homenagem a Maria Zeferina
Baldaia, chefe do Quilombo do Urubu, também naquela região.
A vida de Antonia foi um grito contra a desigualdade. Ela usou todas as suas forças
para lutar contra essas desigualdades de todas as maneiras e conseguiu sensibilizar
mentes e corações de muitas e muitas pessoas. Este é o seu principal legado e assim
será lembrada a nossa mulher de raça.
Quanto à Universidade, passou a fazer trabalho remoto por força da pandemia de
Covid-19. Em 2020 e 2021 era ela quem nos guiava nas análises de conjuntura nas
reuniões mensais do NEIM, quem nos elucidava no planejamento de nossas ações,
sobretudo em relação aos movimentos sociais em Salvador.
De fato, perderam hoje, junto a nós, os movimentos de mulheres, o movimento
negro, os movimentos de bairros de Salvador, o Partido dos Trabalhadores e a esquerda brasileira, como um todo, essa nossa batalhadora das mais atuantes, das mais
dedicadas e das mais lúcidas, cuja ausência se fará sentir por todas e todos nós que a
tínhamos como amiga, parceira e companheira – ainda mais neste momento quando
temos pela frente grandes batalhas pela reconquista e reconstrução do nosso Brasil.
Ficam aqui os nossos mais profundos sentimentos para com seus familiares, seu
companheiro Agenor, seus filhos, os netos lindos dos quais ela tanto se orgulhava.
p. 32
Antonia – a Tonha – continuará a ser uma voz sempre presente entre nós!
Notas
1
Este texto foi construído usando como base
“Antonia dos Santos Garcia, uma breve biografia”, escrito pela família e distribuído
pelas redes sociais. Os trechos em itálico
são citações escritas por ela, segundo o documento. Utilizamos também arquivos do NEIM,
dentre outros.
Referências
CLAUDIA, A.; LÓPEZ, C.; GARCIA, A. Rompiendo
las amarras: el movimento de mujeres em la
periferia de Salvador. Cuadernos da África e
América Latina, Madrid, n. 9, 1992.
COSTA, A. A. A. (org.). Creche comunitária:
uma alternativa popular. Salvador: NEIM/
UFBA; EGBA; SEC, 1991.
GARCIA, A. dos S. Mulheres da cidade d’
Oxum: relações de gênero, raça e classe e
organização espacial do movimento de bairro
em Salvador. Salvador, BA: EDUFBA, 2006.
GARCIA, A. dos S. desigualdades raciais e
segregação urbana contemporâneas: Salvador,
Cidade d’Oxum e Rio de Janeiro, Cidade de
Ogum. In: XII Encontro da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional - XII ENANPUR, Belém, 2007.
Anais ENANPUR, Belém, v. 12, n. 1, 2007.
Disponível em: <http://anais.anpur.org.br/
index.php/anaisenanpur/article/view/1193>.
Acesso em: 05 jul. 2022.
ARQUIVO_ArtigoCongressoCienciasSociais.pdf>.
Acesso em: 05 jul. 2022.
GARCIA, A. dos S. Contradições na cidade
negra: Relações de gênero, raça, classe,
desigualdades e territorialidade. Saberes
em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 33-51, 2012.
GARCIA, A. dos S. Espaço, gênero e raça:
os movimentos sociais e os desafios contemporâneos. Revista da ABPN, v. 12, n. 34,
p.32-53, 2020. Disponível em: <https://www.
abpnrevista.org.br/index.php/site/article/
view/1131>. Acesso em: 05 jul. 2022.
GARCIA, A. dos S. Desigualdades raciais e
segregação urbana em antigas capitais: Salvador, cidade d’Oxum, Rio de Janeiro, cidade
de Ogum. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009.
GARCIA, A. dos S. Relações de Gênero, Raça,
Classe e Desigualdades Sócioocupacionais em
Salvador. In: Fazendo Gênero 9 - Diásporas,
Diversidades, Deslocamentos, Florianópolis,
2010. Anais… Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em: <http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1275930508_
p. 33
Entrevistas
Arquiteturas
e cidades no
Atlântico Negro,
raízes africanas
e (re)invenções
na diáspora
Entrevista
com Fábio Macêdo Velame
Quem entrevista:
Céline Veríssimo
DAMG/UPT, PPGPPD, CAU e MALOCA / UNILA, ¡DALE! / UFBA
João Soares Pena
¡DALE! / UFBA, UNEB
Murad Jorge Mussi Vaz
DEAAU / UTFPR, ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA
Fábio Velame
Fábio Macêdo Velame é um dos nomes mais expoentes no Brasil quando se trata
de arquiteturas afro-brasileiras. Ele fez sua formação da graduação ao doutorado na
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde é professor
desde 2008. Além de sua atuação como docente, ele está à frente da Superintendência de Meio Ambiente e Infraestrutura (SUMAI), órgão responsável por obras de
manutenção e conservação do ambiente edificado da instituição.
Desde a graduação Fábio Macêdo Velame tem trabalhado com questões etnico-raciais, centrando seus esforços na construção de uma trajetória preocupada
com a valorização da herança africana e na cultura afrodiaspórica materializadas,
por exemplo, nos terreiros de candomblé. Tendo enfrentado dificuldade para tratar
de questões étnico-raciais em arquitetura em uma época em que isso não era, ainda,
um grande debate, hoje ele é uma referência na academia, orientando pesquisas que
têm contribuído para o avanço dos campos da arquitetura e do urbanismo.
Nesta entrevista, Fábio Macêdo Velame nos conta sobre sua trajetória acadêmica
e profissional, o porquê de ter escolhido se dedicar às questões étnico-raciais em
arquitetura e urbanismo e revela quem são suas referências. Ele comenta sobre os
projetos que tem desenvolvido na UFBA, as parcerias com universidades do continente
africano e aponta caminhos para uma descolonização da arquitetura e do urbanismo.
p. 39
Você é um dos poucos docentes negros da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia e, pelas questões que vem abordando, tem
dado uma contribuição fundamental ao campo. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional, sobre seu alinhamento teórico, sobre como
e a partir de que perspectivas você fundamenta
a sua atuação.
Minhas trajetórias acadêmicas e profissionais se entrelaçaram, alimentadas pela minha militância negra no estado da Bahia. Formei-me em Arquitetura e Urbanismo
pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2003, mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da UFBA com pesquisas sobre arquiteturas
de terreiros de Candomblé e suas relações com a cidade. Construí uma carreira profissional, como arquiteto
urbanista, voltada para apoio e ações em comunidades
negras em Salvador e no estado da Bahia. Entre 2006
e 2008, integrei a equipe do convênio entre o Centro
de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA)
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a
Fundação Cultural Palmares (FCP) referente ao projeto
de reconhecimento do patrimônio cultural material e
imaterial afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares,
de levantamentos históricos, antropológicos e arquitetônicos de templos religiosos de matrizes africanas na
Bahia, com o objetivo de viabilizar seus processos de
tombamento junto ao IPHAN.
v.2 n.1
p. 36-57
2023
ISSN:
2965-4904
Entre 2007 e 2008, participei do projeto de Mapea1
mento dos Terreiros de Candomblé de Salvador, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAO) da
UFBA, com o objetivo de viabilizar a regularização fundiária e criar um banco de dados para implementação de
políticas públicas. Esse trabalho teve continuidade em
2009 na elaboração e planejamento dos Mapeamentos
dos Terreiros de Candomblé do Recôncavo Baiano e Baixo Sul. Em 2010, realizamos o
acompanhamento de projetos e obras de 53 templos religiosos de matrizes africanas
de várias nações, através do convênio entre Associação Cultural de Preservação do
Patrimônio Bantu (ACBANTU), Superintendência de Construções Administrativas do
Estado da Bahia (SUCAB) e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da
Bahia (SEPROMI); a Cartografia Étnico-Social da Rede de Comunidades Quilombolas de
Laje dos Negros do Sertão Baiano e a Cartografia Étnico-Social de Templos Religiosos
de Matrizes Africanas da Bahia através da Secretaria de Combate a Pobreza e Desenvolvimento do Estado da Bahia ( SEDES), com objetivo de construir bancos de dados
para projetos de habitação e equipamentos sociais de combate a pobreza no estado.
Em 2011, realizamos o inventário arquitetônico dos terreiros de Candomblé do
Recôncavo Baiano nos municípios de Cachoeira e de São Félix pela Fundação Pedro
Calmon, com o objetivo de viabilizar a regularização fundiária, registros e tombamentos
pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC). Entre 2012
e 2013, elaboramos as Cartografias Étnico-Sociais das comunidades quilombolas de
Maragojipe e Cachoeira através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre
o Ministério Público Federal (MPF), a FCP e o IPHAN como contrapartida dos impactos
do empreendimento do Polo Naval em São Roque do Paraguaçu, o qual teve como
objetivo instruir os processos de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação
Territorial (RTID) para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
para titulação das terras, reconhecimento de patrimônios culturais afro-brasileiros
e produção de material didático em atendimento à Lei n° 10.639/2003 - que torna
obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira -, o qual foi distribuído nas escolas municipais e estaduais de todo o Recôncavo Baiano. Atuamos ainda
no desenvolvimento de projetos arquitetônicos para comunidades de terreiros e de
quilombos no estado.
Em 2008, ingressei como professor permanente da Faculdade de Arquitetura
da UFBA (FAUFBA) e, a partir dessas experiências profissionais na militância negra,
começamos a construir, a partir de projetos de extensão, Atividades Curriculares em
Comunidades e Sociedade (ACCS), cursos, disciplinas e pesquisas no campo das
‘’relações étnico-raciais, estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos’’ na área
de Arquitetura e Urbanismo no Brasil, uma ação conjunta e pioneira na UFBA frente
ao cenário nacional. Em 2013, começamos de forma institucionalizada a militância
negra dentro do currículo e do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA: realizamos
o 1ª Curso de Arquitetura Afro-brasileira abordando as arquiteturas dos quilombos,
p. 41
terreiros de candomblé, blocos afro, afoxés, maracatus e congadas; realizamos uma
sequência de ACCS com o título ‘’Arquiteturas do Quilombo Salamina Putumuju’’; criamos e institucionalizamos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
(CNPq), em 2014, o grupo de pesquisa EtniCidades: grupo de estudos étnico-raciais
em arquitetura e urbanismo, sediado na FAUFBA. O objetivo do EtniCidades consiste
no desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão voltados para as arquiteturas
afro-brasileiras; cidades africanas: arquiteturas e urbanismo em África; diáspora africana
no Atlântico negro: cidades e arquiteturas afrodiaspóricas nas Américas; relações
étnico-raciais e arquitetura, urbanismo e cidade; e racismo e cidade: segregação
étnico-racial, violência institucional e resistências urbanas.
A partir da criação do grupo EtniCidades, criamos a primeira disciplina optativa oficial
no currículo de um curso de Arquitetura e Urbanismo no Brasil voltada para as questões
étnico-raciais: Arquiteturas Afro-brasileiras: discursos, representações e projetos. Como
professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
(PPGAU/UFBA), a partir de 2016 criei as disciplinas Relações Étnico-Raciais em Arquitetura, Urbanismo e Cidade; Cidades Africanas: Arquitetura e Urbanismo Contemporâneo
em África; e Diáspora Negra e Cidade: Arquiteturas Afrodiaspóricas entre Áfricas e
Américas. Trouxemos em 2020 o professor Henrique Cunha como professor visitante
e criamos as disciplinas ‘’Bairros Negros: a forma social negra no Brasil’’ e ‘’Urbanismo
Africano: 6000 anos dos povos africanos construindo cidades’’. A partir de 2015, anualmente, realizamos o Seminário Salvador e Suas Cores, que já em sua 8ª edição e vem
problematizando a produção da cidade, arquitetura e urbanismo no Brasil a partir do
negro, suas relações com a diáspora negra no mundo atlântico e, principalmente, com
o continente africano, com a vinda e participação de professores de diversas áreas que
problematizam as cidades em África, e arquitetos e urbanistas africanos, vieram professores e pesquisadores de Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Nigéria,
e Benin. Assim, organizamos e participamos de eventos de Arquitetura e Urbanismo
na África como o Fórum Internacional e Arquitectura de Angola, junto ao Centro de
Estudos e Investigação Científica de Arquitectura (CEICA), da Universidade Lusíada de
Angola (ULA), a convite da Arquiteta e Urbanista Ângela Mingas.
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Recentemente, entre 2019 e 2021 realizamos seminários abordando, ainda, arquiteturas indígenas, acampamentos ciganos, capoeira e cidade, branquitude e cidade,
e mulheres negras e cidades afrodiaspóricas. Estabelecemos também convênios
para o desenvolvimento de projetos e obras de restauro em terreiros de candomblé
tombados como patrimônio cultural pelo IPHAN e junto à SEPROMI para a promoção
da igualdade étnico-racial, combate ao racismo e de defesa dos direitos dos povos
tradicionais. Em 2020 realizamos uma missão à África pelo programa CAPES PRINT
da UFBA junto com universidades públicas da Nigéria com pesquisa sobre arquitetura
e cidades históricas desse país, tais como Oyo, Ilê Ifé, Ibadan, Oxobô e Ejibo. Nessa
missão organizamos a 1ª Conferência Brasil-África e África-Brasil: compartilhando
entendimentos sobre a diáspora negra no Novo Mundo, em Lagos, Nigéria, junto ao
Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Lagos (LASUCAS).
Ainda fruto dessa missão construímos convênios de cooperação acadêmica, científica e cultural com a Universidade de Ajayi Crowther, em Oyo, Universidade de Lagos
Akoka, Universidade Estadual de Lagos e Palácio Real do Afin de Oyo, que tem como
objetivos: colaboração e apoio técnico, acadêmico e científico para pesquisa do patrimônio cultural da cidade de Oy, no que tange ao conjunto do seu patrimônio material
e imaterial, visando à instrumentalização dos processos de tombamento nacional
da cidade de Oyo para o Ministério da Informação e da Cultura da Nigéria e como
Patrimônio da Humanidade para a UNESCO; intercâmbio de estudantes de cursos de
graduação e de pós-graduação; colaboração entre professores e pesquisadores no
que concerne ao desenvolvimento de projetos de extensão e de pesquisa; promoção
de eventos científicos; orientação e coorientação de dissertações de dissertações de
mestrado e teses de doutorado; participação em bancas examinadoras; e permuta
de material bibliográfico.
Atualmente, coordeno a área de arquitetura e urbanismo da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), atuo como pesquisador do CEAO/UFBA, sou,
membro da Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABEA) e integro o grupo
de pesquisa Patrimônio e Identidades: pesquisa multidisciplinar em relações étnico-raciais e estudos africanos do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em
Estudos Étnicos e Africanos (POSAFRO) da UFBA. Como líder, no grupo EtniCidades
desenvolvemos pesquisas com orientação de iniciação cientifica e orientações de
especializações, mestrados e doutorados com recortes nas relações étnico-raciais,
estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos, além de ações extensionistas
que articulam as comunidades negras com órgãos públicos, como os tombamentos
e registros de terreiros, festividades e territórios negros no IPHAN, IPAC e Fundação
Gregório de Matos (FGM), projetos de reformas de terreiros de candomblé, projetos
de habitações em comunidades quilombolas, institucionalização de territórios negros,
como o Parque em Rede Pedra de Xangô (SILVA, 2019). Meu caminho, Odú, ocorreu
a partir da minha militância negra, que condicionou a minha carreira profissional e
traçou a minha trajetória acadêmica.
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Esses trabalhos foram e vêm sendo desenvolvidos buscando rupturas, ampliações
e diálogos epistemológicos afrocentrados, afrorreferenciados e afrodiaspóricos a
partir das teorias do Pan-Africanismo (William Du Bois, Booker T. Washington, Marcus
Garvey, Kwame Nkrumah, Frantz Fanon), do Movimento da Negritude (Aimé Césaire,
Léopold Sédar Senghor, Léon-Gotran Damas, René Maran, Birago Diop), do Afrofuturismo (Jean-Michel Basquiat, Janelle Monáe, Lu Ain-Zaila, Fábio Kabral, Octavia E.
Butler), do Afrocentrismo (Malefi Kete Asante, Ama Mazana, Reiland Rabaka, Mark
Christian, Elisa Larkin Nascimento), da Filosofia Africana Contemporânea (Cheik Anta
Diop, Abel Kouvouama, Achille Mbembe, Amadou Hampaté Bá, Banza Mulundwe,
Bibi Bakare-YuSuf, Dedier Malherbe, Emanuel Chukwudi Eze, Gerson Machedo, Odera Oruka, Jean-Godefroy Bidima, Joseph Omeregbe, Kwane Gyeke, Kwane Wiredu,
Marie Paulino Eboh, Marimba Ani, Mogobe Ramose, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, Reiland
Rabaka), e dos Afro-Brasileiros que se debruçaram sobre o racismo, a diáspora negra
e a produção sócio-cultural do povo negro no Brasil (Manoel Querino, Edson Carneiro,
Abdias do Nascimento, Clovis Moura, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Mestre Didi,
Julio Braga, Adrelino Campos, ANTONIA Garcia, Vilson Caetano). Mas, além dessas
vertentes teóricas e pensamentos afrorreferenciados, nos debruçamos nas bibliotecas
de carne, alma e coração da população negra presente nos quilombos, terreiros de
candomblé, maracatus, blocos afro, afoxés, samba de roda, rodas de capoeira, congadas, marujadas, reisados e folguedos a partir de suas cosmo-percepções, éticas,
valores e estéticas.
A discussão sobre as implicações das dinâmicas raciais e do racismo na
produção da cidade é recente no campo da arquitetura e do urbanismo.
Você fez sua graduação em arquitetura e urbanismo entre fins dos anos
1990 e começo dos anos 2000. Seu trabalho de conclusão de curso foi “Liberdade: a Salvador negra”. Como era a discussão sobre raça na Faculdade
de Arquitetura da UFBA e em outras escolas do Brasil nesse período?
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Naquela época as discussões étnico-raciais tanto na FAUFBA como em outras
escolas de arquitetura do Brasil eram inexistentes. Inclusive, foi uma grande dificuldade
conseguir um professor que orientasse esse trabalho. Depois de muitas tentativas e
conversas com vários professores, tive como orientadora a professora Naia Alban, cuja
sensibilidade e visão da diversidade cultural baiana colaborou de forma fundamental
para o desenvolvimento do trabalho. Essa inexistência era evidente não só nos currículos dos cursos, eventos, pesquisas e projetos de extensão em andamento, mas
também nas programações dos Encontros Nacionais de Estudantes de Arquitetura
(ENEAs) da época. Isso decorreu da baixa representatividade e presença de estudantes
e professores negros nas escolas de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Falamos de
uma época antes das cotas raciais de acesso às universidades públicas no Brasil e da
implementação das ações afirmativas em escala ampliada na sociedade brasileira.
Quando adentrei a universidade, entravam cerca de 120 alunos por ano. Em minha
turma eram dois negros: eu e mais um. As universidades eram o lugar da elite brasileira.
Cerca de 15 anos após as cotas raciais, temos uma diversidade social e étnico-racial
grande, com alunos quilombolas, indígenas, ciganos, imigrantes, LGBTQI+, negros e
negras nas universidades. Com a ampliação das ações afirmativas de cotas raciais para
o ingresso na pós-graduação e em seguida para professores e técnicos administrativos, a cara e a natureza da universidade pública brasileira mudou substancialmente,
enriquecendo-a com diversidade e produzindo transformações estruturais nos cursos,
em disciplinas, currículos, pesquisas e extensões através de uma demanda e pressão
que vêm de estudantes, técnicos e professores negros.
No texto “Que tal raça!”, Aníbal Quijano (2000), define a raça como o instrumento de dominação mais eficaz inventado nos últimos 500 anos. Neste
sentido, o giro decolonial compreende raça como um instrumento de dominação que é forjado com a invasão das Américas, centrando-se, sobretudo, nos povos originários latino americanos, mas que dialoga pouco com
a diáspora africana. De alguma forma a teoria decolonial atravessa seu
trabalho? Quais são as possibilidades de interação e contribuição entre
os estudos afrobrasileiros e o giro decolonial?
A teoria decolonial atravessa o meu trabalho a partir dos pensadores afrodiaspóricos dos anos de 1950, 1960 e 1970, com obras e autores negros importantes
que problematizaram, anteriormente e pioneiramente, a relação entre colonialidade,
racismo e capitalismo como ‘’Discurso sobre o Colonialismo’’ de Aimé Césaire ([1955]
2020), da Martinica; “A África deve unir-se”, ‘’A Luta de Classes em África’’, “Conscientismo: Filosofia e Ideologia para a Descolonização’ e ‘’Neocolonialismo: o último estágio
do Imperialismo’’, de Kwame Nkrumah (1977a; 1977b; 1964; 1967), de Gana; e ‘’Peles
Negras, Máscaras Brancas’’ e ‘’Os Condenados da Terra’’ de Franz Fanon (1968; 2008),
de Martinica e Argélia. Esses são pensadores e obras que desvelaram o projeto da
modernidade, calcada no colonialismo e no racismo a partir da violência, da desumanização, da objetificação e da subalternização das populações negras na África e
na diáspora negra no Atlântico, bem como suas implicações econômicas, culturais,
sociais e psicológicas no espaço do mundo colonial.
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Ao se debruçar sobre a produção do conhecimento arquitetônico e urbanístico, como você considera que o conceito de raça tem sido mobilizado?
Quais são os desafios para o enfrentamento da hegemonia moderno-colonial
na arquitetura e no urbanismo brasileiros?
O conceito de raça começou a ser problematizado na arquitetura e urbanismo
muito recentemente. Somente na última década ela tomou um vulto e importância
pelo acesso de alunos e professores negros às universidades, pela implementação
de políticas públicas voltadas para os povos e comunidades tradicionais, que demandaram a atuação de arquitetos e urbanistas em projetos de habitação, equipamentos
sociais de educação e saúde e em saneamento básico, assim como a realização de
eventos, extensões e o surgimento, em escala e quantidade, de pesquisas nas relações étnico-raciais no Brasil tanto em arquitetura, urbanismo, planejamento urbano,
patrimônio e cidade. A FAUFBA e o PPGAU/UFBA tornaram-se o epicentro desse
processo no país com grupos de pesquisa e extensão que já labutam nesse campo
há quase uma década.
Os maiores desafios na problematização do conceito de raça na arquitetura e urbanismo no Brasil são de três ordens. A primeira consiste na falta de uma conscientização
e letramento racial na formação escolar de alunos no ensino básico, fundamental, médio e universitário no Brasil. A educação tem vindo a criar grandes lacunas na formação
cidadã e precisa se posicionar na compreensão social do problema estruturante do
racismo na sociedade brasileira. A segunda é a pouca problematização do racismo em
suas diversas escalas e facetas: racismo estrutural, institucional, ambiental, religioso,
simbólico, lingüístico, algorítmico e recreativo tanto nos currículos do curso como
nas disciplinas optativas e obrigatórias de história e teoria da arquitetura, urbanismo e
cidade, de disciplinas de projetos arquitetônicos, de desenho urbano, de planejamento
urbano, de tecnologias e expressões gráficas. A terceira é que, somente a presença
no currículo não é suficiente. Torna-se necessário extensões, ampliações, diálogos e
rupturas epistemológicas afrocentradas, afrorreferenciadas e afrodiaspóricas a partir
das cosmo-percepções, éticas, valores e estéticas dos grupos étnico-raciais que compõem a diversidade multicultural do país e que produzem as cidades e arquiteturas,
numa reflexão sobre como o racismo produz cidade e, num movimento inverso, como
a cidade reproduz o racismo.
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As disciplinas de teoria e história da arquitetura e do urbanismo costumam ter uma bibliografia bastante centrada nos cânones europeus que pouco
dialogam com a realidade das periferias urbanas brasileiras. Por outro
lado, a literatura sobre cidades na África, pouco explorada nas escolas
brasileiras, pode nos ajudar a compreender nossos processos urbanos tanto
pela dimensão do espaço construído quanto pelos usos cotidianos. Como você
avalia essa ausência na formação dos arquitetos e urbanistas brasileiros?
Nossa formação acadêmica em arquitetura e urbanismo até há pouco tempo era
completamente centrada numa perspectiva eurocêntrica, reproduzindo uma lógica
colonial, como se só a Europa e, posteriormente, os Estados Unidos da América,
constituíssem civilizações e o centro do mundo. Demos continuidade à tradição hegeliana de que povos que não possuem consciência de si são desprovidos de razão
e, portanto, não possuem história e, por conseguinte, não constituem civilizações.
Estudamos, no Brasil, como se só houvesse arquitetura e cidade nos países centrais do
capitalismo, sem nos debruçarmos sobre as arquiteturas e cidades pré-colombianas,
africanas, asiáticas e da Oceania. Estas regiões do globo possuíram povos que constituíram reinos, impérios e civilizações seculares e até milenares que foram lançados
ao esquecimento pela hegemonia européia. São povos e civilizações que produziram
epistemologias próprias e ciências nos mais diversos campos, como matemática,
química, física, astronomia, medicina, construção, literatura, artes, dentre outros. O
projeto moderno eurocêntrico fez tabula rasa da diversidade humana em todas as
escolas, materializando seu projeto de hegemonia e ideário de humanidade.
Nos bancos das escolas de arquitetura e urbanismo no Brasil - um país que recebeu
a metade dos africanos escravizados na diáspora durante quatro séculos, que foi o
último país do mundo a abolir a escravidão e tem metade de sua população declarada
afrodescendente -, ainda não se estuda o Antigo Egito, os impérios da Núbia e de
Axon, os grandes reinos da África Subssariana e do Saara, como o Mali, Ghana, Bérbere,
Almoravida, Songhay, nem os reinos bantus da África Central, como o grande Reino
do Congo, Luango, Kagongo, Matamba, Ovibundu, ou os importantes impérios da
África Ocidental, como os Fanthi-Ashanti, o Dahomé, o Haussá e o poderoso império
de Oyó, tampouco os reinos da África Oriental e Austral, tais como os importantes
impérios Swahile e Zulu. Isso reflete por si só um processo violento de dominação e
opressão colonial.
Estudávamos, até pouco tempo atrás, os templos religiosos da antiguidade à
contemporaneidade, em cada período histórico do ocidente. Desde o Partenon, na
Grécia, à Basílica de São Pedro, em Roma, Notre Dame, em Paris, na França, até a
Capela de Ronchamp, de Le Corbusier. Mas não tínhamos uma aula ou visita sequer
sobre terreiros de candomblé numa cidade como Salvador que, aliás, tem a alcunha
de Roma Negra, por ser a cidade mais negra fora da África, e que conta com 1400
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terreiros no seu espaço urbano. Terreiros, inclusive, reconhecidos como patrimônios
nacionais pelo IPHAN desde 1984, quando se deu o Tombamento do Terreiro Casa
Branca, mas que até recentemente não adentravam as salas de aula da faculdade. O
estudo das arquiteturas e cidades africanas é fundamental para o entendimento das
cidades brasileiras, sobretudo dos seus bairros negros e populares que constituem
a maior parcela dos espaços das cidades brasileiras. A maioria dos bairros negros
das cidades, malmente chamados de favelas, ocupações, invasões, assentamentos
subnormais (eufemismos de linguagem do racismo à brasileira), foram oriundos, em
boa parte, de três elementos geradores: quilombos; habitações de escravos de ganho,
de aluguel e libertos; e terreiros de candomblé. Eram arquiteturas afrodiaspóricas
que continham cosmo-percepções, éticas, valores e estéticas que ora permaneceram, ora foram ressignificadas, ora recriadas nos bairros negros contemporâneos das
cidades brasileiras. É importante entender aqui também os bairros étnicos africanos,
tais como as Tabankas na Guiné e na Guiné-Bissau; os Compunds ou Egbés no Togo,
no Benim e na Nigéria; as casas Musgum nos Camarões; e os Musseques em Angola
para identificarmos aquilo que têm de comum e de diferente com os bairros negros
no Brasil. Desse modo, compreender as continuidades, permanências, atualizações,
perdas, rupturas e reelaborações nos dois lados do Atlântico Negro.
Na continuidade da questão anterior, a reflexão sobre arquitetura e urbanismo no Brasil tem se constituído sobre uma série de lacunas teóricas,
metodológicas e epistemológicas em relação a um conhecimento situado.
Quais são os aspectos que você considera centrais para repensar os currículos de nossas escolas nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão?
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O primeiro ponto é um retorno: um encontro com a sociedade, com os anseios,
demandas e necessidades sociais, culturais e cidadãs, reconhecendo a diversidade
da sociedade brasileira. Nesse sentido, a extensão joga um papel central, deslocando
a pesquisa e o ensino para outra esfera. Uma mudança profunda e radical nos currículos não se dará apenas com a introdução desses conteúdos (raça, etnia, gênero,
sexualidade, etc...) nas disciplinas obrigatórias ou com a criação de optativas, mas com
rupturas e alargamentos epistemológicos. Para tal, a extensão precisa ser a espinha
dorsal dos cursos de arquitetura e urbanismo no Brasil. Essa mudança só será possível
quando tivermos um ensino extensionista. Quando os alunos se defrontarem sistematicamente com a realidade social, com encontros paulatinos com a diversidade, com os
problemas reais da sociedade e desenvolverem estudos, análises, propostas, projetos
e planos em meio a conflitos, tensionamentos e disputas é que poderão sair do atual
abstracionismo. Uma vez envoltos num emaranhado de complexidades sistêmicas
atravessadas pelas questões de classe, raça, gênero, sexualidade, religiosidade, idade,
pessoas com deficiência, dentre outros marcadores sociais, os alunos poderão ter uma
formação mais ampla, com teorias, conceitos, metodologias e epistemologias que,
sendo mobilizadas, construídas e tensionadas no fazer cidade, formarão arquitetos e
arquitetas e urbanistas com uma real formação cidadã.
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Considerando que, segundo o CAU, as mulheres representam 61% dos profissionais em arquitetura e urbanismo no Brasil, por que os projetos mais
conhecidos são de autoria de homens brancos? Como você vê os impactos
desse quadro na arquitetura e nas cidades brasileiras? Como enfrentar
essa disparidade de gênero e raça?
Isso decorre da nossa realidade colonial, na qual o patriarcado e o racismo constituem duas engrenagens fundamentais e centrais de perpetuação dos privilégios
da branquitude. Isto está impregnado na estrutura da sociedade brasileira, na qual a
colonialidade e a branquitude ocupam os espaços de poder, direção e os principais
postos de comando nos setores público e privado. Essa realidade colonial, racial e
patriarcal impacta no pensar e na produção de cidades hierarquizadas, segregadas,
pseudofuncionais, serviçais, onde a reprodução do capital, através do mercado imobiliário e da mais valia do solo urbano, reproduz desigualdades espaciais racializadas
nas cidades brasileiras. O enfrentamento dessa realidade requer o aprofundamento
das políticas de ações afirmativas visando a equidade de gênero nos setores públicos e privados. Graças à organização de estudantes negros e negras em coletivos
estudantis nas escolas de arquitetura do país essas questões são constantemente
pautadas em suas respectivas unidades. A implementação dessas políticas nos órgãos
e instituições de classe, como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e o
Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), tem sido pautada pela organização profissional
dos arquitetos negros e negras em coletivos, como ocorreu, por exemplo, no projeto
Arquitetas Negras, criado por Gabriela de Matos. Portanto, o caminho, Odú, é mobilização, organização, divulgação e ação política na luta pela implementação da pauta
racial e de gênero em todas as esferas do campo da arquitetura e urbanismo.
A produção do conhecimento que mais circula, sobre cidades e urbanização
africana, é conduzida por agendas centradas no Norte Global, não necessariamente abrindo espaço para um reconhecimento plural das especificidades do continente africano. Como você avalia a produção do conhecimento africano ou sobre África e suas possibilidades de trocas com América
Latina e, especificamente, com o Brasil?
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O Brasil fará em 2022 cerca de duzentos anos de independência, no meio a uma
conjuntura e momento histórico de plena retomada do projeto colonial, estamental
e escravocrata do passado. O que dizer dos países do continente africano, que têm
em média cinquenta anos de independência, seguida de inúmeros golpes e guerras
civis, incentivados pelos países centrais como forma de manterem sob suas égides
a relação de colonialidade, exploração e dominação? Existe um movimento na África
contemporânea chamada ‘’Renascença Africana’’ ou ‘’Levante da África’’, oriunda de
uma estabilidade política, institucional e econômica das duas últimas décadas. Mas, na
realidade, constitui uma “Nova Partilha da África’’ em zonas de influências de estados e
empresas à luz da globalização, do neoliberalismo e do neocolonialismo, proveniente
de um novo ciclo de acumulação do capitalismo norte-americano, europeu, indiano,
coreano e chinês. Assim, mantém, aprofunda e ressignifica antigas espoliações no
continente no que tange aos recursos minerais (carvão, madeira, água, gás, petróleo,
ouro, diamante, metais, etc...), associado à exploração de novos mercados como o
agronegócio e à indústria do turismo de massa na África Oriental; mercado de tecnologia da informação (TIC) na África Ocidental e Central; e o mercado imobiliário em
várias regiões do continente.
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Na última década, vimos o surgimento de projetos e construções das megacidades
africanas, inseridas na lógica da competitividade global decorrente do neocolonialismo
e da Nova Partilha da África, como por exemplo a nova capital administrativa do Egito;
La Cité Du Fleuve na República Democrática do Congo; The Eko Atlantic City na Nigéria;
The Appolonia City e The Hope City em Gana;The Kigamboni City e The Safari City na
Tanzânia;The Konza Technology City e The Tatu City no Quênia;The Ebene Cyber City nas
Ilhas Maurício; e The Modderfontein New City na África do Sul. A maioria desses projetos
são desenvolvidos por escritórios de arquitetura e urbanismo americanos, europeus
ou asiáticos e quando há presença de africanos, estes tiveram sua formação nos
países centrais, reproduzindo a lógica de dominação eurocêntrica. Entretanto, há um
movimento político de arquitetos e escolas de arquiteturas e urbanismo no Senegal,
Gana (ArchiAfrika) e Angola (CEICA), liderado pela arquiteta angolana Ângela Mingas,
que coordena o Fórum Internacional de Arquitectura na África. Essa rede de escolas
de arquitetura e profissionais em África está levantando críticas a essas megacidades,
assim como à lógica neocolonial apoiada pela perspectiva neoliberal de produção de
cidades. Em alternativa, buscam processos, metodologias, epistemologias e projetos
participativos nos bairros étnicos das cidades, com as populações chamadas de assimiladas e, notadamente, os chamados ‘’indígenas’’, que constituem sobremaneira a
maioria dos bairros étnicos das metrópoles e cidades de médio porte do continente
africano, que migraram do campo para a cidade durante o período colonial, durante
as guerras de independência ou guerras civis.
As trocas no campo da Arquitetura e Urbanismo entre África e Brasil começaram a
se intensificar nos últimos anos, sobretudo através do Seminário Salvador Suas Cores,
organizado pelo grupo EtniCidades, da FAUFBA. Essa relação vem se estreitando com
a vinda de arquitetos e urbanistas africanos, assim como pesquisadores das cidades
africanas das áreas de antropologia, sociologia, história e geografia de Guiné-Bissau,
Cabo Verde, Angola, Moçambique, Nigéria e Benin para participação anual nesse
Seminário; com a realização de convênios de cooperação técnica e acadêmica entre
o EtniCidades/FAUFBA e universidades nigerianas: a Universidades de Lagos, em
Akoká, a Universidade Estadual de Lagos e a Universidade de Oyó; com a realização
de missões acadêmicas do EtniCidades à África. Também destaco a montagem da
rede de pesquisas sobre o patrimônio afrodiaspórico entre o EtniCidades/FAUFBA,
CEAO/UFBA, Instituto do Mundo Africano (IMAF), da École des hautes études en
sciences sociales (EHESS Paris I), e Universidade Abomey-Cavali, do Benin.
Você tem realizado um trabalho fundamental sobre arquitetura de terreiros, sobre comunidades quilombolas e sobre arquitetura africana na
diáspora. Esses espaços se caracterizam pela construção anônima, ou
seja, não partem de um projeto assinado por um arquiteto, pois costumam
ser auto-construídos pela própria comunidade. A falta dessa assinatura
faz com que muitas pessoas não vejam essas edificações como arquitetura.
Você enfrentou alguma resistência na academia quando resolveu estudar
a arquitetura de terreiros de candomblé? Quais foram ou são ainda seus
maiores desafios?
O projeto político e acadêmico que tracei foi a construção de uma narrativa que
põe em evidência, em seu devido lugar de importância, as arquiteturas afro-brasileiras.
Eu defino as arquiteturas afro-brasileiras como sendo aquelas edificadas pelos negros
no Brasil, pelos africanos e seus descendentes, através de processos diaspóricos
impostos pela escravidão como forma de sobrevivência social, cultural e política,
constituindo lugares de resistência, existência, ressignificação e criação da cultura
negra no Brasil. Foram compostas em suas espacialidades por temporalidades, cosmovisões, cosmo-percepções, princípios, processos, valores e estéticas afrocentradas,
afrorreferenciadas e afrodiaspóricas. As arquiteturas afro-brasileiras são compostas
pelos territórios negros da fuga, resistência, existência e outras formas de vida, maioritariamente constituídas por: quilombos, terreiros de candomblé, templos religiosos
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de matrizes africanas, blocos afro, afoxés, maracatus, congadas, reisados, folguedos,
casas de samba de roda, casas de maculelê, escolas de capoeira, escolas de samba,
centro de funk, hip-hop, entre outros.
Esse projeto político e acadêmico consiste em colocar negros e negras numa
posição de centralidade na produção das arquiteturas, territórios e cidades brasileiras,
abordagem ainda lacunar e incipiente na arquitetura e urbanismo no Brasil. Combater
as diversas modalidades de racismo que constituem e atravessam a sociedade brasileira: o racismo estrutural, institucional, ambiental, simbólico e religioso que funcionam
pela mecânica do “racismo à brasileira”, caracterizado pela dissimulação que opera no
corpo social através das engrenagens maquínicas do eufemismo da linguagem, do
mito da democracia racial, da ideologia do branqueamento, da lógica do colorismo e
do amalgamento em outros marcadores sociais (classe, gênero, sexualidade, religiosidade, regionalidade, idade, etc.). Esse projeto coletivo no âmbito do EtniCidades/
FAUFBA teve seus diversos aquilombamentos.
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Quando fui realizar a minha seleção de mestrado, por exemplo, com um projeto
para estudar a arquitetura de terreiros e suas relações com a cidade, alguns membros
da banca me perguntaram por que iria estudar aquela arquitetura, uma vez que não
tinha valor algum e na concepção deles ‘’eram um monte de casinhas espalhadas
sem valor arquitetônico’’, ‘’construções precárias’’, ‘’não viam a relevância do tema e
dessas arquiteturas’’. Rebati de forma contundente e incisiva e graças à fala, análise
e ponderação da professora Odete Dourado, que estava na banca de seleção, freqüentadora do Ilê Axé Opô Afonjá, houve um ‘’esclarecimento’’ da importância dessas
arquiteturas para os demais membros da banca. Destaco ainda a importância da
professora Odete Dourado no cenário nacional no campo da teoria e crítica do restauro
e, notadamente, nas reflexões e trabalhos sobre os processos de patrimonialização
dos terreiros de Candomblé e seus impactos na área do patrimônio. Logo após esse
processo seletivo, ela se tornou a minha orientadora de mestrado e doutorado, a
qual eu devo a minha formação acadêmica, dando-me régua e compasso. Nesse
sentido, o trabalho realizado serviu para compor todo o processo do tombamento
desse terreiro (Omo Ilê Agboulá de Culto aos Egum) no IPHAN durante os 10 anos
em que o processo foi instruído, fornecendo plantas, mapas, entrevistas e fotografias
e culminou na viabilização do tombamento, transformando o terreiro em Patrimônio
Cultural do Brasil. Posteriormente a pesquisa foi publicada em livro (VELAME, 2019).
Em 2020 a FAUFBA firmou um termo de cooperação técnica junto ao IPHAN para
o restauro do Omo Ilê Agboulá, do Roça do Ventura e do Alaketu. A restauração do
Omo Ilê Agboulá foi realizada dando dignidade e cidadania ao povo de santo da Bahia.
Quando surgiu o questionamento sobre a não natureza arquitetônica do terreiro
de candomblé no processo seletivo de mestrado, o que estava por trás da pergunta
era a concepção clássica de boa parte das escolas de arquitetura do país, herdeira da
Missão Francesa trazida por Dom João VI, de que o que difere a arquitetura da mera
construção é sua dimensão artística, sua condição como obra de arte, ou seja, um
princípio estético. O que rege esse princípio estético é um cabedal de concepções
eurocêntricas que vão do figurativo ao abstrato, de caráter eminentemente visual,
plástico e perceptível. O que está no fundo da questão é o conceito de belo, no
campo da estética, no universo dos valores e da percepção, do que pode ser considerado obra de arte ou não e, consequentemente, o que pode ser considerado ou
não arquitetura, sempre numa perspectiva eurocentrada. O que está em disputa é o
conceito e a narrativa sobre o belo, a estética e a própria arquitetura. Os terreiros de
candomblé trouxeram esse debate entre patrimônio material e imaterial e, sobretudo, o
tensionamento entre o que é ou não arquitetura, porque os conceitos de belo, estética
e, por conseguinte, arquitetura do povo de santo são de outra natureza, regidos pelas
cosmo-percepções, processos, éticas, valores e estéticas próprias dessas comunidades. Nelas, o axé e seu sistema dinâmico de alimentação, conservação, potencialização
e distribuição são o que atribui valor, beleza e edifica arquiteturas.
No contexto nacional, como você avalia as pesquisas centradas na temática dos territórios afrodiaspóricos? Podemos falar da produção de um
conhecimento que começa a desenvolver seus próprios parâmetros a partir
do acúmulo já produzido, ou se tratam ainda de iniciativas isoladas?
Esses estudos começam com os primeiros africanos que aqui chegaram na condição de pessoas escravizadas pelo tráfico negreiro criminoso. Houve resistência e, principalmente, a transmissão de conhecimentos ao longo de gerações dessas pessoas no
âmbito desses territórios negros. As pesquisas sobre territórios afrodiaspóricos já vêm
de longa data, desde Nina Rodrigues, no final do século XIX, aos chamados “Estudos
Afro-Brasileiros’’, também no campo da antropologia, da sociologia, da história, da
literatura, da música e das artes plásticas que já possuem um acúmulo de pesquisas
que se iniciaram no século XIX, atravessaram o XX e chegam ao século XXI com várias
vertentes e correntes teóricas. Esses estudos são centrados nos quilombos, terreiros
de candomblés, mocambos, clubes negros, presença negra nas cidades, agremiações
carnavalescas negras, capoeira, samba, catolicismo de preto, congadas, dentre outros.
p. 53
Mas o espaço, o território, a arquitetura e a cidade sempre foram colocados, nesses
campos disciplinares, como pano de fundo, de apoio, de cenário dos processos sociais
estudados. Foram as disciplinas espaciais da geografia, arquitetura e urbanismo que
colocaram a arquitetura, a cidade e o território, a partir dos anos de 1980, em uma
posição de protagonismo. Essa importância revelou-se em uma relação umbilical com
as dinâmicas sociais e históricas, nas quais as relações étnico-raciais na sociedade
e territórios afrodiaspóricos se retroalimentam. Esses estudos pioneiros oriundos da
geografia, arquitetura e urbanismo constituem trabalhos pontuais, isolados e militantes
na luta por direitos dos povos dos territórios afrodiaspóricos e de embate no âmbito
acadêmico. Mas foi a partir da implantação das cotas na graduação há 15 anos, com
a entrada sistemática e em quantidade de professores negros e negras nas universidades, com o ingresso na pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado) e
da primeira geração de egressos das cotas, que o campo das disciplinas espaciais da
geografia, arquitetura e urbanismo ganharam musculatura, com o desenvolvimento
de pesquisas, extensões e eventos que tratam das relações étnico-raciais, estudos
africanos e afro-brasileiros nos territórios afrodiaspóricos.
p. 54
Vêm surgindo coletivos de estudantes negros de graduação, grupos de pesquisas
que tratam das questões étnico-raciais, coletivos de pesquisadores negros, redes
de pesquisa e colaboração, publicações de livros, coletâneas. Nas associações e
entidades de classes profissionais a pauta étnico-racial vem ganhando espaço com
políticas institucionais. Como exemplo disto, só no EtniCidades/FAUFBA já foram
realizados seminários sobre arquiteturas indígenas, presença ciganas nas cidades,
mulheres negras e cidades afrodiaspóricas, branquitude e cidade, dois seminários
internacionais com países africanos, o Fórum Internacional e Arquitectura de Angola
junto a CEICA/ULA em Angola, o Simpósio Brasil-África e África-Brasil junto ao LASUCAS, da Universidade do Estado de Lagos, na Nigéria, além do nosso evento principal:
o Seminário Salvador suas Cores que irá completar este ano a sua oitava edição.
Tendo se iniciado em 2015, o Salvador e Suas Cores desenvolveu os seguintes temas:
Espaço Urbano e Segregação Étnico Racial (2015); Turismo Étnico e Imagens Urbanas
(2016); Arquiteturas Afro-brasileiras - Um Campo em Construção (2017); Cidades da
Diáspora Negra: Laços África-Brasil (2018); Racismo, Diáspora e Cidade em África e
Brasil (2019); Ensino, Pesquisa, Extensão das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de
Arquitetura e Urbanismo no Brasil e África (2020); Por Uma Agenda Antirracista para
as Cidades Brasileiras, Africanas e da Diáspora Negra nas Américas (2021).
A FAUFBA e o seu programa de pós-graduação, o PPGAU/UFBA, com o conjunto
de suas disciplinas, extensões, seus professores e grupos de pesquisa: EtniCidades
coordenado por Fábio Macêdo Velame; Lugar Comum, coordenado por Ana Fernandes juntamente com Glória Cecília Figueiredo e Gabriela Leandro Pereira; ArqPop,
coordenado por Márcia Sant´Anna; e Margear, coordenado por Tais Rosa, constituem
o epicentro desse processo no país. Outras iniciativas importantes estão surgindo com
grande potência na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA),
através do Grupo de Estudos Maloca, coordenado por Andréia Moassab; o LabRaça,
na USP, coordenado por Ana Cláudia Barone; o IAU-USP, com Joana D´Arc; a UNB com
Carlos Henrique; a UNIME, com Maria Estela Ramos Penha, dentre outros no país. Mas,
há ainda muito o que avançar e construir, recuperando décadas de atraso nos estudos
das relações étnico-raciais, estudos africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóricos no
Brasil no campo da arquitetura e urbanismo e, principalmente, empreendendo um
movimento político de formação de arquitetos e urbanistas antirracistas.
É possível decolonizar a arquitetura e o urbanismo? Neste sentido, quais são
os desafios que estão colocados para arquitetas, arquitetos e urbanistas?
Sim, é possível descolonizar a arquitetura e o urbanismo, mas não será uma tarefa fácil, nem rápida. Será um processo longo, demorado, feito passo a passo, com
muitos embates, conflitos, tensionamentos e muitas frentes, mas necessário para a
construção de uma universidade plural, para formar arquitetos e urbanistas antirracistas, para o combate ao racismo em todas as suas dimensões, para a construção
de uma sociedade com justiça social e racial. Os grandes desafios passam pela luta
da permanência dos estudantes cotistas nas universidades públicas na graduação e
na pós-graduação, pelo letramento racial do corpo docente, discente e técnico nas
faculdades de arquitetura e urbanismo no Brasil. Também passa pelas mudanças dos
currículos e dos projetos político pedagógicos dos cursos de arquitetura e urbanismo,
partindo de uma perspectiva antirracista. É, ainda, fundamental a implementação de
políticas antirracistas dentro das associações e órgãos de classe, além do letramento
racial e de políticas antirracistas em instituições privadas e órgãos públicos de atuação de arquitetos e urbanistas. Principalmente, é preciso haver a construção de um
ensino extensionista, na qual a extensão seja o eixo estruturante e a espinha dorsal
das faculdades de arquitetura e urbanismo no Brasil. A estrada da liberdade não tem
fim, mas é nela que repousa a justiça, a dignidade e a esperança.
p. 55
Notas
GOODY, J. O roubo da história. São Paulo:
Contexto, 2012
1
HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO,
J. (org.). História Geral da África I. Metodologia e Pré-história da África. Brasília:
Unesco, 2010, p. 167-212.
Cf.: Os resultados do projeto estão disponíveis em: http://www.terreiros.ceao.ufba.
br/.
2
Cf.: O Censo dos Arquitetos e Urbanistas
do Brasil está disponível em: https://www.
caubr.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/Censo_CAUBR_06_2015_WEB.pdf
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afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá, um Templo do Culto aos Egum no Brasil. Salvador:
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p. 57
Pelo “direito
ao território”
afrodiaspórico.
A especificidade pedagógica da
luta quilombola de Ilha de Maré,
Salvador, Bahia
'
Entrevista com Nega
(Marizélia Carlos Lopes)
Quem entrevista:
Francine Cavalcanti
POSGEO / UFBA
Luana Figueiredo de Carvalho Oliveira
RAU+E / EtniCidades / UFBA
Paula Regina de Oliveira Cordeiro
UNEB, POSGEO / UFBA
NEGA
Marizélia Carlos Lopes
A convite do grupo ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, a entrevista que apresentamos debate o “Direito ao Território” (ESCOBAR,2015), a partir da
1
ontologia , tendo por base as práticas sócio-político-espaciais do território tradicional
quilombola de Ilha de Maré, localizado no Município de Salvador, Bahia, através da
interlocução com o Estado Brasileiro, no que compete ao campo político institucional
2
de luta por direitos fundamentais .
O olhar sobre a “ilegitimidade” do Estado Brasileiro em seu caráter colonial, tão
3
estruturante do paradigma moderno-colonial sobre o “Estado de Direitos” é confrontado, neste trabalho, a partir do relato de uma referência baiana e nacional da luta
quilombola denominada Marizélia Carlos Lopes, ou como a mesma se autodenomina,
“Nega”. Para os fins que o presente trabalho representa, respeitaremos sua forma
escolhida de autoapresentação.
“Nega” é a quinta geração de uma família negra rural e pescadora localizada no
território de Ilha de Maré, situado no município de Salvador, Bahia. Ela é militante
do Movimento Nacional de Pescadoras e Pescadores e uma das fundadoras desse
Movimento. Já a Ilha de Maré (Ver Fig 01), seu território de referência político cultural
ancestral, é composto por comunidades quilombolas e pesqueiras que resistem a
processos de opressão e de violação de direitos desde o período colonial. A Ilha de
Maré faz parte do arquipélago da Baía de Todos os Santos e se configura como bairro
4
da cidade de Salvador, desde 2017 . Por força constitucional, trata-se integralmente de
5
dominialidade da União, já que se constitui de ilha costeira sem sede de município .
6
Segundo o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação -RTID, 2017 , peça
técnica, antropológica, cartográfica e fundiária, fundamental para a política institucional
de reconhecimento do direito quilombola ao território, a Ilha de Maré, atualmente, é
distribuída em 11 comunidades tradicionais pesqueiras: Neves, Itamoabo, Santana,
Botelho, Porto dos Cavalos, Praia Grande, Maracanã, Bananeiras, Caquende, Ponta
Grossa e Martelo. Constituem um total de 644 hectares de extensão territorial e 404
famílias a serem beneficiadas pela regularização fundiária das terras ocupadas. Destas
comunidades, 06 (seis) se autodeclaram remanescentes de quilombos e 04 (quatro)
são certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), encontrando-se em fase de
tramitação processual de regularização territorial junto à Secretaria do Patrimônio da
7
União (SPU) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desde 2004 .
p. 61
A partir de dados do censo étnico racial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), se constata
que a Ilha de Maré é classificada como o bairro mais negro
de Salvador. Contudo, embora seja um território de belezas
e diversidades naturais e culturais, além da exclusão social
que impõe desigualdade racial para os moradores, o mesmo
é afetado por grave poluição e contaminação química, gerada por indústrias internacionais instaladas nas proximidades
da comunidade durante a ditadura militar, entre as décadas
1960 a 1970, quando foi implementado o Polo Industrial de
8
Aratu na região metropolitana de Salvador .
As comunidades da Ilha, que vivem conforme uma identidade tradicional pesqueira, estão expostas a graves viola9
ções de direitos e ao Bem Viver , violências físicas, morais
10
e psicológicas, sofrendo contaminação química crônica ,
que provocam danos irreparáveis à saúde e ao modo de vida
tradicional, com mortes e doenças, afetando aos habitantes
de todas as idades e não apenas crianças e idosos.
v.2 n.1
p. 58-91
2023
ISSN:
2965-4904
O Estado brasileiro tem sido omisso diante dessa realidade, conivente com as irregularidades praticadas pelas
grandes empresas e insensível diante do sofrimento das
comunidades afetadas. Segundo o dossiê elaborado pelo
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP/
BA e a Colônia de Pescadores de Z-4 de Ilha de Maré para
denunciar este crime ambiental ao Conselho Nacional de
Direitos Humanos entre anos de 2014 e 2017, os estudos
ambientais feitos pelo Estado e pelas empresas são maculados por interesses políticos. Muitos encaminhamentos
de competência dos órgãos reguladores e de fiscalização
ambiental e de ocupação não são cumpridos, os processos de regularização fundiária dos territórios tradicionais
da ilha transitam nos órgãos competentes há mais de uma
década sem perspectiva de avanço, e o pouco que se caminha institucionalmente para uma garantia de direitos, via
judiciário, transita na esfera de medidas ‘compensatórias’
sem controle social, longe dos principais canais de mídia e, portanto, sem visibilidade
para a sociedade brasileira.
Neste sentido, a luta pelo território de Ilha de Maré, diante da violação dos direitos humanos à vida, à saúde, à educação e ao acesso à terra, traz para o campo
da esquerda brasileira um caráter pedagógico fundamental. Principalmente porque
evidencia que o avanço na garantia dos direitos fundamentais não está associado
apenas a conjunturas político-institucionais. Ao contrário, as décadas de governos de
esquerda no Brasil foram também o período de maior acirramento do conflito vivido
pelo território pesqueiro e quilombola de Ilha de Maré. É por isso que a conversa que se
segue com “Nega” traz para o leitor, elementos da luta afrodiaspórica, especificamente
brasileiros. Esperamos que a leitura a seguir sensibilize o leitor assim como as autoras
do presente trabalho. Com o propósito de incluir todos os sujeitos que atuaram nessa
entrevista, nos apresentamos brevemente:
Francine Cavalcanti é geógrafa, especialista em Direito Urbanístico pela PUC/
MG (2011), mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA (2013) e doutoranda em
Geografia pelo IGEO/UFBA. É membra dos Grupos Costeiros (UFBA). Atua há 15 anos
em políticas públicas institucionais de regularização fundiária de interesse social como
servidora federal da Secretaria do Patrimônio da União, órgão do executivo brasileiro
vinculado atualmente ao Ministério da Economia. Atua também em projetos de assistência técnica e assessoria popular em territórios urbanos e rurais.
Luana Figueiredo é arquiteta e urbanista especialista em Habitação e Direito à
Cidade pela Residência Profissional (RAU+E) da UFBA (2014); mestre pelo PPGAU
(2019) e professora colaboradora na RAU+E. Pesquisadora do grupo EtniCidades, com
foco em políticas habitacionais para comunidades tradicionais, quilombolas e rurais.
Trabalha com projetos de assistência técnica e assessoria popular para comunidades
urbanas e rurais.
Paula Regina Cordeiro é geógrafa, doutoranda e mestra em Geografia pelo IGEO/
UFBA; especialista em Habitação e Direito à Cidade (UFBA/2014) e professora substituta da Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Membra dos Grupos Costeiros (UFBA),
NEA (UFRB), NEG (UNEB). Pesquisadora de Geografia Africana e dos Povos e Comunidades Tradicionais; Cartografia e fundadora da AYO Cartografia.
Do ponto de vista metodológico, a entrevista que segue se divide em 4 (quatro)
eixos principais, quais sejam: 1º) Identidade Quilombola e Território: sujeito individual
e coletivo ancestral; 2º) Corpo-política (GROSFOGUEL, 2012), da luta pelo “Direito ao
p. 63
Território”: organização social X conflitos histórico-sócio-ambientais; 3º) Limites da
institucionalidade diante do racismo estrutural do Estado brasileiro; 4º) Leitura de
conjuntura e caráter pedagógico da luta quilombola de Ilha de Maré. Foram utilizados recursos de entrevista oral, pesquisas bibliográficas, materiais cedidos pela
entrevistada, áudios de Whatsapp e edição dos conteúdos transcritos. O objetivo de
se estruturar em eixos essa entrevista foi proporcionar uma melhor leitura ao traduzir
para a forma escrita os diálogos realizados. O material foi revisado e devidamente
aprovado por Nega.
Figura 01: Mapa
de Localização
das Comunidades
Quilombolas de Ilha
de Maré na BTS.
Fonte: Google Earth
2021, Elaboração:
OLIVEIRA, Luana e
CORDEIRO, Paula.
p. 64
Eixo 1: Identidade quilombola e território:
sujeito individual e coletivo ancestral
Luana: Marizélia, agradecemos muito a oportunidade de conhecê-la e de
conversarmos um pouco. Para iniciar você poderia nos contar um pouco da
sua história e se apresentar?
Eu sou Marizélia Carlos Lopes, mais conhecida por ‘Nega’, e gosto desse apelido.
Quem me ofertou esse apelido foi minha bisavó Ana, ela chamava meu pai de Nêgo, aí
quando eu nasci ela disse que eu era muito parecida com ele, e disse, o nome dela vai
ser ‘Nega.Aqui na comunidade é meu apelido, e todo mundo me chama de ‘Nega’. E os
amigos, as pessoas, eu gosto que também me chamem assim, então não tem problema.
Eu sou mulher, negra, pescadora. Sou filha de Vilma do Nascimento Menezes
Lopes e Ernandes Carlos Lopes. A mãe de pai é uma das pessoas de referência na
minha vida, minha vó Lurdes. Ela tem traços indígenas, a pele mais negra…. Eu também
conheci meu bisavô Cândido, minha bisavó Maria, meu bisavô Fernandes e minha
bisavó Augusta, e se tem uma coisa que eu tenho de lembrança da minha infância e
eu gosto, é ter conhecido meus bisavós.
Eu cresci ouvindo as histórias e os contos contados pelo meu bisavô Fernandes. Ele
era alto, um negro lindo e ele também cumpria um papel importante na Comunidade.
Ele era o enfermeiro, o médico, quem tinha o conhecimento de cuidar de todas as
pessoas, fazia os curativos quando alguém se machucava ou se feria com a arte da
pesca, anzol, ele que resolvia. Meu bisavô tinha um conhecimento tão grande, e eu
sou muito feliz de ter conhecido e vivenciado, esse tempo. Eu ainda era menina, mas
eu lembro muito dele.
Assim, as mulheres da minha família, todas elas são muito guerreiras. Minha avó
Lurdes casou com meu avô Beca, o nome dele era José Carlos, o pai de pai, ele largou deixou minha vó e foi conviver com outra senhora, e ele e meus tios eram muito
jovens, meu pai tinha 14 anos, o segundo mais velho... Então minha avó criou e educou
07 homens, mariscando, vendendo quitutes. E aqui na comunidade não tinha quem
soubesse torrar o amendoim tão perfeito igual a ela.
E também tem a história de minha avó Dunga (Clarice do Nascimento Menezes),
que criou também 11 filhos, com muita dificuldade, com meu avô… E essas mulheres,
mãe e minhas tias, todas guerreiras que cuidaram da gente. E tem uma coisa muito
p. 65
bonita na família, que eu trago como herança, é que a gente se cuida, né? Então os
filhos das minhas irmãs não é meu sobrinho, só meu sobrinho, é filho também. Os
filhos das minhas primas, dos meus primos, são meus sobrinhos e a gente cuida de
cada um. Então essa coisa na comunidade, todas as crianças ‘é da comunidade’, isso
não existe fora de comunidade tradicional. Então, a gente por exemplo, eu tô com 51
anos e só teve 01 afogamento de criança, porque todo mundo cuida de todo mundo.
Luana: Você se refere à comunidade como parte de uma grande família…Na
medida em que você vai falando de si, aparecem ao mesmo tempo, elementos
de identidade coletiva importantes na compreensão do território de Ilha
de Maré. Você poderia aprofundar um pouco mais essa relação individual
e coletiva de afirmação do território? Poderia nos contar mais sobre seu
território e sua comunidade?
Então, quando eu me apresento nos lugares que a gente tem falado, nos espaços
de luta, eu me apresento como Marizélia Lopes, mulher negra, pescadora, que vive
em comunidade tradicional. Então ser essa mulher é um desafio, sabe? Mas ao mesmo
tempo, se eu tivesse que nascer de novo eu não viveria sem a comunidade tradicional.
A relação que eu tenho, que nós temos, com o território, e é por isso que a gente
faz luta, é uma relação difícil de explicar, porque é uma relação ancestral, então não
começa comigo. É aqui que estão as minhas referências.
Se eu comecei a entrevista falando de mãe, de pai, de minha avó, dos meus bisavôs,
é porque são eles minha referência. Se eu tivesse que sair da comunidade, por algum
motivo e ir pra cidade, eu deixaria de ser Marizélia Lopes, a ‘Nega’ que carinhosamente
foi batizada por minha avó, que tem seus vínculos com a terra construídos a partir
da experiência de minha mãe, pai, avós e bisavós, e seria mais uma ‘nega’ (negra)
de Salvador, mais uma estatística de negras que foram expulsas de seus territórios
originários no passado e são hoje engolidas pela complexidade dos problemas da
cidade. Essas negras foram perdendo suas referências com suas comunidades e
foram sendo engolidas por outras referências que não são as nossas.
p. 66
Então, ser mulher de comunidade tradicional é saber ser uma liderança, uma militante que faz lenha, que pesca, que marisca, que carrega água, que conhece o tempo
da maré, que faz beiju, que faz pamonha, que cuida de filho, que cuida de neto. Então,
ser mulher, ser mulher negra de comunidade tradicional, é pertencer a essa relação
profunda e ancestral com o território, e com as pessoas desse território.
Eu conheço cada um que vive em Ilha de Maré, eu conheço cada beco, eu conheço
cada criança, então isso, a gente só vai ter, morando em comunidade. Então a riqueza e
a liberdade que a gente tem na comunidade não existe em outro lugar. Agora a gente
não tá livre das influências do capital, né? Essa ideia do que é meu e não é do outro
é influência do capital. Por isso que a afirmação do território é importante, porque a
ideia central é o que é meu é também do outro, é nosso.
E isso é importante, por exemplo, porque a gente não passa fome, tem dor maiordo
que você ver um vizinho passando fome? Então uma das coisas que mais me orgulha
de ser de comunidade pesqueira é que a gente não passa fome porque somos guiados
pela natureza. Sobre as histórias da comunidade, meu bisavô contava que ele nasceu
aqui mas seus pais vieram de uma comunidade de Cachoeira, não me recordo o
nome, chegaram aqui fugidos, ele disse que andaram por muitos dias e fugidos de
Cachoeira. Atravessaram de barco pra Ilha [de Maré] em Porto dos Cavalos, que é a
costa mais próxima do continente, mas vieram de Cachoeira andando.
Mas quando eles chegaram aqui, meu bisavô conta que os pais deles escutaram
11
que já tinha algumas famílias fugidas do engenho Wanderlei Pinho . Então minha
vó Lurdes contava que quando ela era menina, ela alcançou ainda uma carreira de
pedra, um muro de pedra que os primeiros moradores fizeram como um jeito de se
proteger, de se proteger um pouco, assim dos capitão do mato e tal.
Então meus bisavós já nasceram aqui e já tem muitos anos, meu bisavô Fernandes,
ele morreu com 103 anos, e ele contava que ele nasceu aqui na comunidade. Ele
morreu tem uns trinta e poucos anos, ano 2000... Se tem 30 anos, foi 1990…Então,
imagine? Ele nasceu um pouco antes da abolição.
Então os mais velhos contam que as primeiras famílias vieram dessa parte, né?
Da parte norte da ilha: onde tem Bananeiras, Maracanã, Porto dos Cavalos, Martelo e
Ponta Grossa. Tanto do museu Wanderley Pinho quanto também de Cachoeira, das
bandas de Cachoeira.
A comunidade de Praia Grande, tem uma história, que a gente não aprofundou,
mas tem relatos de moradores, que os primeiros habitantes, eles conseguiram escapar
dos navios negreiros. E assim Praia Grande é uma das comunidades que quando ela
seca a praia, ela seca toda, então os negros que conheciam que ali era raso, que o
canal estava próximo das coroas, os mais velhos contam que teve muitos negros que
fugiram do navio. Então, essa Ilha de Maré tem muita história relacionada ao período
da escravidão no Brasil.
p. 67
Eixo 2: Corpo-política - da luta pelo
“direito ao território: organização social
x conflitos histórico-sócio-ambientais
Francine: ‘Nega’, seu relato sobre sua identidade coletiva e individual
de afirmação do território é extremamente rico para a produção de um
conhecimento geopoliticamente afrodiaspórico, uma vez que localiza seu
12
‘lugar de fala’, (RIBEIRO, 2012)
a partir de sua experiência vivida e
sua própria historicidade enquanto mulher negra quilombola. Pautado em
13
uma perspectiva de aprofundar ‘corpo-políticamente’
o que a luta quilombola representa para você, gostaríamos de compreender a organização
do território de Ilha de Maré a partir dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha. Quando você identifica os primeiros conflitos e em que
medida as comunidades vão se organizando para acessar a política institucional de reconhecimento dos direitos quilombolas, promovidos pelos
14
Governos Lula e Dilma?
Olha, desde cedo, quando eu tinha 17 anos eu já tava participando de uma assembleia, assinando ata e a gente já estava pensando no que fazer para sair daquela
situação de exploração. Eu já tinha muito ‘escuro’ na minha cabeça que vivíamos
sob uma condição de exploração desde pequena. A gente tem até, aqui, essa ata
do primeiro sindicato rural de Salvador se não me engano, em torno do ano de 1987.
A gente cresceu ouvindo que a gente vivia nas terras do fazendeiro, o coronel Maia.
Eu lembro que eu ficava muito triste, porque pai dava um duro danado, e aqui tinha
muitos saveiros, e a produção pesqueira era gigante aqui em Ilha de Maré, e a gente
ter que dividir com os ditos donos da terra.
A pesca era vendida mais nas Feiras Livres. Também levava de saveiro, para o
comércio que era maior em São Joaquim, mas também para Ribeira, Paripe como
até hoje, a produção é menor, mas em todas as feiras tem alguém de Ilha de Maré
vendendo o seu produto, da pesca ou da agricultura, ou artesanato.
p. 68
Tinha muita banana também, não é à toa que a gente tem esse nome de Bananeiras, quem acabou com a produção da gente foi a contaminação. Mas a gente tinha
uma produção grande de bananas, então plantava de tudo, mesmo bem menina eu
ia para a roça com pai e era toneladas de tomates, de cana, uma produção incrível,
abacate, banana, manga, … Mas agora, a gente infelizmente tem que comprar manga,
porque a gente perdeu com a contaminação.
Então, sabe, me incomodava muito a gente ter que dar um pau danado pra ter a
fartura de comida que a gente tinha, aqui todos nós da família inteira trabalhava, e aí
ter que o fazendeiro, ele fazia questão de na época da colheita, ele colher os frutos
melhores, e dava uma tristeza muito grande ter que ver pai, e meu avô, o tempo todo
ter que passar por aquele processo, vivendo o tempo todo naquela situação.
Mas, ao mesmo tempo a gente pensava: ‘Mas a terra não é de pai ?‘A terra não é de
meu avô? Será que é justo o que esse fazendeiro faz?’. Assim, que a gente pague, mas
pague o que é justo pra nós. Isso incomodava muito. E no final, a gente era convencido
por eles mesmos, (pai e avô), de que era justo, a terra é de ‘não sei quem’. E a gente
ficou um tempão na mão das famílias, da família Maia, na mão da Fazenda Maria José,
que era aqui em Bananeiras, a gente ficou um tempão nessa situação.
Outra coisa que nos chamava bastante atenção, principalmente de nós que éramos
mais novos, era que a gente não tinha onde fazer casa, e a gente não podia fazer
casa. E que se fizesse casa… E isso eu tô falando de muito recente, até 2002/2003
as famílias pagavam arrendamento porque construiu casas.
Então quando chegou em 2002 a gente foi surpreendido pela família Maia dizendo
que tinha vendido para um grupo de advogados a fazenda, a fazenda Martelo, que
incluía um pedaço daqui de Bananeira. Que tinha vendido para esse grupo de advogados e que a partir daquele momento a gente ia ter que passar a pagar arrendamento
para aquele pessoal, e que a gente também, além de pagar o arrendamento, eles
aumentaram o valor, e aquilo foi a gota d’água.
E aí em 2003, quando já não aguentava mais essa agonia de pressão de fazendeiro,
a gente começa a fazer reuniões para saber como é que a gente ia dar conta disso. A
primeira ideia foi não aceitar a pressão, mas não sabia como fazer. E eu tô aqui pulando
etapas, porque tiveram casas com ameaça de serem desmanchadas, e a gente ia para
o enfrentamento, para não deixar. Então posso dizer que sempre teve conflito em Ilha
de Maré, pelo acesso à nossa terra, pelo direito de produzir livremente, só que não
tinha tanta visibilidade, mas sempre teve [luta].
E aí, a gente se junta com esse pessoal que estava passando também por muitas
situações, que teve pessoas que foram presas porque enfrentou essa família, de
fazendeiros Maia. E aí foram presos, e tiveram suas mercadorias destruídas na feira,
chegou policial para dizer que tinham roubado e tal, e então a gente se junta para
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fazer reuniões, e é nesse período de 2002 para 2003, que é quando Luiz Inácio
Lula da Silva chega no poder, e a gente sabe da notícia desse processo de certidão
quilombola, dos direitos quilombolas.
E aí, a gente começa a cutucar os mais velhos, né? E meu bisavô nessa época já
tinha falecido em [19]90, e em 2002/2003 a gente começa a resgatar com os mais
velhos que tinha, as histórias. Como foi que a gente chegou aqui e tal. E a gente coloca
tudo no RTID de Ilha de Maré.
Todas essas histórias que a gente conseguiu resgatar, e eu particularmente fui me
encantando muito pelas histórias, e até hoje quando a gente vai conversar com os
mais velhos, eles trazem e é muito doído para eles, lembrar de muita coisa, muita…
situações difíceis assim, que passaram.
Então, quando a gente começou essa discussão de comunidade remanescente
de quilombo, eu lembro que o povo tinha muito medo, e achava que iria sair briga
com os supostos donos da terra. Então os pequenos latifundiários começaram a dizer,
“eles querem tomar minha terra”... e a gente dizia, a ideia não é essa, pelo contrário,
é ampliar, e tal… Mas como os fazendeiros espalharam essa notícia, de dizer que a
gente queria tomar as terras deles, as pessoas que tinham pequenos lotes de famílias,
começaram a se sentir ameaçados… E aí teve comunidades que não quiseram fazer
o enfrentamento.
E por isso, as comunidades certificadas hoje são Bananeiras, Maracanã, Porto dos
Cavalos, Ponta Grossa e Praia Grande. As comunidades que ainda não são certificadas
são as comunidades de Neves, Santana, Botelho, Caquenge… O pessoal fala que tem
uma relação mais com os holandeses, que chegaram por aqui, na época da guerra,
tem outras histórias da ilha de Maré que conta mais dessa parte. Tanto que desse
lado as pessoas são mestiças, a maioria é negra, mas tem algumas pessoas brancas.
Então é mais difícil fazer também esse debate nessas comunidades porque eles não
se reconhecem como quilombolas, mas a gente sabe que o racismo faz isso, né? Tira
nossa história das cabeças das pessoas. E faz achar que porque tem a pele mais clara
e influência holandesa não é quilombola. Então o medo mexe muito com a cabeça
das pessoas, né?
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Mas hoje se você perguntar a eles, eles se arrependem, quando começam a chegar
os direitos, né? O povo vai tendo mais confiança…Por ser comunidade remanescente
de quilombo, se lamentam, e estão em processo de certificação. A comunidade de
Botelho já pediu a certidão e estão nesse processo.
Francine: ‘Nega’, sua leitura sobre essa relação da organização do território diante dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha evidencia um
processo muito particular e ‘escuro’ (CARNEIRO, 2011) de defesa do território, como você muito bem coloca. Ou seja, é nessa relação profunda da
comunidade com a natureza e com a terra que o povo se sustenta, mas muito
além disso, reproduz valores e práticas que existem e resistem há gerações, então tem um caráter muito particular da força ancestral do saber
artesanal de se relacionar com a terra. E outra questão importante que
você traz é perceber que esse conflito pelo direito ao território é historicamente relacionado ao processo de expropriação da terra. Então não é a
política institucional dos governos Lula e Dilma que mobiliza o território
de Ilha de Maré a se organizar, mas ao contrário. Ao reconhecer que a luta
preexistente do território pelo direito à terra e aos seus modos e valores
de referência político cultural se tornam política de Estado, encontram
um caminho de conquista de direitos pela institucionalidade. Como a gente
sabe que este mesmo período destes governos também foram o período de
acirramento dos conflitos mais pautados na questão ambiental, gostaríamos
que você comentasse um pouco mais como se deu a organização do território
a partir dos processos de contaminação do solo, da água, do ar...
Eu tenho uma imagem que fica na minha cabeça, que pai me contou… Quando ele
começa a identificar o Porto de Aratu como uma ameaça a nossa vida, aos nossos
modos de vida… Pai disse que ele era menino quando meu avô Candido na década de
[19]70, [19]60 e poucos, quando começam a aparecer as primeiras luzes onde hoje é
o Porto de Aratu. E ele perguntou, ’meu avô o que é aquilo? ’, e meu bisavô respondeu
para ele, ‘ali é o fim da vida da gente’. Então, imagine na década de[19] 70, em plena
ditadura, ele ter essa consciência de que ‘é o fim’, ali acabou a vida da gente… e ele
disse que sentiu muito medo.Trazendo para o contexto da chegada da Petrobras,
gente vocês não fazem ideia das histórias que tem com a chegada da Petrobras aqui
em Ilha de Maré. Vou contar algumas.
A Petrobras chega na década de [19]60,[19]70. Mais ou menos na mesma época do
Porto de Aratu, um pouco antes. Então assim, primeiro que a Petrobras, como todos
os empreendimentos, chega com o discurso de que vai trazer o desenvolvimento e
riqueza para comunidade…Só que na verdade o que trouxe não foi bem assim.
Tem um jovem na comunidade, uma das lideranças que a gente tem aqui. Ele sofre
muito e não gosta de falar da Petrobras…Porque o irmão dele morreu dentro de um
Dique que a Petrobras fez, um lago. Tudo aconteceu em um dia, que não tinha água,
porque no verão faltava água nas fontes, a mãe foi nesse Dique para lavar roupa e
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levou o irmão. Esse irmão se afogou, e ele viu o irmão se afogar sem poder fazer nada
para salvá-lo. Esse Dique, feito pela Petrobras dentro do território. Então a Petrobras
vem com esse discurso de trazer riqueza, mas na realidade trouxe morte. Trouxe dor
para a comunidade.
Outra história de dor são a dos filhos da Petrobras, dos funcionários da empresa que
chegam para trabalhar na comunidade e se relacionam com as mulheres, e deixam
os filhos para trás... E essa história é muito comum em Ilha de Maré. Várias mulheres
na comunidade do Martelo, Ponta Grossa e Porto dos Cavalos, elas têm filhos da
Petrobras. Isso porque a mão de obra daqui não foi aproveitada, a mão de obra das
pessoas de Ilha de Maré, a Petrobras trouxe os homens de fora.
Para vocês terem uma ideia, a Petrobras tem poços nas comunidades de Praia
Grande, Porto dos Cavalos, Martelo e Ponta Grossa. E não foi em qualquer lugar que
foram cavados esses poços. Eles têm uma grande extensão, e são dentro da roça da
gente, do espaço que a gente tinha. E ainda que a gente plantasse de meeiro, era a
roça que a gente plantava. Como os nossos avós e nossos bisavôs não eram considerados donos da terra, então esses fazendeiros da família Maia, negociaram esses
espaços, mas sem os moradores saber. E assim, as roças, as casas, os moradores,
tudo foi negociado pela Família Maia como ‘propriedade da Petrobras’, então um dos
primeiros conflitos com a Petrobras foi esse.
A Petrobras, além de fazer os seus poços, para fazer eles, ela precisa abrir caminho
mata adentro, tem esse impacto, eles abrem a estrada, colocam cascalho, cortam a
mata e tal… E depois tem os riscos de contaminação né? Eu conto sempre a história
dos meus sobrinhos, quando eles foram catar goiaba, e um deles encontrou lá uma
chavezinha e abriu uma das válvulas desse poço… E a gente viu o petróleo saindo sem
proteção nenhuma Então assim, o impacto dessas empresas chegando em nosso
território é cruel. Porque a gente tem que conviver com as dores, com os cheiros e os
danos dessas coisas… Todos os pés de mangueira espada morreram, secaram todos
os pés e a gente tinha fartura de manga antes, então a gente atribui à contaminação.
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Outra questão importante de lembrar é que algumas pessoas foram indenizadas
e saíram, especialmente as famílias da comunidade de Martelo. Mas logo depois
elas voltaram mais para cima do território… E assim, os dutos da Petrobras acabaram
passando pela frente da casa das pessoas… E olhe, não é uma relação simples, por
mais agressão que tenha tido, a gente não consegue se desassociar, sair dali e não
voltar mais. Vocês sabem que até pode sofrer um processo de indenização, e sair, mas
tem comunidades que depois voltam, e continuam ali resistindo, porque viu que foi
um erro, o que foi feito.
Assim a comunidade de Martelo, é um desse povo. Não foram muitas famílias, o
pessoal fala que foram umas 06 famílias indenizadas pela Petrobras, mas quando tem
seus filhos e encontram dificuldade de moradia, vão morar onde tinham referências.
Nos lugares de onde saíram, e assim o conflito continua…
Outro impacto muito grande foi o local onde a Petrobras fez o descarte. Era um
manguezal, eu lembro, e que eles danificaram esse manguezal e que agora ele não
cresce mais, ele fica ‘todo nanico’. Em 2012 a gente pediu para fazer um estudo para
ver se esse manguezal estava contaminado, e a mesma coisa com a água do dique,
que a gente percebe que muda de cor, e até hoje não entregaram o resultado para
a gente.
Mas mesmo sem estudo concluído a gente sabe que esse mangue ‘nanico’ tá
contaminado, porque a gente lembra quando criança, a quantidade de siri de mangue
que a gente catava lá. A gente aproveitava e catava os siris enquanto mãe e pai estavam cortando as bananas, e a gente ficava o dia todo na roça… Hoje, a gente não faz
mais isso, o mangue ficou muito miúdo, ficou raso, e a potência que era do pescado
já não tem mais.
E tem também os poços que estão dentro do mar, e até no mar eles disputam
com a gente. Tem um lugar que é de descarte de resíduos, que sabe lá de quê, dos
resíduos da refinaria. Nesse lugar eles cavaram um tanque, dentro do mar, é um buraco
gigante e a gente chama essa área de ‘lama podre’. Quando a maré enche, ela levanta
e fica boiando. Essa ‘lama podre’, a gente deu esse nome.
Vocês não imaginam o medo que a gente tem dessas coisas que a poluição trouxe,
mas ainda assim é um lugar que a gente marisca, que a gente pesca, pai transferiu
um medo para gente, ele disse, que quando minha irmã mais velha tinha meses de
nascida, teve uma explosão na refinaria Landulfo Alves que diz que foi um horror,
assim, muito medo.
Em 2013/2014 teve outra explosão, que está registrada no filme documentário
15
‘No Rio e no Mar” , e pelo filme vocês vão perceber como a gente ficou com medo,
por ter os relatos também do que já aconteceu.
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Então, assim, os conflitos que a comunidade vem sofrendo tem me modificado
bastante, porque eu costumava ser mais calma, eu era mais orientada pelo vento, pelo
tempo da maré, mas aí quando a gente abre os olhos para as violações de direitos
a gente vai se modificando. Então eu me modifiquei muito depois da consciência da
violação dos meus direitos e do meu território. Quando a gente começa a enxergar que
a ganância do capital é tão grande a ponto de causar racismo, que adoece, que mata,
que oprime, que enlouquece. Quantas pessoas na comunidade foram adoecendo e
deixando de ter tantas garantias de direitos que era pra ter?
É tudo muito triste. Pra vocês terem uma ideia, a Ilha de Maré tem 14 poços ativos e
os de gás já têm ligação direta para a Refinaria Landulfo Alves, juntando os que estão
em terra no território, ainda ativos e o que está no mar.
Luana: O racismo estrutural enraizado na nossa sociedade reproduz padrões coloniais muito evidentes na sua fala. Na perspectiva de um novo
sujeito social, definido por uma identidade política de direitos coletivos
(ARRUTI, 2003) “nas comunidades remanescentes de quilombo” preconizada
16
na ADCT da CF 88 , a gente percebe que as práticas sociais de determinados valores culturais racistas permanecem. A ideia de remanescente de
quilombo, por exemplo, coloca a questão quilombola como ‘congelada’ no
período da escravidão, e as comunidades negras que se reconhecem como
descendentes dos africanos, aqui escravizados, precisam a partir desses
processos de luta, enfrentamento e resistência demonstrar aos fazendeiros, e ainda mesmo que tardiamente à sociedade, que o quilombo histórico, não se encerrou oficialmente em 1888. Nesta perspectiva de ter que
lidar com o racismo estrutural na interlocução com o Estado Brasileiro
por direitos, gostaríamos que você avaliasse a organização das comunidades da ilha em relação às políticas institucionais de reconhecimento
do território?
Então, a gente que viveu essa perda de direitos pela contaminação, a gente sofreu
muito, sabe? Mas assim, a gente nunca aceitou as condições de vida que a gente vivia,
né? Então, quando a gente via, essas empresas muito próximas, enriquecidas, cheias
de dinheiro, às custas da nossa soberania alimentar e do nosso bem viver, a gente se
incomodava muito de ser tão próximo de Salvador e a gente não ter as garantias das
políticas públicas.
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Água mesmo é muito recente. O acesso a água tem muito poucos anos, tem 23,24
anos que chegou água encanada em Ilha de Maré. Energia tem trinta e poucos anos,
35 anos que chegou em Ilha de Maré. E a gente sempre com os mais velhos, com
todo mundo, a gente fazia abaixo-assinados em época de eleição que os mais velhos
levavam para entregar aos vereadores, deputados que se aproximavam em época de
eleição, e nada das políticas públicas e infraestrutura chegarem. Então sempre teve
esse incômodo.
Mas aí a gente também precisa reconhecer, que antes a gente tinha esse incômodo, mas para as comunidades tradicionais as informações sobre os direitos, elas
não chegaram logo, na verdade hoje a gente sabe que nos foi sempre negado pelo
Estado Brasileiro.
Então a gente consegue acessar as informações sobre os direitos que a gente
tinha, com a chegada do CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores, que chega na
comunidade fazendo um diagnóstico, na verdade algumas pessoas, porque antes não
tinha CPP na BTS (Baía de Todos os Santos), e aí uma das comunidades pesqueiras
que eles escolheram para fazer um levantamento da situação, e um diagnóstico foi
Ilha de Maré, e aí eles começaram esse processo de mobilização das comunidades.
A CPP chega aqui em [19]99, 2000. Neste período eles fizeram o levantamento, o
diagnóstico da ocupação e dos conflitos vividos pelas comunidades da ilha (Ver Fig 02).
Na verdade, o objetivo do levantamento/trabalho era criar uma equipe da pastoral aqui
na BTS. Então fizeram esse levantamento, apresentaram esse diagnóstico, e então eles
começaram a pontuar alguns exemplos que a gente não via como ameaça. Ou melhor,
a gente via a ameaça mas não sabia o que fazer, né? Tinha aquela imagem, aquela
ideia de que por ser uma contaminação realizada por grandes empresas do governo e
multinacionais, a gente não tinha força.... que era o caso do Porto de Aratu, a Refinaria, etc.
E aí também trouxeram, a CPP, as informações, por exemplo, de que era possível
sim reverter esse quadro, esses conflitos territoriais que antes a gente achava que
não tinha como reverter. Foram eles que trouxeram, e apresentaram para nós, e que
foi muito importante, e na verdade foi fundamental na chegada deles, os caminhos
institucionais do Ministério Público, da Defensoria Pública, que antes a gente não sabia,
que existiam esses caminhos.
E é durante esse período também que chega a notícia da possibilidade da certidão
quilombola, no primeiro governo Lula. E tanto que nós somos uma das primeiras
comunidades certificadas, aqui em Porto dos Cavalos, e Praia Grande. Nós fomos
as comunidades que tiveram a certidão logo, 2004 a gente consegue a certidão de
remanescente de quilombo.
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Então a gente já estava mais ou menos organizado, em 2004. Foi neste período
que a gente teve a formação feita pelo CPP, a formação de conhecimento dos nossos
direitos, que a gente ia brigando, e foi quando também, nesse período a gente retomou
a colônia, que antes foi fundada por pescadores, e naquela época quem estava eram
empresários, então a gente retoma a colônia e faz todo um processo de organização
em torno da pesca. Então é muito bonito esse processo de organização, neste período
porque vai se somar às articulações que a gente travou para o processo de certificação
e elaboração do RTID.
Então, eu já falei né? As comunidades que foram certificadas foram Bananeiras, Porto dos Cavalos, Ponta Grossa, Praia Grande e Maracanã, que
são as comunidades reconhecidas pelo Estado. Porque infelizmente tem uma
questão muito chata como comunidade quilombola, que é essa necessidade
de ter que provar o tempo todo que é quilombola, ter que apresentar documento de certificação, mas Ilha de Maré toda é um quilombão, né?” Então
eu não gosto, eu tenho uma dificuldade muito grande… Assim, eu acho um
absurdo a gente ‘ter que’ aceitar de que o Estado, ele tem a necessidade
de o tempo todo ficar - eles precisam - pois não basta eu dizer que eu
sou negra, e que eu sou Marizélia e moro na comunidade, eles precisam
que eu tenha uma certidão. Eu tenho que ter um RG, um CPF.
O Estado precisa dizer ‘quem eu sou’, eu tenho que ter um número, eu tenho que
ser identificado, e continua aquela mesma coisa, assim, na minha opinião. ‘Nega’ é de
quem, né? ‘Nega’ é do Estado? Pertence ao Estado?
Então eu tenho essa dificuldade muito grande de aceitar esse comportamento
do Estado, não basta para o Estado, para o País, que para a gente garantir os nossos
direitos, não basta se auto reconhecer, tem que constantemente provar quem eu sou,
mas quem eu sou não vale nada pra eles, pra eles somos números.
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Figura 02: Mapa da
BTS Identificando Ilha
de Maré e os Conflitos
Territoriais. Fonte:
Campo 2013-2021, INCRA
2017; Elaboração:
CORDEIRO, Paula Regina.
Eixo 3: Limites da institucionalidade diante
do racismo estrutural do Estado Brasileiro
Francine: ‘Nega’, seu relato até aqui traz uma lucidez política incrível
para refletirmos sobre o ‘direito ao território’, ou como aprendo com suas
palavras e algumas autoras do feminismo negro, traz uma leitura política
extremamente ‘escurecida’, (CARNEIRO, 2011), de organização social e sobre os caminhos da institucionalidade na luta por direitos. Gostaríamos,
então, de aprofundar com você um pouco mais a reflexão sobre os limites
da institucionalidade. Você nos traz como foi importante a articulação
e organização do MPP, o apoio e parceria da CPP, a construção do RTID, o
processo de mobilização da comunidade na elaboração deste relatório, então tem um lado positivo da institucionalidade né? Que é alcançar algumas
etapas da luta por conquistas de direitos. Mas seu olhar sobre a lógica
de operar a institucionalidade do Estado é preciso e cirúrgico. Principalmente quando você pauta o racismo como estruturante do Estado. Então
será que você poderia nos contar um pouco mais sobre como você vê esses
caminhos da institucionalidade? O que é bom neste processo de se organizar para alcançar um reconhecimento institucional e até onde a gente pode
ir para não cair na mesma arapuca, digamos assim, que outros já caíram?
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Na verdade é isso mesmo, a gente enxerga a institucionalidade como instrumento
que a gente precisa se apropriar para garantia dos nossos direitos…Porque assim, eu
lembro de menina quando pai ouvia a voz do Brasil no rádio, com meu pai e meus avós,
que a gente realmente precisa que se faça uma reforma agrária. Então assim, essa
discussão da reforma agrária, ela é muito antiga, da importância da reforma agrária.
E aí, entendendo com eles, a gente ficava pensando, será que realmente a questão da reforma, se ainda tinha alguma dúvida sobre o negócio, e tinha toda aquela
discussão que era o MST que nos pautava, e aquela coisa de tomar terra… e pra nós
sempre foi aquela coisa… a terra é de quem trabalha nela, né? Não tem dono, e os mais
velhos diziam: ‘Deus quando criou a terra, ele não vendeu a ninguém’. Então porque
é que tem dono? E a gente ficava naquele incômodo, sempre ficamos incomodados.
Independente, de quem, antes de chegar às organizações, porque antes da CPP
veio a igreja católica, que tinha umas freiras católicas, que trabalham orientadas pelas
orientações de Paulo Freire, e de outras pessoas mais populistas também. Mesmo
antes dessas pessoas chegarem, a gente se incomodava, mas não sabia o que fazer
e como fazer. Então o lado bom da institucionalidade é que a gente aprendeu como
ir pro enfrentamento.
Eu lembro também de outra experiência que foi quando a comunidade toda se
juntou porque tinha um fazendeiro que não queria que uma família daqui da comunidade, finado João e Dona Joana, não queria que eles construíssem a casa deles. Então,
tinha uma casa de barro e a casa já estava muito ruim, os fazendeiros queriam que
eles fizessem a casa de taipa no mesmo lugar. Mas eles diziam que não conseguiam
fazer a casa de taipa no mesmo lugar, porque aí a gente vai morar aonde? E foi fazer
em outro lugar, e chegou esse fazendeiro cheio de capangas, querendo derrubar a
casa dele, e a comunidade toda se juntou, e não deixou.
Então assim, se organizar e aprender sobre nossos direitos é importante para gente
se entender como gente, pra exigir o que é nosso por direito, pra não ficar esperando
do Estado esse reconhecimento.
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Agora, essas políticas que foram pensadas e implementadas pelos gestores, aí na
época de Lula. Essas políticas, a gente sempre viu como instrumentos, que a gente
precisa se apropriar, para a garantia desse direito, né? Para a gente sempre foi muito
certo de que a terra era pra gente trabalhar. De que o território era pra gente viver.
Então, assim, ‘direito ao território’ é isso, é viver o que a gente sempre viveu, é manter
nossas referências ancestrais.Por fim, acho importante dizer que a gente tem feito luta
mas não tem saneamento básico ainda, não tem calçamento, não tem praça, não tem
nada dessas garantias de direito de políticas públicas. O que melhorou um pouco foi
o atendimento no PSF, que chegou um médico e uma equipe... Tem a escola, que
é mais organizada que fica na comunidade de Praia Grande mas que é pra atender
a todas as comunidades até a oitava série. Fora isso a limpeza é precária, não tem
garantia de água encanada, energia elétrica de qualidade. Então a gente tem feito
luta mas vem as mínimas das mínimas coisas.
Francine: A forma como você lê os limites da institucionalidade evidenciam caminhos que tencionam o status quo capitalista do “Estado de
Direitos”: a relação do uso da terra pública enquanto valor inegociável,
em detrimento da relação de propriedade; a omissão dos órgãos na garantia dos direitos fundamentais; a recusa do estado de tutela política na
interlocução com o Estado. Ouvir assim seu relato e suas reflexões nos
apontam elementos para perceber como o racismo mascara o campo político
da luta institucional pelo “Direito ao Território”. Você poderia aprofundar a reflexão sobre Racismo e “Estado de Direitos”?
O que se espera do Estado? - que cumprisse o seu papel, que regularizasse e
titulasse as terras quilombolas, e a terra da gente, mas o que a gente vê na prática, a
depender dos interesses, não anda.
Tem um projeto político, que em ilha de Maré não pode avançar as políticas públicas, não pode avançar a regularização do território, não pode avançar porque na
verdade Ilha de Maré precisa continuar sendo a senzala. Então onde sempre esteve
os casarões, é onde estão as estruturas para manter os herdeiros, e os senhorzinhos,
…Os herdeiros dos donos de engenho ricos.
Jussara Rêgo, em sua tese de doutorado, ela chama a atenção disso, que a gente
ficou impressionado, o quanto foi preciso assim, identificar, que onde eram os engenhos, foram construídas, agora, as estruturas que continuam nos oprimindo (RÊGO,
2018). E assim, a gente vai continuar defendendo que precisa fazer uma limpeza no
nosso território, e o que tiver de conflito precisa sair, como por exemplo, os dutos da
Petrobrás. Mas a gente sabe que a máquina que opera é para que a gente não se sinta
gente. A gente não tem que se sentir vitorioso, a gente não tem que se sentir grande,
né? Porque se não a gente vai ter o poder, e o poder não cabe ao povo preto e pobre.
O poder tem que continuar sendo garantido para os brancos.
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Então as estruturas do Estado não foram criadas para atender as demandas do
povo preto. Tem alguns procuradores que até nos escutam, mas não conseguem agir
na velocidade que a comunidade precisa. Eles dizem que tem que cumprir vários ritos
para ser no tempo em que a instituição atua, e aí, a gente denuncia por décadas a
mesma situação e ainda tem nossos processos arquivados. Então, o TAC, (Termo de
17
Ajuste de Conduta) , por exemplo, ele foi celebrado sem a parte mais interessada.
Se fosse depender das empresas nunca existiria um ‘ajuste de conduta’, então quem
solicitou a assinatura deste termo foi a gente. E aí, o Ministério Público Estadual (BA)
do Meio Ambiente, na 6ª promotoria, eles tocam o acordo com as empresas sem a
presença da gente. Então vocês vejam, o MPE-BA, ao nosso pedido, assina um acordo
com as empresas e ignora a nossa presença.
Então não é interessante a gente ser protagonista, não é interessante a gente
defender nosso povo, nosso território. A própria promotora de justiça nos disse que
não conseguiríamos tirar o Porto de Aratu, então que era para a gente se adequar
a essa realidade. Então quer dizer: mesmo que o Porto de Aratu nos mate, diminua
nossa potência de existência, nosso tempo de vida, contamine o ambiente que a
gente vive, ainda assim, não cabe a nós decidir sobre o que tem que acontecer com
estas empresas. O que tem que ser considerado é que o país precisa crescer. O
desenvolvimento precisa acontecer.
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Luana: Ampliando o debate trazido por Francine, um dos principais
tensionamentos do Bem Viver está no diagnóstico de que na América Latina,
esse modelo desenvolvimentista que se propõe como desenvolvimento econômico está estruturado em três elementos, considerados como a causa dos
principais problemas do qual padecem as sociedades latino americanas: a
alienação, a desigualdade e a insustentabilidade (20) (Cubillo-Guevara
et all, 2016). O primeiro deles trazido por Fran, é o sistema econômico
mundial capitalista, sustentado não apenas na propriedade privada como
também no mercado, sendo este, herdeiro da ordem econômica mundial que o
estruturou à nível global, que é a colonização. Esse rearranjo do sistema
mundo eurocentrado se fundamenta também no antropocentrismo, no domínio
do homem sobre a natureza, e não como parte dela. O resultado das diversas combinações possíveis e perversas dessa fórmula está retratado em
seus relatos. O etnocídio é uma das formas de extermínio das comunidades
tradicionais, eliminando a perspectiva da reprodução e permanência da
comunidade em seu território original, e principalmente a eliminação dos
seus modos de vida tradicionais, como a pesca, evidenciada nos crimes ambientais relatados. Em toda a sua fala você gradativamente pontua aspectos
que questionam esse modelo socioeconômico de desenvolvimento proposto e a
relação com todo o aparato estatal… e podemos perceber a profundidade da
sua crítica não a um governo especificamente, mas a um padrão hegemônico
(mundial) ao qual estamos todos submetidos, onde contraditoriamente,
quem vive da terra e é conectado à ela nas suas mais plurais dimensões,
(SANTOS, 2018), “paga” a conta dos que vêem a terra apenas como mercadoria,
como recurso a ser explorado. Você pode “escurecer” um pouco mais essa
reflexão sobre a relação RACISMO X DESENVOLVIMENTISMO para nós?
Outro dia eu estava numa ‘live’ numa escola daqui de Ilha de Maré, e um aluno que
perguntou o que era racismo institucional … e, bem esse termo para a gente é muito
novo, e eu expliquei do jeito que eu entendo:
Desenvolver, sem reconhecer que já tem um povo que desenvolve, e esse povo ele
não pode ser consultado, ele não deve ser consultado, porque não cabe a esse povo
a decisão de que, o que é que entende como desenvolvimento e a esse povo não
cabe a decisão de que naquele lugar, não caberia esse modelo de desenvolvimento.
A nós não é dado o direito de que não cabe esse modelo, e os argumentos é que
precisa crescer, precisa crescer e desenvolver o país, e aí dane-se que se para crescer,
e desenvolver, dane-se que seja para matar um povo (suspira).
Então esse racismo além de ser estrutural, ele consegue ser tão perverso que essa
estrutura ela vem num formato de um rolo compressor, passando por cima de todas
e de todos, e que na maioria das vezes, com o aval do estado, que aí são os órgãos
ambientais, tanto estadual como federal, que se precisar matar, mate.
Mate de fome, mate de angústia, mate de sofrimento, mate de dor, mate de tristeza.
Mate. Mas o desenvolvimento, ele precisa acontecer … porque tem que estar no topo.
A Bahia ela tem que estar no topo, de mais empresas, mais emprego, mais renda,
mais, mais, e tem que estar no primeiro lugar, e é um pouco isso.
Gente, eu queria muito não enxergar esse racismo, queria muito, não identificar
que existe esse racismo, queria muito não perceber que somos tão massacrados
sabe? Tem sido muito difícil para mim ver, centenas de pessoas vivendo como se
nada estivesse acontecendo, centenas de pessoas não enxergando esse racismo.
E pessoas que são orientadas pelas empresas, são orientadas pela mídia, que são
orientadas pelo próprio sistema mesmo.
p. 81
Eu queria muito, não carregar tanto esse peso de enxergar o racismo. O racismo
ele adoece, ele entristece, ele modifica a gente.Eu me lembro de quando que eu era
muito tímida, e que eu quase não falava com as pessoas direito, eu gostava muito de
rir, eu gostava muito de ouvir as histórias de pai, e dos meus avós, de meu bisavô. E
mesmo eu vendo que eles estavam sendo explorados, eu não sabia que era o racismo.
Eu ficava muito, era muito de frequentar a igreja com eles, mesmo que as orações
fossem na rua, porque aqui não tinha estrutura, mas eu ficava assim pedindo a Deus
que meu pai trabalhasse menos, que meus avós fossem felizes, que não precisasse
trabalhar tanto … eu ficava agoniada quando via minha mãe, minhas avós, minhas tias
… quando chegavam da maré, ter que cuidar de casa, ir para a fonte pegar água, e
fazer lenha, e catar marisco e cuidar da gente. E eu não entendia que era racismo
aquela situação.
Não entendia que não ter água potável, não ter energia … eu não entendia que
era racismo. Não entendia que era racismo na época das eleições, o povo da cidade,
os brancos da cidade, virem na comunidade juntar o povo e dizer que para melhorar
alguma coisa, precisava votar neles. Eu não entendia que era racismo quando eu via
o Porto de Aratu, e as empresas numa potência, e eu ficava pensando o quanto que
deve ser rico, porque tem muitas lâmpadas, muito barulho, muito gasto… eles devem
ser ricos, muito ricos. E o que chega para nós? Eu não entendia que era racismo.
E eu não entendo até hoje, como se perpetua esse racismo, que são contemplados,
pelas empresas, pelos governantes, que alguns deles até são assessorados pelos
pretos, e que tem, cumprem o papel de conivente com esse racismo, e que faz o
discurso que é contra o racismo, e aí, assiste de longe os ataques que as empresas
fazem a esse povo que é preto e que é pobre, e que a única coisa que nos move é
pelo direito à vida.
18
Continua o INEMA , vendendo a nós, a nossa comunidade aos brancos, ofertando
a nossa comunidade, e algumas vezes deve até mostrar a beleza das mulheres, o
encanto da comunidade… e a cultura do nosso povo. Esse racismo que ele tem como
aliado a contaminação que nos mata. A gente vai continuar brigando, mas a contaminação nos mata, e vai favorecer o projeto político do racismo.
p. 82
Eixo 4: Leitura de conjuntura e caráter
pedagógico da luta quilombola de Ilha de Maré
Francine: Sua fala é uma verdadeira aula, ‘Nega’. Nos faz pensar na
conjuntura macropolítica atual. Em como o discurso desenvolvimentista fomentou a plataforma política do Estado Brasileiro rumo a um extremismo neoliberal. Porque se pararmos para refletir sobre o contexto
macro político atual brasileiro a partir do projeto desenvolvimentista
de ‘progresso’ assegurado historicamente em nosso país, mas com potencial ressignificação e reestruturação do capitalismo no Brasil assentada
nesta pauta ao longo dos governos Lula e Dilma, principalmente quando
a gente parte de projetos petrolíferos, de mineração, etc, fica evidente
para o leitor, como a luta quilombola de acesso à terra foi invisibilizada, subestimada, cooptada e até mesmo ignorada quando se pauta seus
princípios de existência e identidade na afirmação política. Você trouxe
até aqui poderoso relato sobre sua trajetória de afirmação identitária e
territorial, passando por uma reflexão profunda sobre a organização das
comunidades da Ilha de Maré e sua interação com a institucionalidade na
luta por direitos. Finaliza sua reflexão trazendo elementos fundamentais
para refletirmos sobre ‘como caminhar pela institucionalidade’ a partir
do tensionamento de aspectos estruturantes do Estado Brasileiro como a
propriedade privada, o racismo e o próprio projeto desenvolvimentista
de governo. Seria possível, então, encerrarmos esta entrevista com sua
análise de conjuntura sobre nossa macropolítica?
Luana: Gostaria de complementar a pergunta de Francine te pedindo para
trazer um recado para quem está na luta hoje por terra. Qual o seu recado para os mais novos? Para quem está começando a ter consciência de
seus direitos?
Sobre análise de conjuntura política, a gente costuma dizer que a gente tá até
‘marcada’, eu, Edielson, Elionice, Rose, aquela galerinha nossa. O povo não gosta de
chamar a gente pra fazer análise de conjuntura da política quilombola porque sabem
que a gente vai falar mal do PT. Então pra eles, é melhor que a gente não vá. Tem
uma frase que a gente costuma usar muito que è ‘Entre a esquerda e a direita estão
os territórios em conflito’. Então, eu costumo ter o cuidado de dizer que não é uma
questão de votar em Lula ou não votar, a questão é: Porque o PT não fez e não faz
autocrítica? Porque muito do que a gente sofre foi por conta do que o PT fez... E na
minha avaliação, acho que tem uma contribuição muito grande do PT para chegada
p. 83
desse Bozo. Então fico muito incomodada com essas lideranças que agem e falam
como se não tivessem contribuído em nada com esse governo de hoje.
Os desmontes que estão vendo hoje nas políticas públicas foram apoiados por
essas lideranças, porque a gente sabe que a omissão também é apoio. E aí, nós do
Movimentos dos Pescadores, podemos falar disso, o Movimento Indigena, também
pode, assim como os quilombolas também, ao mesmo tempo que os anos de governo
PT trouxeram uma série de políticas públicas que beneficiaram a população mais
vulnerável, a gente pode fazer uma lista dos equívocos que eles fizeram. Tomadas de
decisão assumidas pelo PT que destruíram com a vida de muitos territórios tradicionais.
Então, assim, a gente pode trazer a análise de conjuntura para aqui na Bahia sob
a gestão de Jacques Wagner, que diminuiu a poligonal da RESEX da Bacia do Iguape
em função da construção ilegal do Estaleiro Enseada do Paraguaçu, que abriu precedente para o que está acontecendo agora com a RESEX de Canavieiras. Quantas
comunidades pagaram muitas vezes com a própria vida o preço do desenvolvimento
e dos interesses dos grandes empresários? Eu fui a uma reunião governamental nos
últimos momentos de Dilma no poder e vi o Ministro de Meio Ambiente pegar todas
as solicitações de criação de RESEX e tratar as poligonais das comunidades como um
bolo e fatiar os pedaços das fazendas dos latifundiários. Então, quem começou com
o desrespeito às poligonais de delimitação dos territórios tradicionais?
Quem criou a lei anti-terrorismo que arrefeceu vários movimentos sociais foi a
gestão de Dilma. Quem tá licenciando a duplicação do Porto de Aratu? Quem começou
o processo de leiloar a Refinaria Landulfo Alves, gerando tantos conflitos entre os
petroleiros? Quando não era governo do PT conseguimos engavetar o licenciamento
da duplicação do Porto de Aratu, mas mesmo com todos os impactos socioambientais
tão nocivos para nossos territórios, o PT passou por cima com esse licenciamento.
Então, assim, é muito difícil pra nós, para os territórios tradicionais, não fazer o
debate do desenvolvimentismo. E agora, com esse Bolsonaro no poder, o PT quer
vir pra nós com esse mesmo discurso ruim com Lula, pior sem ele? Na verdade,
provavelmente todos os partidos de esquerda se tivessem chegado ao poder fariam
o mesmo porque a questão é estrutural.
p. 84
A gente tá cansado desse debate, a gente ouve isso desde o governo Dilma.
Enquanto isso, as mesmas alianças que geraram essas tomadas de decisão continuam sendo feitas. Então, assim, o que é que vai ser negociado nessa forma de fazer
política, às custas de nossos territórios, às custas de nossas vidas? Porque os ruralistas
continuam com seus interesses garantidos. A Katia Abreu esteve no governo Dilma e
continua no apoio a Lula. Ela acabou com a vida da gente quando esteve na gestão
do Meio Ambiente.
E aí quando a gente começa a fazer a crítica ao partido é comum a gente ouvir
que Rui Costa é de uma tendência mais próxima aos empresários, só que pra mim
não interessa, se é PT, se é partido dito de esquerda. E depois, a gente que tá na luta
há muito tempo, a gente sempre ouviu o discurso de que o Brasil precisa crescer.
E historicamente quem cresce são os mesmos de sempre, e sempre às custas das
comunidades, destruindo a vida da gente, diminuindo o tempo de vida da gente.
É muito cruel, nosso pescado está ameaçado em nome do desenvolvimento. Esse
modelo posto de desenvolvimento só faz a gente perder. A gente perde nossas terras,
a gente perde nossa saúde, a gente perde nossa cultura, as nossas referências. A gente
perde as nossas vidas. Pra nós é só perda. Quem ganha é o partido que recebe financiamento de campanha da OAS, da Odebrecht, Braskem, Dowchemical, Dias Branco,
Petrobrás, etc, ganham as empresas que têm seus interesses e lucros garantidos.
O Estado trabalha a serviço dos partidos e das empresas. Você vê: o INEMA, trata
a política ambiental como um balcão de negócios. Eles ficam o tempo todo rifando
as comunidades com o discurso de que não pode barrar o desenvolvimento do país.
Então essa leitura política de desenvolvimento do Estado e das empresas não nos
representa. Então, o que eu acho é que nosso movimento precisa fazer uma avaliação
com os outros movimentos e apresentar as propostas das comunidades pro Lula pra
ver o que ele vai se comprometer. Aí vamos pra cima.
E depois, o partido tem crescido em termos de representatividade negra, eles
são colocados em cargos importantes mas em troca têm que fazer o discurso do
Estado. São os negros que o Estado cooptou pra diluir a luta da negrada. O que é a
19
SEPROMI , gente? Eles servem pra encenar uma atuação pra acalmar o conflito mas
nunca conseguem atender aos interesses do povo negro. E isso foi o que aconteceu
20
com a SEPPIR também na esfera federal. Se eles sabem que vai acontecer algum
levante do povo negro eles são acionados pelo Estado para calar a boca e a voz do
povo negro em conflito.
Então, o que eu tenho falado muito pra quem vem depois é que a luta que a gente
faz é pra reduzir o medo que a gente vive. O medo de não poder plantar, de não poder
pescar, o medo de ver nosso povo passar fome, ver nosso povo adoecer.
p. 85
Eles continuam enriquecendo até hoje em cima da miséria e da exploração do
nosso povo. Como é agora o caso do Projeto Bahia Terminais, que não se contenta em
destruir o manguezal, e quer destruir as pessoas que vivem do manguezal. A mesma
coisa pra Braskem, a Petrobras, etc.
Então o meu recado para os mais jovens é que precisamos continuar a luta para
reduzir o medo do poder da ganância, que vêm dos herdeiros da Casa Grande, dessa
opressão que é histórica.
Luana: Não podemos deixar de registrar a admiração e a honra de poder
fazer essa entrevista, e reconhecer o privilégio da oportunidade de entrevistar uma liderança com a qual a gente se identifica e reconhece os
mesmos valores éticos, sociais e ambientais. Para nós é muito importante
que outras pessoas te conheçam e se reconheçam, e ainda mais, que subvertam suas referências de pessoas europeizadas, milionárias e famosas
por nada em especifico, por pessoas reais e éticas. A beleza e a força
da fala de uma mãe, uma avó, uma mulher lutadora que está defendendo os
direitos da sua comunidade, e além, o direito a outros modos de vida.
Ao mudar as nossas referências, nós mudamos também os nossos padrões de
atitude, ajustamos nossos valores, nossos ideais.
Para nós (a luta quilombola) é a luta do povo real que resiste e está
fazendo a transformação pela e na terra, não é a luta institucionalizada
pautada nos discursos de esquerda ou direita, é essa luta que está aqui.
Notas
1
p. 86
A ontologia é a parte da filosofia que trata
da natureza do ser, da realidade, a essência
das coisas. Para filosofia política a dimensão
ontológica se constitui da capacidade de se
perceber a natureza, a essência da política, ou ainda, a forma como a sociedade se
institui e estabelece suas relações. Neste
sentido, o presente trabalho comunga com as
ideias de Arturo Escobar (2015) sobre as
práticas sócio-político-espaciais dos territórios originários. Para o autor elas são
um caminho de problematização do ‘direito
ao território’, uma vez que, ao valorizar
e defender seus saberes e modos de vida,
tensionam e evidenciam a ilegitimidade do
projeto globalizador neoliberal de construção do mundo capitalista liberal e secular.
Para o autor, muitas comunidades indígenas,
afrodescendentes e camponesas podem ser vistas como avançadas nas lutas ‘ontológicas’,
isto é, adotando a defesa de seus modos de
vida como pauta inegociável na interlocução
institucional com o Estado Brasileiro na luta
por direitos. Tais lutas podem ser interpre-
tadas como contribuições importantes para as
transições ecológicas e culturais dirigidas
para um mundo no qual caibam muitos mundos
(o pluriverso). Mais detalhes, ver Escobar
(2015).
2
Direitos fundamentais são aqueles inerentes à proteção do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana. Elencados na Constituição
Federal Brasileira, possuem a mesma finalidade que os direitos humanos. A diferença
se dá no plano em que são instituídos: se os
direitos declaram, as garantias fundamentais
asseguram. (BRASIL, 1988, art. 5º).
3
No Brasil, a democracia no “Estado De-
mocrático de Direito” é chamada de democracia representativa, uma vez que esta é
exercida pelos partidos políticos, sendo a
Constituição Federal de 1988 seu principal
ordenamento jurídico. O conceito de “Estado
Democrático de Direito” é oriundo dos princípios básicos do liberalismo: a) defesa da
propriedade privada; b) liberdade econômica (livre mercado); c) mínima participação
do Estado nos assuntos econômicos da nação
(governo limitado); d) igualdade perante a
lei (estado de direito), (Dallari, 2003, pg.
94). Tais princípios são pauta inegociável
na interlocução com a sociedade civil na
garantia de direitos constitucionais. Neste
sentido, para os fins do presente trabalho,
evidencia-se a ilegitimidade do “Estado de
Direitos” pelo seu caráter colonial de poder.
4
A Lei º 9278/2017 ampliou o número de
bairros de Salvador de 36 para 163. Com a
mudança, as três ilhas que pertencem a Salvador - Maré, Frades/Santo Antônio e Bom
Jesus dos Passos - foram oficializadas como
bairros, conforme referências.
5
A Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 20, define os bens da União.
6
O Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação - RTID, é uma peça técnica administrativa realizada pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária - INCRA,
em processos de titulação e regularização
fundiária quilombola.
7
Por força da Constituição Federal Brasileira o patrimônio da União pertence a todos
os brasileiros e é administrado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Entre as
competências da SPU incluem-se, entre outras,
a incorporação e regularização do domínio
dos bens; sua adequada destinação; além do
controle e da fiscalização dos imóveis. Elas
estão descritas no art. 31 do Decreto nº.
9.035, de 2017. Já o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma
autarquia federal, cuja missão prioritária
é executar a reforma agrária e realizar o
ordenamento fundiário nacional.
8
A partir da década de 1950 são implementados na Baía de Todos os Santos, na área
de abrangência da Ilha de Maré (Salvador,
Simões Filho e Candeias) mais de 250 atividades industriais, com diversas empresas e
polos industriais, entre elas a: Petrobras
com campos de pesquisa e lavra de petróleo
(1940/50); Refinaria Landulfo Alves (1959);
Terminal Marítimo de Madre de Deus (1950);
Centro Industrial de Aratu (CIA)(1960), Porto
Organizado de Aratu-Candeias (1975), Polo
Industrial de Camaçari (1978), entre diversas empresas químicas e petroquímicas que
exploram o local e atuam nos polos, como a
Dow Chemical e a Braskem (Fonte: Dossiê Ilha
de Maré, 2015 e sites: https://www.codeba.
com.br/eficiente/sites/portalcodeba/pt-br/
porto_aratu.php)
9
O Bem Viver é um conceito originado
a partir dos conceitos de sumak kawsay em
kichwa e suma qamaña em aymara, traduzidos
(aproximadamente) como vida em plenitude, ao
conviver, ao estar. Longe de ser um conceito
p. 87
uniforme ou definido, a proposta do Bem Viver
se apresenta como visões de uma vida harmônica entre seres humanos e natureza, “uma
vida que ponha no centro a autossuficiência
e a autogestão dos seres humanos vivendo em
comunidade”. (ACOSTA, 2016, p.39) Se apresenta também como uma alternativa aos modos
de vida capitalistas na perspectiva indígena
latino-americana, assumido na constituição
da Bolívia e do Equador como os direitos da
Mãe Terra.
10
Para mais detalhes sobre a contaminação química, ver “No Rio e no Mar”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XpeSNi1gJmA, conforme referências.
11
O engenho de açúcar Wanderley Pinho,
atualmente Museu do Recôncavo Wanderley Pinho
é um casarão do período colonial brasileiro,
erguido em 1760. Localizado no distrito de
Caboto, município de Candeias é considerado
um dos poucos locais do recôncavo baiano
a ter sua arquitetura original preservada.
Mais detalhes em: https://pt.wikipedia.org/
wiki/Museu_do_Rec%C3%B4ncavo_Wanderley_Pinho. Acesso em 05 de outubro de 2021.
12
p. 88
A ideia de “lugar de fala” é originalmente trazida por Djamila Ribeiro (2012), ao
fazer a crítica à colonialidade da produção
de conhecimento que invisibiliza saberes e
vozes de grupos e sujeitos políticos tratados na sociedade patriarcal capitalista como
inferiores. Essa invisibilidade de sujeitos e
vozes mantém as mesmas condições históricas
e estruturais de opressão. Sendo assim, a
ideia do “lugar de fala” tem como objetivo
oferecer visibilidade a sujeitos cujos pensamentos foram desconsiderados durante muito
tempo. Dessa forma, ao tratarmos de assuntos
específicos a um grupo, como racismo e machismo, pessoas negras e mulheres possuem,
respectivamente, lugar de fala. Isto é, podem oferecer uma visão que pessoas brancas
e homens podem não ter. Desse modo, para a
finalidade que o presente trabalho se propõe,
evidencia-se na entrevista o “lugar de fala”
de Marizélia Lopes, ou ‘Nega’, como gosta
de ser tratada, para aprender, entender e
respeitar a luta da entrevistada pelo seu
território enquanto carácter pedagógico para
outras lutas.
13
Para o pensamento decolonial afrodiaspórico a narrativa a partir da ideia de
“corpo-política” e “geopolítica” do conhecimento permite a possibilidade de acessar
múltiplas e heterogêneas reações e resistências contra as hierarquias raciais, assim
como projetos de afirmação e reexistências da
população (GROSFOGUEL, 2012, pg.15). A ideia
de “corpo-política” do conhecimento que se
evidencia aqui encontra muitas referências no
feminismo negro brasileiro e anglosaxônico.
Parte do corpo da mulher negra como epicentro
das demandas sociais e de construção política
de direitos.
14
Em 2004 é promulgado o Decreto nº
4887 que regulamenta o artigo 68 da ADCT da
Constituição Federal, instituindo instrumentos jurídicos inovadores para o processo
de regularização fundiária dos territórios
quilombolas.
15
16
Disponível em:https://www.youtube.com/
watch?v=XpeSNi1gJmA. Acesso em: 27 set. 2021.
A Constituição Federal de 1988, no
artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) define: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
(BRASIL, 1988, p.143).
17
O Termo de Ajuste de Conduta é um
documento utilizado pelos órgãos públicos,
em especial pelos ministérios públicos, para
o ajuste de condutas contrárias à lei. Na
fala de Nega, a mesma se refere ao TAC,
promovido pelo Ministério Público da Bahia,
firmado entre MPE/BA, INEMA, IBAMA, COFIC,
CODEBA, ANTAQ, PARANAPANEMA S.A, BRASKEM e
Município de Salvador para regularização do
licenciamento ambiental, do Porto Organizado
de Aratu-Candeias, em Salvador, na data de
04 dez 2015.
18
INEMA: Instituto do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos, órgão de licenciamento e
fiscalização ambiental do Governo do Estado
da Bahia.
19
SEPROMI: Secretaria de Promoção da
Igualdade Racial, órgão do Governo do Estado
da Bahia responsável pelas ações afirmativas
para o povo negro no estado.
20
SEPPIR: Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
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filh@s e net@s não vende e não pode trocar:
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SALVADOR, Lei º 9278/2017. Dispõe sobre a
delimitação e denominação dos bairros do
Município de Salvador, Capital do Estado
da Bahia, na forma que indica, e dá outras
providências.
p. 89
INCRA. Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação do Território da Comunidade Quilombola de Ilha de Maré. Salvador, BA. 2017.
MINISTERIO PUBLICO DA BAHIA. Termo de Ajuste
de Conduta (TAC) celebram o MPE/BA, INEMA,
IBAMA, COFIC, CODEBA, ANTAQ, PARANAPANEMA
S.A, BRASKEM e Município de Salvador para
regularização do licenciamento ambiental, do
Porto Organizado de Aratu-Candeias. Salvador, 04 dez 2015.
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em: 20 out. 2021a
p. 91
Ressignificação
da herança
afrodescendente
na engenharia e
na arquitetura
de Ouro Preto
Entrevista com
Dú Evangelista
Movimento OuTro Preto
Quem entrevista:
Rodrigo Nogueira
¡DALE! / UFBA, DEARQ / UFOP
Dú Evangelista
Outro Preto: Ouro com o “T” no meio. Outro Preto de Ouro
Preto (cidade) patrimônio da humanidade. Território
reconhecido, historicamente, pela oferta exorbitante de
ouro. Oficialmente, a primeira grande mina de ouro da
1
história ocidental.
Movimento OuTro Preto
A cidade de Ouro Preto é conhecida especialmente por ser, ainda hoje, um
exemplar do período colonial português no Brasil. Foi em Ouro Preto que se
ergueu uma das primeiras minas de ouro das Américas, no final do século XVII.
Inicialmente foi descoberto ouro nos córregos e rios, a partir do modelo de
extração conhecido como ouro de aluvião. Posteriormente, os exploradores
subiram a Serra de Ouro Preto, inaugurando outras duas formas de extração
aurífera, dentro das galerias subterrâneas e pelo desmonte hidráulico.
A cidade de Ouro Preto destacou-se pela riqueza aurífera e se destaca pela
riqueza expressa em seu conjunto arquitetônico e urbano remanescente do
período colonial – com suas ruas de pedra, casarios, palácios e igrejas. Sua
“redescoberta” se deu em abril de 1924, ou seja, logo após a semana de arte
moderna de 1922, pela caravana denominada Viagem de Descoberta do Brasil
que contou com a liderança de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, com afã
de construir uma identidade nacional brasileira. Seguidamente, a cidade foi
declarada Monumento Nacional em 1933 e, em 1938, seu conjunto urbano foi
tombado pelo recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Trata-se, ainda, da primeira cidade a receber o título de patrimônio mundial pela
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),
em 1980. A partir de então, foi construído um entendimento sobre Ouro Preto
como exemplar histórico da cultura brasileira, sobretudo pela sua riqueza e
beleza arquitetônica e urbanística, em especial pelas igrejas barrocas. No entanto,
ao vangloriar Ouro Preto por sua riqueza colonial, exaltando suas conquistas
e feitos materiais, em especial seu conjunto arquitetônico e urbanístico, ficam
ocultados os horrores presentes neste período, incluindo toda a violência (física
e simbólica). A escravização de pessoas trazidas do continente africano e outras
p. 95
originárias das Américas foi também acompanhada da
exploração predatória da natureza. Ouro Preto, por outro
lado, também é símbolo das lutas e dos feitos dos povos
africanos escravizados. Neste processo de construção
histórica sobre os territórios colonizados, objetivando
uma interpretação gloriosa da colonização em prol de
uma definição de uma identidade nacional, se escondeu
a perversidade da colonização, além das contribuições
das populações escravizadas na formação do Brasil que
conhecemos. No campo teórico, alguns pesquisadores
já apontavam para a necessidade de construção de
um outro olhar sobre nossa história, como o historiador
africanista Alberto da Costa e Silva (2009) ao defender
que a “África civilizava a América”, e a historiadora Beatriz
Nascimento (1974) dizendo que esta “outra” história só
pode ser contada pela população negra. Esses estudos
corroboram com a realidade da formação histórica de
Ouro Preto: esta cidade (e sua região), só existe como a
conhecemos pela riqueza do ouro descoberto e extraído
pelos corpos e saberes da população oriunda da diáspora
africana. O historiador negro Manuel Quirino (1918) aponta
que a descoberta da “primeira folheta de ouro encontrada
na margem do Rio do Funil, em Ouro Preto, coube a um
preto bandeirante [...] quem quer que releia a história verá
como se formou a nação, que só tem glória no africano
que importou” (QUIRINO, 1918, p. 148-157).
v.2 n.1
p. 92-103
2023
ISSN:
2965-4904
É neste contexto de invisibilizações, tanto das violências coloniais, quanto do apagamento das contribuições
dos povos escravizados e afrodescendentes, que surge, e
insurge, o Coletivo OuTro Preto, a partir da Mina Du Veloso,
bem como das pesquisas nos campos da engenharia, da
história e da filosofia sobre o legado da população oriunda
da diáspora africana para a construção de Ouro Preto e
região, conforme descrito nesta entrevista ao engenheiro
civil e militante social Du Evangelista. É sobre uma outra
história ouro-pretana, onde se pretende tornar visíveis
e superar as violências coloniais e a importância da diáspora africana na cidade de
Ouro Preto que o Coletivo OuTro Preto repousa, propondo ressignificar o passado para
construir futuros possíveis.
OuTro Preto é antes do respiro, a gritante necessidade
de transgressão da narrativa histórica oficial. Mais
enfaticamente, a junção de forças que nos autoriza
e legitima, neste instante, a atear fogo, quebrar
paradigmaticamente o estatuto do escravo, que sustenta, até a
atualidade, um discurso de verdade oficial que se guia por uma
2
mentalidade racista.
Movimento OuTro Preto
Até o ano de 2005 constava na bandeira do município de Ouro Preto, Minas Gerais,
Brasil, o dizer em latim Proetiosum tamen nigrum, que significa “precioso ainda que
negro”, fazendo referência ao aspecto do ouro coberto por óxido de ferro encontrado
na região no final do século XVII. Tais dizeres, que perduraram na bandeira desde 1930,
foram removidos como resultado da luta de atores do movimento negro da região,
uma vez que a expressão à negritude era depreciativa. Este é um exemplo simbólico
que as violências coloniais persistem até a atualidade, mas, como em toda a história,
tais violências não passaram, e não passarão impunes. No entanto, até mesmo as
lutas e vitórias da população negra ouro-pretana ainda hoje sofrem com a usurpação
do protagonismo pelos que estão no poder, como contado por Du Evangelista. Ele
mostra-nos que as violências não cessaram, como também não cessaram as resistências, sublinhando que o movimento negro e o Coletivo OuTro Preto são, mais do
que nunca, necessários.
A cidade é nossa! vem MOVIMENTAR nosso território, por uma
3
OUTRA Ouro Preto possível e necessária!
Movimento OuTro Preto
O chamado acima foi feito em mais um momento de luta do coletivo para discutir
os rumos da cidade, numa altura em que iria acontecer uma audiência pública para
revisão do Plano Diretor de Ouro Preto. Foram diversos encontros para discutir as reivindicações, o que gerou um manifesto buscando garantir maior participação popular e
um direcionamento das políticas urbanas, ambientais e de preservação do patrimônio
cultural para resolução dos problemas e anseios da população negra e periférica.
p. 97
Neste sentido, e partindo da compreensão de que a luta institucional também
seria importante, o Coletivo OuTro Preto organizou recentemente uma candidatura
coletiva para a Câmara Municipal de Ouro Preto, que contou com a participação de
Du Evangelista, Sidneia Santos, Douglas Aparecido e Freda Amorim, pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) nas eleições do ano de 2018. Apesar de não terem sido eleitos,
movimentaram a cena política ouro-pretana, apontando para as questões da negritude
e da Serra de Ouro Preto, periferia da cidade, onde estão localizadas as moradias da
maioria da população trabalhadora e, também, o lugar onde se situam as antigas
estruturas da mineração.
É com todo este “caldo” político-cultural que esta entrevista, entende que Ouro
Preto, a partir do OuTro Preto, é, sim, uma cidade africana fora da África, pois foi construída por saberes e corpos oriundos do continente africano. O que se reivindica não
é só a ressignificação e valorização desta história, mas também que esta cidade seja
assumida e valorizadamente preta, porque entendemos que esta, e seu ouro, também
lhes foram usurpados, para além da liberdade e vidas de gerações de mulheres e
homens africanos.
Para iniciarmos nossa conversa, gostaria que você falasse um pouco de
como surgiu o Movimento OuTro Preto.
4
p. 98
O Movimento OuTro Preto surgiu após a construção da Mina Du Veloso , um espaço
de visitação turística e também centro cultural, no bairro São Cristóvão. Em 2014,
quando essa mina já estava em funcionamento e recebendo pessoas do mundo todo,
houve um encontro de três ouro-pretanos – que no caso fui eu, Du Evangelista, a
Sidnéa Santos e o Douglas Aparecido – de diferentes áreas do conhecimento: eu sou
engenheiro civil, a Sidnéa é historiadora e o Douglas é filósofo. E a partir do trabalho
na Mina, de revisitar o espaço da galeria, entendê-la como grande obra de arte e
de engenharia, a partir de todos os conhecimentos que estão ali dentro, é que nós
começamos a conceituar esse movimento, o OuTro Preto. Temos outra visão sobre
os povos negros que vieram para o Brasil, que leva em consideração as capacidades
e os conhecimentos que eles trouxeram da África para cá. Apesar de todo o processo desumano da escravidão, esses povos trouxeram muito conhecimento que
já detinham e já praticavam em suas terras de origem. Eles vêm para cá com todo
esse conhecimento e fazem essa obra fantástica de engenharia... Então, a partir do
reconhecimento desse espaço, começamos a desenvolver esse conceito de OuTro
Preto, dando ênfase aos legados trazidos por esses povos africanos: a importância e o
protagonismo dos povos negros, principalmente nas importantes ações de mineração,
metalurgia e construção civil. Afinal, toda a cidade de Ouro Preto é construída não só
com mãos negras, mas sobretudo com muitos conhecimentos africanos – como por
exemplo, a técnica de usar utilizar barro como material de construção (pau-a-pique).
Como todas as cidades de origem colonial – construída com base na escravização de populações indígenas e africanas –, Ouro Preto é marcada
por um histórico de violências físicas e simbólicas. Como exemplo de
violência simbólica, consta que até 2005 a bandeira da cidade carregava
os dizeres Proetiosum tamen nigrum – “precioso ainda que negro” –, fazendo referência ao aspecto do ouro coberto por óxido de ferro no final do
século XVII. Tais dizeres, que perduraram na bandeira desde 1930, foram
removidos como resultado da luta de atores do movimento negro da região,
que também denunciam a opressão e a marginalização da população negra e
de seus saberes na atualidade. Quais outros exemplos de violências físicas e simbólicas ainda existem na atualidade? Como você avalia estas
violências em relação à população negra de Ouro Preto?
Apesar do último movimento dessa troca dos dizeres da bandeira, é preciso dizer que esse resultado foi impulsionado pelo movimento negro que se opôs a essa
escrita, despertou para esse ponto e fez uma luta no legislativo que forçou o então
prefeito Angelo Oswaldo (PMDB) a fazer essa mudança. O problema é que, hoje em
dia, o Ângelo Oswaldo se apresenta como o grande realizador dessa redesignação,
quando na verdade quem fez todo o trabalho, toda a movimentação e a mobilização
foram as pessoas dos movimentos negros de Ouro Preto. Então, mesmo nessa troca
dos dizeres da bandeira, houve uma apropriação dessa luta. Outro ponto que a gente
pode ver de violência simbólica em Ouro Preto é o da identidade negra negada pelo
urbanismo: se você olhar o nome das ruas da cidade, os nomes de ruas valorizando
figuras negras são muito poucos, enquanto que vários escravagistas têm nomes de
ruas importantes na cidade e são valorizados até hoje pelos órgãos públicos da cidade. Outro aspeto é que a população negra de Ouro Preto de hoje tem muito pouco
acesso a informações sobre o legado do povo negro. Desde que lançamos a Mina Du
Veloso, a gente vem lutando para reverter isso, mostrando a importância dos povos
negros no nosso município, no país e no mundo, porque a diáspora africana levou
conhecimentos desenvolvidos ao longo de milênios, na África, para outras partes do
mundo e isso nunca é valorizado.
p. 99
5
Ouro Preto é uma cidade com 66,7% de população negra (IBGE ). Como estão
as condições de vida dessa população negra nos dias atuais? Há heranças
do período colonial?
As condições são péssimas. Segundo os próprios dados do IBGE, mais de 25% da
população da cidade, com esse grande contingente negro, vive abaixo da linha da
pobreza, com menos de meio salário mínimo por mês. Essa é a herança desse período
de exploração em Ouro Preto, dos negros após a abolição ficarem relegados à sua
própria sorte, sem oportunidade. E como fruto, desse processo escravizador, ficou
o racismo, que impede que as pessoas negras ascendam socialmente na estrutura
econômica e social. Nessa grande massa de pessoas com baixos níveis econômicos, a
grande maioria é a população negra. Isso é por causa da herança colonial do racismo.
Considerando que a cidade se formou a partir da extração de ouro, tendo sido
o seu conjunto arquitetônico e urbanístico representativo do período colonial tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 1938, e foi declarada como patrimônio mundial pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1980, como
você enxerga as ações institucionais de preservação do patrimônio cultural na cidade? O patrimônio que representa a diáspora africana, como se
encontra nesse conjunto? Como vocês avaliam as influências da colonialidade
nestas ações? Qual é a paisagem produzida pela colonialidade? Seria possível construir uma outra paisagem das cidades coloniais?
O IPHAN é o responsável pela proteção e pela preservação do patrimônio cultural,
mas não levou em consideração outros fatores para se fazer a preservação de Ouro
Preto. Então a cidade sempre foi patrimonializada a partir de uma visão eurocêntrica
dos processos ocorridos, aqui, na região. O IPHAN cuida especificamente para cuidar
dessa “pérola barroca fora da Europa”.
p. 100
Mas, como diz o Douglas Aparecido, antes de ser uma pérola barroca fora da Europa,
Ouro Preto era uma máquina africana de extrair ouro. Esse outro lado da história é muito
pouco falado! O patrimônio ligado à história da mineração e à presença dos povos negros
em Ouro Preto é totalmente negligenciado e abandonado. Basta ver que todas essas
ações de valorização do património ligado à mineração, que são essas antigas minas
de ouro abertas à visitação, são iniciativas particulares dos proprietários de terrenos –
incluindo a Mina Du Veloso – para valorizar e ressignificar esses espaços para o turismo e
a geração de renda, e também para recontar a história do nosso município. As ações do
IPHAN em relação ao patrimônio deixado pelos povos africanos, aqui, são praticamente
nulas. Por exemplo, desde 2006 foi proposto um parque no Morro da Queimada, e até
hoje quase nada foi feito. O Morro da Queimada é um trecho da Serra de Ouro Preto
que ficou muito conhecido pela chamada Revolta de Felipe dos Santos – o que, aliás,
é outra forma de apagar a presença africana em Ouro Preto, já que, na verdade, se
tratou de uma revolta de vários negros que ocupavam esse espaço, dos quais boa parte
morreu nessa queimada. Assim, Felipe dos Santos foi tido como mártir e a revolução
leva seu nome até hoje, nos livros de história. O Morro da Queimada é uma parte de
Ouro Preto que tem muitas estruturas ligadas à mineração e é um verdadeiro parque
arqueológico, histórico e cultural. Porém, o IPHAN pouco ou nada faz para preservar
essa história. Basicamente, a ação do órgão se restringe à chamada Zona de Proteção
Especial (ZPE), não havendo qualquer valorização do entorno.
A paisagem construída no período colonial, simbolizada na arquitetura de casarios,
na verdade, se expande por toda a serra. Várias marcas que nós temos, nas encostas
da Serra de Ouro Preto, são devidas às atividades de mineração, de extração do ouro.
Uma outra forma de mostrar as “cidades coloniais” – embora eu não goste desse nome
– é voltar no passado antes da invasão europeia. Porque aqui haviam os Cataguases,
grandes agrupamentos de pessoas viviam aqui, com uma outra cosmovisão e com
uma outra forma de vida na natureza. Ficaram por aqui por milhares de anos... Essa
história, que se chama de colonial, é recente.
6
O Manifesto OuTro Preto, publicado no portal Terreiro de Griôs, explica
que o ponto inicial do movimento foi a descoberta dessa invisibilização da
riqueza e dos saberes oriundos da diáspora africana na história oficial da
colonização, os quais foram extremamente importantes para a conformação da
cidade de Ouro Preto e para a construção do que chamamos de mundo moderno.
Gostaria que você falasse um pouco deste tema e de como a colonialidade
contribui para o apagamento das epistemologias africanas no Brasil. Ainda,
se você avalia que o pensamento decolonial contribui para romper com o que
o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de “epistemicídio’’.
O pensamento decolonial é fundamental para a gente poder desconstruir tudo
que o Estado brasileiro nos impôs ao longo do tempo. Auxilia a mostrar que, antes da
chegada dos invasores colonizadores, já existia conhecimento em todo esse território
e que, com a vinda dos negros africanos escravizados para cá, houve também uma
migração de conhecimento muito grande. O problema é que as histórias sempre são
contadas pelos dominadores e vencedores. É nessa maneira de contar a história,
sem destacar a importância dos outros povos, e apagando esse sujeito, que eles
trataram com o escravo e a sua condição de produtor de conhecimento, que acontece
o epistemicídio. Aqui mesmo, em Ouro Preto, onde todos os trabalhos foram realiza-
p. 101
dos por mãos negras – todos! –, durante todo o processo de formação acadêmica
nunca é falado aos estudantes da importância dos povos negros na construção da
cidade. Fica parecendo que o negro só serviu como força de trabalho, não trazendo
conhecimento algum...
Quando a gente começa a pesquisa na Mina Du Veloso, vai entendendo que todas
as técnicas e todos os conhecimentos para extrair esse metal precioso da terra, vêm
com os povos negros, que já eram detentores desse saber, a mineração, lá na África
e não o perderam durante a travessia tenebrosa do Atlântico. Chegando aqui, eles
vão deixar esse patrimônio escavado e esculpido em rocha, a materialidade dessa
genialidade africana. No bairro de São Cristóvão, há diversos pontos onde a gente pode
ver todas as estruturas da mineração que mostram a engenharia e o conhecimento
para escavar aquedutos por quilômetros para transportar água por efeito da gravidade,
para fazer o desmonte da encosta para poder acumular o material, para a apuração
do ouro mais fino que a gente tem dentro das rochas (uma espécie de ouro em pó do
qual para fazer a separação da massa mineral precisa haver um conhecimento muito
grande). Todo esse conhecimento foi sendo lapidado ao longo de milênios lá na África.
Isso está aqui, no nosso território, mas nunca é mostrado: é por esse epistemicídio,
que tiraram do negro e dos povos indígenas as suas contribuições para nossa cultura
e para nossa sobrevivência.
Como engenheiro civil, eu estudei na Escola de Minas da UFOP e, lá dentro, durante
meu período de graduação, nunca fui apresentado à história dessa forma. Sempre
se falava que saía muito ouro aqui de Ouro Preto, que o ouro saía dessa ou daquela
forma, mas não se falava quem havia trazido essa contribuição, o conhecimento para
poder lidar com um metal tão nobre e que ao longo de toda a história da humanidade
fascinou e fascina o ser humano. Esse ser, que lida com o ouro, não pode ter a história contada da forma como vem sendo contada nos livros oficiais da história oficial,
nos quais o negro é sempre tratado no segundo plano, como um ser inferior e sem
condições de produzir conhecimento e ciência. O movimento OuTro Preto, então, tem
como objetivo básico e principal, essa ressignificação, para que possamos entender
que somos descendentes de pessoas que tinham conhecimentos fantásticos na engenharia e na arquitetura.
p. 102
Notas
1
O Manifesto OuTro Preto foi acessado em
07/03/2022: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html
2
O Manifesto OuTro Preto foi acessado em
07/03/2022: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html
3
Manifesto do Coletivo OuTro Preto apresentado na Audiência Pública para discussão
da revisão do Plano Diretor do município de
Ouro Preto pode ser acessado em sua página do Instagram: https://www.instagram.com/
outro_preto/
4
5
http://minaduveloso.com.br/
Dados extraídos do censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
de 2010. Acessado em 12/01/2021: https://
sidra.ibge.gov.br/Tabela/3175
6
O Manifesto OuTro Preto foi acessado em
12/01/2021: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/01/manifesto-outro-preto.html
p. 103
artigos
A presença negra no
interior paulista - Brasil
Joana D’Arc de Oliveira
IAU / USP
Vitor Daniel Menck
IAU / USP
A presença negra no interior paulista - Brasil
Resumo
Este trabalho analisa a presença negra no interior paulista
tendo como objetos de observação e interpretação os municípios
de São Carlos e Americana. Para tal, aborda a presença das
africanidades na história e cultura brasileira, destacando as
ações empreendidas pelo Estado e pelas elites nacionais, para
estereotipar, marginalizar, criminalizar e subjugar as populações
negras. Destaca as ações de resistências empreendidas por homens
e mulheres negros para garantirem sua subsistência e a manutenção
de seus saberes culturais. As análises pautam-se num referencial
teórico interdisciplinar, que transita na arquitetura, urbanismo,
geografia e história e também em dados angariados por meio do
emprego da história oral. Por fim, descortina as histórias,
estratégias e memórias das populações negras comumente ocultadas.
Palavras-chave: Presença negra. Memórias Negras.
Territorialidades Negras. São Carlos-SP. Americana-SP.
La presencia negra en
el interior de São Paulo - Brasil
Resumen
Este artículo analiza la presencia negra en el interior de São Paulo
teniendo como objetos de observación e interpretación los municipios
de São Carlos y Americana. Para ello, aborda la presencia de las
africanidades en la historia y la cultura brasileñas, destacando
las acciones realizadas por el Estado y las élites nacionales para
estereotipar, marginar, criminalizar y subyugar a las poblaciones
negras. Destaca las acciones de resistencia emprendidas por hombres
y mujeres negros para asegurar su sustento y el mantenimiento de sus
conocimientos culturales. Los análisis se basan en un marco teórico
interdisciplinario, que atraviesa la arquitectura, el urbanismo, la
geografía y la historia, y también en datos recopilados mediante el uso
de la historia oral. Finalmente, desvela las historias, estrategias
y recuerdos de las poblaciones negras comúnmente escondidas.
Palabras clave: Presencia negra. Recuerdos negras.
Territorialidades negras. São Carlos-SP. Americana-SP.
The Black presence in the interior
of São Paulo - Brazil
Abtract
This paper analyzes the black presence in the interior of São Paulo
having as objects of observation and interpretation the municipalities of
São Carlos and Americana. To this purpose, it addresses the presence of
Africanities in Brazilian history and culture, highlighting the actions
taken by the State and national elites to stereotype, marginalize,
criminalize and subjugate black populations. It highlights the actions
of resistance undertaken by black men and women to guarantee their
livelihood and the maintenance of their cultural knowledge. The analyzes
are based on an interdisciplinary theoretical framework, which runs
through architecture, urbanism, geography and history, and also on data
collected through the use of oral history. Finally, it unveils the
stories, strategies and memories of black populations commonly hidden.
Keywords: Black presence; Black Memories; Black
Territorialities; São Carlos-SP; Americana-SP.
Introdução
bordar as heranças africanas nas culturas materiais e imateriais nos países da América Latina
tem sido algo recorrente na atualidade, porém
quando nos referimos às áreas de arquitetura
e urbanismo destacamos que tais abordagens
ainda estão em fase inicial e necessitam de ampliação.
Contribuindo para esse processo, vimos desenvolvendo
análises do espaço urbano, a partir de uma perspectiva
africanista e decolonial, identificando e registrando a presença negra no interior paulista.
A
No intuito de compreender as características socioculturais de herança africana que colaboraram para o desenvolvimento do Brasil, analisamos o continente africano a
partir de uma visão decolonial, rompendo com a abordagem colonialista e estereotipada que reduz o continente a
aspectos negativos. A África é 1,7 vezes maior que a América do Sul e é demograficamente dividida em duas regiões,
separadas pelo Deserto do Saara. Ao norte, tem-se a África
Branca ou África Árabe, onde vivem os árabes-berberes,
e ao sul tem-se a África Negra, de onde vieram os negros
para o Brasil e, portanto, foco deste artigo.
Diversas sociedades e etnias compõem o continente
e cada uma possui sua individualidade cultural, onde
são faladas mais de mil línguas. Munanga (2009) explica
os conceitos de sociedade, cultura e sua relação. Como
sociedade considera-se um grupo de pessoas autossuficientes e cumpridoras de suas necessidades materiais
e psicológicas, formando uma unidade com limites bem
definidos. Já por cultura, o autor define:
v.2 n.1
p. 106-131
2023
ISSN:
2965-4904
Uma cultura é um conjunto complexo de objetos materiais,
comportamentos
e
ideias, adquiridos numa me-
dida variável pelos respectivos membros de uma dada
sociedade. As duas entidades são correlativas: uma
sociedade não poderia existir sem cultura, essa herança coletiva transmitida de geração em geração e que
permite aos descendentes não poder reinventar todas as
soluções. Uma cultura supõe a existência de um grupo
que a cria lentamente, a viva e a comunique (MUNANGA,
2009, p.29).
Segundo Weimer (2014), etnograficamente a população africana está dividida em
oito grandes linhagens: os nilotas, os hamitas, os nilota-hamitas, os sudaneses, os bacas, os bantos, os koikoi e os san. No contexto brasileiro, os processos de mestiçagem
dos africanos escravizados tornam difícil discernir a origem étnica das populações
afrodescendentes do Brasil atual, porém é possível fazer uma análise a partir das
semelhanças das contribuições culturais e linguísticas africanas que resistiram até
os dias de hoje.
Os povos com maior presença no Brasil foram os bantos e sudaneses, com destaque aos bantos por chegarem primeiro e em maior número, cujos povos compõem a
África Central e Austral (Camarões, Gabão, Congo, República Democrática do Congo,
Zâmbia, Zimbábue, Namíbia, Moçambique e África do Sul). Foram eles os responsáveis
pela reconstrução do modelo africano de “quilombo”, que vem de kilombo e remete a
uma instituição sociopolítica e militar que no Brasil era uma forma dos escravizados e
livres se oporem à estrutura escravocrata pela implantação de outra estrutura política.
Dentre as diversas contribuições materiais e imateriais bantas, Munanga cita as
vastas contribuições na língua portuguesa falada no Brasil, cujo vocabulário apresenta
muitas palavras de origem banto que são utilizadas sem consciência de sua origem
por todos os brasileiros, como bunda, quitanda, caçula, marimbondo, quiabo, jiló e
cachimbo, além da contribuição religiosa com o candomblé da Bahia que se espalhou
por todo território nacional. Na cultura material, os bantos e sudaneses deixaram
diversas contribuições, como instrumentos musicais: tambores de jongo (tambor e
candongueiros), ingono ou ingomba, zambé, cuíca e urucungo. Na escultura, os bantos
deixaram suas marcas nas figas de madeira e nos objetos de ferro. Na mineração
eles introduziram a bateia. Elementos culturais bantos estão presentes também nos
congos, quilombos, coco, jongo, maculelê, maracatu, bumba-meu-boi e capoeira,
destacando-se o samba, um dos gêneros musicais populares mais conhecidos e que
constitui uma das facetas da identidade cultural brasileira.
p. 111
Weimer (2014) ressalta que, na arquitetura, a imigração forçada de negros africanos
reduziu e simplificou as diversas tipologias habitacionais presentes no continente
africano, porém resistiram diversos aspectos dos costumes, principalmente os relacionados às atividades ao ar livre e o emprego da taipa.
A história do Brasil é marcada por uma série de conflitos entre a população negra
africana detentora de saberes e a população branca europeia exploradora, além dos
povos nativos. Segundo Cunha (2019), os processos de formação básica da cultura
nacional ocorreram de forma diferente para a população africana devido às ações de
opressão exercidas pelos portugueses à remanescente cultura e tradição africana. Um
desses processos está diretamente ligado à urbanização brasileira no século XX, que
conserva relações de poder herdadas do sistema escravista criminoso, readaptando-o
ao período do pós-abolição, quando foram criadas políticas que desqualificaram as populações negras da cidade e fortaleceram as estruturas de poder da população branca.
Na contemporaneidade, 85% da população brasileira vive em meio urbano, que
se configura como lócus de intensas e conflituosas relações sociais. Devido à lógica
urbanística e certas políticas públicas que ignoram a existência e/ou as particularidades da população negra, esta é colocada em um processo de desqualificação social
e marginalização espacial.
Os lugares da população negra são lugares fora das
ideias do pensamento urbanístico brasileiro por diversas razões e tem como consequência uma política
pública de prejuízos sociais, econômicos, culturais,
políticos e educacionais para esse grupo. (CUNHA,
2019, p.22).
Nesse contexto, surge o tema dos bairros e cidades negros que, segundo Cunha
(2019, p. 10) são “áreas geográficas de existência de formas de vida da população
negra, obstruídas e limitadas pelas estruturas do racismo estrutural antinegro”. É na
cidade e nos bairros que são produzidas a identidade individual e a coletiva, mas
atreladas à tradição eurocêntrica, afastando, desde a abolição, traços da cultura e
tradição negra.
p. 112
A urbanização brasileira imprime conceitos europeus que formalizam uma dualidade entre centro e periferia, caracterizada por um “não lugar” em que é escassa a
presença do planejamento urbano, dos equipamentos e espaços públicos. É nesses
espaços que se concentra a população negra sob nomes como cidade clandestina,
cidade irregular, cidade informal, cidade periférica, como um processo sistemático
de inclusão precária das populações negras na sociedade brasileira.
Segundo Chalhoub (2004), as cidades brasileiras no pós-abolição eram espaços
de notável presença negra devido ao grande número de trabalhadores e comerciantes
antes escravizados, que ocupavam espaços de uso coletivo, como as habitações
denominadas como cortiços. As políticas sanitaristas advindas das dificuldades higiênicas desses espaços e as epidemias serviram de pretexto para justificar as remoções
sistemáticas dessas populações dos centros urbanos, transferindo-os para áreas
periféricas desprovidas de sistemas públicos. Nesse sentido, foram definidos lugares
como sinônimos de áreas de maioria afrodescendente, como é o caso de mocambos,
arrabaldes, favelas, alagados, palafitas e outras denominações. (CUNHA, 2019).
Com o processo abolicionista em andamento, foram trazidos milhares de imigrantes europeus, de maioria italiana, para “substituir” a mão de obra negra escravizada,
acompanhada de um discurso progressista de que europeus civilizados trariam sua
cultura para ajudar a desenvolver a nação, além de formular uma teoria racial onde
a população europeia etnicamente superior iria, através da miscigenação, branquear
a população.
As metas da política da república eram impor uma
nação homogênea, moderna, no sentido europeu e sem
antagonismos entre a população negra e branca, eliminando as marcas do passado do escravismo criminoso e ignorando os conflitos acumulados durante a
sua existência, sem, contudo, fazer nenhuma concessão
política, econômica ou social às “classes sociais”
afrodescendentes herdeiras desfavorecidas do regime
político passado. (CUNHA, 2019, p. 33).
Entre todas as perseguições sofridas pelas populações negras nesse processo,
destaca-se a forma como sua tradicionalidade e cultura foram reprimidas e criminalizadas, muitas vezes por forças policiais que as caracterizavam como baderna,
desordem, degeneração moral, atraso social, pois estavam distantes do ideal da civilização europeia. Tais perseguições se estendiam às práticas religiosas do Catimbó,
Candomblé e Umbanda, além de formas de socialização como batuques, samba,
pastoris, maracatus, bumba meu boi, marabaixo, maxambombas, mamolengos, teatro
de rua e danças em salões.
p. 113
Não há espaço na cidade civilizada de maneira europeia para a presença africana,
isso se manifesta, segundo Rolnik (1989), em um código de posturas municipal (de São
Paulo), em 1886, que proíbe diversas práticas presentes nos territórios negros da cidade,
como as quituteiras, pois “atrapalham o trânsito”; os mercados devem ser transferidos,
pois “afrontam a cultura e conspurcam a cidade”; os pais-de-santo não podem trabalhar,
pois são “embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural.”
É importante ressaltar que os negros não foram seres passivos nesses processos.
Desde o período escravista já se organizavam em sociedades e irmandades negras
que se consolidaram no pós-abolição com atividades culturais e recreativas, incluindo
publicações em jornais, produção literomusical e teatral, passeios, piqueniques e
bailes em fins de semana em salões alugados ou em sedes próprias. Foram eles os
principais responsáveis pelo desmanche da escravidão e pela conquista de seus
espaços no pós-abolição e por, mesmo diante dos inúmeros projetos de exclusão,
manterem vivas muitas das tradições e traços culturais africanos que formulam uma
das principais bases culturais do país.
Nessa perspectiva, tornam-se fundamentais os mapeamentos e registros das
estratégias culturais e territoriais empreendidas por negros e negras após o fim do
sistema escravista. Frente aos projetos de exclusão e marginalização empreendidos
pelo Estado e sociedade civil branca, esses homens e mulheres desenvolveram um rol
variado de estratégias de resistência. Nas Américas, onde outrora foram escravizados,
estes sujeitos se apropriaram de parcelas dos territórios urbanos e rurais para edificarem seus espaços de morar e neles puderam manifestar suas crenças, tradições e
práticas culturais. Para além dessas manifestações, esses territórios se consolidaram
como quilombos, onde a organização interna proporciona a subsistência, a proteção
e os ensinamentos religiosos e culturais.
Neste artigo, apresentamos o mapeamento da presença negra no espaço urbano,
tendo como objetos de análise os municípios de São Carlos e Americana. Ambos os
municípios localizados no interior do Estado de São Paulo (ver Figura 1.
p. 114
Figura 1 - Mapa de
Localização dos
Municípios de São CarlosSP e Americana-SP.
Fonte: Vitor Menck, 2021.
São Carlos: história e presença negra
O município de São Carlos integrava, em meados do século XIX, o promissor Oeste
Paulista no que tange à produção cafeeira e, assim como outros locais, empregou a
mão de obra escravizada para os trabalhos na lavoura e no espaço urbano. Com as
proibições ao tráfico transatlântico de escravos, os fazendeiros recorreram ao tráfico interprovincial, tendo no Estado da Bahia seu maior mantenedor. Mesmo que já houvesse
experiências com outras formas de trabalho, o negro escravizado foi fundamental para
o funcionamento do sistema econômico e social do município. Emília Viotti da Costa
(1998) afirma que a maioria das fazendas abertas no Oeste paulista, já nos idos de 1860,
continuou a usar escravos como a principal força de trabalho. Na mesma perspectiva,
Warren Dean (1977) aponta que a convivência do trabalhador contratado e o escravo
não impediram que o número de escravos aumentasse consideravelmente em Rio
Claro, o que também pode ser observado em São Carlos, pois em 1874 o número de
escravos era de 1.568, passando para 2.464 em 1877. Oito anos depois, de acordo com
“Apuração Geral da População Escrava da Província de São Paulo”, de 1885, São Carlos
possuía um total de 3.725 escravos, sendo destes 2.228 homens e 1.498 mulheres.
p. 115
No pós-abolição, ao escolher o espaço urbano para vivenciar a sua liberdade
arduamente conquistada, como nos apontam inúmeros historiadores, tanto o homem
negro como a mulher negra tiveram que elaborar uma série de estratégias de resistência para driblar a conjuntura social, política, econômica e cultural excludente que se
solidificou com o fim da escravidão. A conquista de direitos e a afirmação da cidadania
tornaram-se um exercício diário para esses sujeitos que elaboraram e reelaboraram
mecanismos de integração e defesa. O exercício da autonomia e a liberdade de ir e
vir representavam, sem dúvida alguma, a vivência da liberdade para os libertos que,
tanto no meio urbano como no rural, adotaram ocupações e modos de vida apoiados
em seus anseios, conhecimentos e experiências. Em São Carlos, não podemos afirmar
quantos negros escolheram a cidade ou o campo imediatamente após a abolição do
sistema escravista, pois não possuimos nenhum documento que registre tais informações. Porém, dezenove anos depois, apoiados no Recenseamento Populacional de
1907, levantamos que dos 38.642 indivíduos recenseados no município, 4.816 foram
declarados negros, sendo 3.815 pretos e 1.001 mulatos, ou seja, 12% da população
são-carlense era formada por negros.
Esse percentual pequeno, em comparação ao número de indivíduos de cor branca,
encontra explicação em diversos fatores, dos quais Walter Fraga Filho (2006) aponta,
para o caso da Bahia, mas que pode ser plenamente vislumbrado em São Carlos: o
anseio da população negra após a abolição em retornar para sua terra natal, ou para
onde estavam presentes membros de suas famílias, cruelmente separados pelo tráfico
interprovincial que sustentou notadamente a escravidão no interior paulista até às
vésperas da abolição. Outro elemento que contribuiu para o aumento da população
branca e a diminuição da negra foi a imigração europeia, fortemente impulsionada
pelo Estado e os fazendeiros locais, preocupados com a substituição da mão de
obra escrava, mas também movidos pelo desejo de branqueamento da população
brasileira. De qualquer maneira, no total, havia uma presença significativa de negros
em São Carlos em 1907 e dos 4.816 indivíduos, 3.487 moravam no meio rural, exercendo inúmeras atividade nas diversas propriedades agrícolas do município ou como
pequenos proprietários rurais, e 1.329 moravam no espaço urbano, ocupando um rol
diversificado de profissões.
p. 116
Como podemos perceber, a população negra que habitava o município de São
Carlos em 1907 estava majoritariamente concentrada no meio rural, demonstrando
que o campo também era uma opção de escolha para esses sujeitos, que podiam
permanecer e voltar de acordo com suas vontades e necessidades. Segundo Hebe
Mattos (1987), os negros libertos eram atraídos pela vida no campo por diversos fatores,
dentre eles o desejo pela manutenção da família, dos laços de parentesco e amizade,
o cumprimento de acordos e contratos trabalhistas, o conhecimento dos serviços
executados, o acesso à moradia e a um pequeno pedaço de terra para plantações
de alimentos e criação de animais, que eram usadas para o consumo familiar e, em
alguns casos, também comercializadas. No munícipio, estes fatores certamente influenciaram os 3.487 indivíduos a optarem pela vivência de suas liberdades no meio
rural, colocando por terra o discurso de que os negros deram preferência à vida no
meio urbano no pós-abolição. Isso, porém não significa que ex-escravos de São Carlos
tenham permanecido no campo após a abolição, pois os negros que habitavam o meio
rural em 1907 podiam perfeitamente ser migrantes que para cá vieram motivados por
inúmeros fatores. De qualquer maneira, acreditamos ser de extrema valia conhecermos
os motivos que levaram uma pequena parte da população negra a escolher a cidade.
Em 1907, o município de São Carlos era regido pelo Código de Posturas que foi
aprovado em 1905. De acordo com Renata Priore Lima (2008), esse código foi definido
pela lei municipal de número 58 e mantinha muitos aspectos dos Códigos anteriores,
trazendo, no entanto, uma mudança, segundo a autora, muito significativa para a
cidade, a saber, o estabelecimento dos limites da área rural e urbana, sendo esta
última subdividida em cidade e subúrbio. A cidade neste período já contava com
alguns loteamentos mais populares, distintos e afastados dos espaços ocupados pela
elite local e que perfaziam os arredores da igreja matriz, os quais, segundo Bortolucci
(1991), eram ocupados por majestosos casarões ecléticos dos barões do café que ali
mesclavam costumes rurais e urbanos.
Para as classes mais pobres foram criados, logo após a abolição da escravidão,
os bairros Vila Nery, Pureza e Izabel, os quais, a nosso ver, surgiram em resposta ao
medo das elites de que ocorresse uma migração em massa dos libertos para o espaço urbano com o fim da escravidão. Assim, evitando que eles ocupassem a região
central, trataram logo de lotear espaços distantes para que os mesmos pudessem
se estabelecer longe do perímetro elitizado. Certamente foi a partir da preocupação
com o “perigo” que os libertos representavam para a elite branca, como destacou
Maria Helena Machado (2010) em seu livro “O Plano e o Pânico’’, que surgiram os
primeiros loteamentos no município, desprovidos de qualquer tipo de infraestrutura
e embelezamento.
De acordo com Recenseamento Populacional produzido em São Carlos em 1907, o
espaço urbano do município era formado pelos bairros Centro, Vila Izabel, Vila Pureza,
p. 117
Vila Nery, Botafogo e Subúrbios, os quais agregavam, em maior ou menor número,
homens e mulheres negros, que somavam 47% dos moradores na Vila Pureza, 41,71%
na Vila Izabel, 30,13% na Vila Nery, 12,43% no Centro e 12,27% nos subúrbios. Ocupavam,
assim, em maior ou menor número, todo o espaço urbano, se concentrando, porém,
com maior representatividade nos bairros Vila Pureza, Vila Izabel e Vila Nery.
Desses bairros, homens e mulheres deslocavam-se diariamente para exercerem
suas atividades profissionais na região central da cidade. Comumente desempenhavam
atividades informais, tendo em vista que o racismo estruturante vigente fechava as
portas ao trabalho formal para a maioria da população negra. Diante desse cenário,
eram eles sapateiros, pedreiros, marceneiros, cozinheiros, vendedores ambulantes;
e elas, lavadeiras, empregadas domésticas, vendedoras ambulantes, dentre outras.
Vale salientar que, apesar de ocuparem espacialmente locais distintos no espaço
urbano de São Carlos, os homens e mulheres negros compartilhavam trajetórias similares e driblavam a sociedade republicana, tão racista quanto a imperial e a colonial. Os
desafios que se colocaram eram materializados nas dificuldades de acesso ao trabalho
formal, à educação e a outros direitos básicos, como saúde, moradia e alimentação.
Eram destinadas aos negros e negras as atividades consideradas degradantes pelos
brancos nacionais e muitos imigrantes. Além disso, enfrentavam a perseguição e
criminalização de suas crenças, hábitos e práticas culturais. Estas, porém, como nos
sugere vasta documentação, eram realizadas tanto no espaço doméstico como no
espaço da rua. A rua era considerada o espaço da liberdade, mas de uma liberdade
controlada, cerceada, constantemente monitorada. Mesmo assim, negros e negras
recriaram seus espaços de vivência e encontros no espaço urbano, tais como clubes
negros, escolas de samba e igrejas de santos negros.
Dos locais negros da cidade de São Carlos - SP que podiam ser usufruídos podemos destacar a Igreja de São Benedito (ver Figura 2) que, além de ser um espaço
destinado aos cultos católicos, era o local para a realização do footing negro em seu
adro. Inaugurada no final do século XIX, foi um dos primeiros lugares negros urbanos
registrados no município. Símbolo da cultura e da resistência negras, ela foi cogitada
pela irmandade de São Benedito. Sobre a sua fundação, nos conta a historiadora Leila
Massarão (2013, p.1):
p. 118
Em 1890, João Antônio Xavier, sacristão da Matriz e
responsável pela Irmandade de São Benedito solicitou
à Câmara Municipal a doação do terreno para a cons-
trução de uma capela em homenagem ao santo. Efetivada
a doação teve início a construção da capela, com trabalhadores negros e brancos trabalhando conjuntamente
e sob a coordenação do construtor italiano Domingos
Marra. Em 1892, porém, por falta de recursos a obra
foi paralisada, sendo retomada pouco depois pelos
esforços em angariar doações do Tenente Francisco
Cabral e Benedito José Gomes (ex-escravo, devoto de
São Benedito). A primeira capela de São Benedito foi,
assim, inaugurada em 30 de junho de 1897.
Figura 2: Igreja São
Benedito. Fonte: Acervo
FPMSC. São Carlos.
A praça de São Benedito, que abrigava a igreja e o jardim envoltório, tornou-se
espaço de encontro da população negra, que passou também a frequentar o Cine
Teatro São José, inaugurado nas primeiras décadas do século XX, defronte ao pátio
da igreja. Vale salientar que esses locais também eram frequentados por brancos,
majoritariamente imigrantes, que estabeleciam relações mais amistosas com os negros
e negras da cidade.
p. 119
Figura 3: Baile de carnaval no Clube Flor de Maio, década de 1960.
Acervo Odila dos Santos Aguiar.
p. 120
Figura 4 - Vista do Casarão do Salto Grande. Fonte: Vitor Menck, 2021.
Além da igreja, diante da impossibilidade de frequentar os clubes brancos locais,
foram inaugurados alguns clubes negros na cidade, que culminaram na fundação
do Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio no ano de 1928 (Ver Figura 3). Foram
responsáveis por sua criação trabalhadores negros empregados na Companhia Paulista
de Estradas de Ferro. A construção de sua sede, cuja pedra fundamental foi lançada
em 15 de novembro de 1948, demarcou espacialmente a consolidação do clube na
cidade. Nesse local, negros e negras, divertiam-se nos finais de semana, em dias
festivos e datas comemorativas. Dentre os eventos marcantes estavam o carnaval
e o concurso de rainha do clube. Além disso, assim como grande parte dos clubes
negros no país, o Flor de Maio atuou diretamente no desenvolvimento educacional
de seus frequentadores.
O Grêmio Recreativo e Familiar Flor de Maio, fundado
na cidade de São Carlos no dia 4 de maio de 1928, é
sem sombra de dúvidas a materialização local desta
injunção – da luta social dos afrodescendentes e da
Companhia Paulista de Estradas de Ferro – que tanto
contribuiu, material e simbolicamente, para o desenvolvimento de nosso município. Sua idealização e
edificação representam não só um importante capítulo
da história da população negra em São Carlos como
também do papel social desempenhado pelas companhias
ferroviárias no interior paulista através da conformação de uma “elite negra” mais cônscia de seus direitos e valores. Desempenhando um papel fundamental
no processo de ressocialização e afirmação cultural
da população negra na cidade de São Carlos, o Grêmio
desde cedo ultrapassou o aspecto meramente recreativo e demonstrou sua vocação educacional e inclusiva, criando, ainda na década de 1930, uma escola de
ensino primário aberta também para a população não
afrodescendente (LOPES, 2011, p.1).
Por mais que esses locais fossem usados por uma parcela significativa da população negra, vale destacar que era no espaço doméstico, formado pela casa e quintal,
que esses sujeitos encontravam espaço para manifestarem suas crenças, culturas e
transmitir os seus saberes. A configuração do quintal como um lugar de resistência
da gente negra é discutida no livro “Da senzala para onde? Negros e negras no Pós-abolição em São Carlos-SP (1880-1910)” (OLIVEIRA, 2018).
p. 121
Figuras 5 e 6:
Engenho Salto Grande.
Fonte: Hércules
Florence, 1843.
Aquarela sobre papel.
Coleção Cyrillo
Hercules Florence.
p. 122
Por fim, podemos afirmar que esses sujeitos se estabeleceram para além dos
limites definidos pelas elites brancas e se apropriaram dos espaços das ruas, de alguns
espaços públicos da cidade e de seus espaços de morar. Driblando uma constante
conjuntura de discriminação e marginalização racial e espacial, eles se fixaram no
núcleo urbano de São Carlos, fomentando a economia e a cultura locais, ainda que
suas vivências estivessem mais restritas aos seus pares.
Americana: história e presença negra
Americana surge por volta de 1777 como distrito de Campinas, a partir de um
povoamento nas áreas férteis entre os rios Jaguari e Atibaia, que formam o rio Piracicaba, onde vão sendo plantadas lavouras de cana-de-açúcar. Em 1799, a coroa
portuguesa faz a doação da sesmaria da região, chamada de Salto Grande, a Domingos
da Costa Machado, que durante as décadas seguintes dividiu suas terras entre seus
herdeiros e vendeu outras áreas. Nessas terras foram construídas diversas fazendas,
das quais a principal delas era a Fazenda Salto Grande (Ver Figura 4), no território
adquirido por Manoel Teixeira Vilela. Tal propriedade foi edificada em 1810, por mão-de-obra negra escravizada em taipa-de-mão e taipa-de-pilão, para a armazenagem
de cana-de-açúcar.
Estima-se que a Fazenda Salto Grande chegou a abrigar 223 negros escravizados,
uma das maiores da região, ainda que no inventário de Antônio Manoel Teixeira, filho
de Manoel, constem mais de 400 escravizados (TREVISAN et al., 2019). Pouco se
sabe sobre a trajetória dos negros escravizados trazidos por Manoel Teixeira Vilela,
mas é possível afirmar suas atuações na formação econômica da cidade, além de sua
presença nas atividades agrícolas e outros serviços. Segundo a União de Negros pela
Igualdade (UNEGRO,2017), com a chegada dos imigrantes italianos para trabalhar nas
lavouras, as senzalas adjacentes ao casarão foram destinadas a eles, colocando os
negros em choças de pau a pique mais distantes que a senzala.
Carlos Lemos (1999) apresenta em seu livro “Casa Paulista” importantes reflexões
acerca do então Engenho Salto Grande, o qual ele define como o único remanescente
do que chama de “sobrado ortodoxo”, que teria um programa incomum, sendo o térreo
reservado para serviços e o pavimento superior à moradia isolada. O autor também
descreve as aquarelas feitas por Hércules Florence, em 1834, como observado nas
figuras 5 e 6, que representam o engenho em pleno funcionamento. Pelo lado externo
pode-se observar “...uma tropa de burros, certamente à espera das caixas de açúcar
fabricado no engenho, cujas chaminés estão fumegando e dizendo que as fornalhas
estão acesas para o sofrimento dos escravos à volta dos tachos” (LEMOS, 1999, p. 84),
já pelo lado interno justamente os escravos trabalhando nas fornalhas.
Desde 1977 o casarão sedia o “Museu Histórico e Pedagógico Municipal Doutor João
da Silva Carrão”, porém muito se questiona sobre seu caráter “histórico e pedagógico”. Em
1
entrevista concedida aos autores, Claudia Monteiro da Rocha Ramos , representando a
p. 123
UNEGRO de Americana, conta como o espaço possui um projeto de ensino, didática e
metodologia que não aborda a história do negro e do indígena, mas sim a do europeu.
Lá você encontrava só a vestimenta, que agora nem tá
mais aberto o museu, só os móveis, e só uns instrumentos de utensílio da população branca, e aí o que tinha
do negro lá, um pelourinho que foi implantado lá dentro
do casarão, que não era nem o lugar, e aí que raio de
história é esse de museu pedagógico? (RAMOS, 2021, sp).
Retomando a história de formação da cidade, passamos para os tempos do café.
Com o rápido avanço das lavouras cafeeiras entre os anos 1840 e 1870 pela região
conhecida como Velho Oeste Paulista (que compreende as cidades de Campinas,
Limeira, Rio Claro e São Carlos), alguns sistemas começam a se formar na região,
como a mecanização agrária, os sistemas de armazenamento das fazendas, surgindo
a necessidade de um transporte mais rápido da região para o Porto de Santos.
Nos anos 1860 surge no Brasil grande incentivo na produção algodoeira, devido às
demandas das fábricas inglesas que têm seus estoques prejudicados pela Guerra de
Secessão nos Estados Unidos, que ocorreu entre 1861 e 1865. Com o fim da guerra, os
americanos voltaram a exportar algodão para a Inglaterra, tomando o lugar do Brasil
no mercado internacional e, assim, provocando o surgimento das primeiras fábricas de
tecido no interior do estado de São Paulo para suprir a oferta de algodão. Além disso,
a abolição da escravidão nos Estados Unidos provoca descontentamento em muitos
americanos sulistas que decidem emigrar para o Brasil, incentivados pelo Império
Brasileiro que tinha interesse em causar o branqueamento da população.
Nesse contexto, uma série de fábricas de tecido vão surgindo na região, das quais
a principal é a Fábrica de Tecidos e Vila Operária Carioba (nome que significa “pano
branco” em tupi-guarani). Existem evidências de que houve trabalho escravo em
Carioba. Segundo Ribeiro (2005, p.45), “localizou-se no Arquivo do Centro de Memória
da Unicamp, um importante documento sobre locação de escravos, datado de 1887”,
referente aos proprietários da fábrica de tecidos, Clemente Wilmot, e da Fazenda
Machadinho, de Basílio Bueno Rangel.
p. 124
O documento citado refere-se ao adiantamento que o
Senhor Clement Wilmot fazia para a alforria de nove
escravos, sendo cinco homens e quatro mulheres, pertencentes aos senhores Basílio e José Bueno Rangel,
proprietários da Fazenda Machadinho. A transação foi
feita mediante o contrato no qual os escravos se
obrigavam a trabalhar durante três e quatro anos na
Fábrica de Tecidos Carioba, nos dias úteis, recebendo
em troca: moradia, alimentação e cuidados médicos,
quando necessários (RIBEIRO, 2005, p.45).
Existem, ainda, registros sobre o pós-abolição dos negros de Americana, que se
dividiram entre ficar trabalhando nas fazendas, praticando lavouras de subsistência, ou
se dirigindo aos centros urbanos, ocupando postos de trabalho periféricos. A fábrica
de tecidos Carioba encerra suas atividades em 1896 e permanece fechada até 1901,
quando é arrematada pelo alemão Franz Müller, sendo reinaugurada no ano seguinte.
Segundo a UNEGRO (2017), relatos apontam que a presença negra em Carioba se
torna menos frequente nessa época, pois a nova família não gostava de “gente de cor”,
tendo pouca oportunidade de trabalho na fábrica, demonstrando que, assim como em
grande parte do território nacional, a maioria da população negra no pós-abolição foi
alijada dos trabalhos formais.
No que tange à ocupação da população negra no pós-abolição, em entrevista, Claudia
Monteiro nos conta que as informações sobre quais espaços ocuparam são muito fragmentadas, mas há relatos de que os negros moraram no bairro Conserva em meados do
século XIX, pois eram a mão de obra na construção dos trilhos da linha férrea, que passa
ao lado do bairro. A única ocupação negra notável no centro foi na rua Capitão Corrêa
Pacheco, uma rua curta que foi conhecida como Pito Aceso, porém posteriormente essas
famílias negras foram expurgadas do local, que hoje é uma rua comercial do centro.
Dadas tais informações, buscamos mapear os bairros que atualmente possuem maior
concentração de população negra na tentativa de compreendermos como ocorreram,
historicamente, os deslocamentos internos consequentes das expulsões citadas. A
partir da entrevista com a UNEGRO, pudemos ilustrar essa ocupação com o mapa na
figura 7. De modo geral, observa-se que os bairros que possuem maior concentração
da população negra se encontram nas periferias da cidade, isto é, afastados do centro
em todas as direções, nos limites da cidade. Dentre os bairros mapeados, destacamos
três: o Jardim dos Lírios, a Vila Mathiesen e o Antônio Zanaga.
Os bairros vizinhos, Jardim dos Lírios e Vila Mathiesen, possuem a maior concentração
de população negra na cidade e são duas das ocupações mais antigas dentre as citadas,
sendo ocupadas por volta das décadas de 1940 e 1950. Relatou-se que até o início dos
anos 1990, o bairro constituía uma favela quando passou por um processo de “desfavelização”, empreendido pela prefeitura, e, segundo Manuela Lage (2010), muitas das novas
habitações utilizaram o sistema de mutirão. Os bairros sofrem forte depreciação entre os
bairros vizinhos de classe média, sendo relacionados ao crime, ao tráfico, à miséria, aos
p. 125
Figura 7 - Bairros de maior concentração da população negra. Fonte: Vitor Menck, 2021.
estereótipos racistas construídos ao longo da história brasileira. O Jardim dos Lírios, por
exemplo, é apelidado de “Jardim dos Tiros”, associando os conceitos abstratos de classes
2
pobres e classes perigosas e, assim, mantendo uma política de repressão.
p. 126
O bairro Antônio Zanaga se localiza próximo ao casarão Salto Grande e, portanto,
também é um bairro periférico que surgiu no início do desenvolvimento da cidade,
tendo uma presença marcante da população negra. O bairro se constitui a partir das
novas leis de uso e ocupação de solo da década de 1970 como uma subcentralidade,
haja vista seu acelerado crescimento nesta época e a grande distância do centro da
cidade. Ainda nessa década, em 1978, foi construído o Conjunto Habitacional Antônio
Zanaga I pela Companhia de Habitação Popular (COHAB) de Campinas, o primeiro
empreendimento habitacional do município, já em 1980 foi entregue o Conjunto Habitacional Antônio Zanaga II.
Mas o problema habitacional de Americana não parecia
sanado, pois grande parte das famílias que estavam em
situação precária não tinha renda suficiente para entrar em um financiamento da COHAB – Campinas. Uma das
maneiras encontradas para amenizar a situação foi o
PROFILURB (Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados), que através de recursos do BNH (Banco Nacional
de Habitação) financiava a produção de lotes urbanizados
com infra-estrutura básica. Foi por esse caminho que
Americana em 1979 a 1983 entrega 683 lotes com apenas o
módulo do banheiro construído (LAGE, 2010, p.84).
Com relação às práticas culturais e tradicionais, é essencial comentar o legado
de Silvia Barros (1958-2009). Militante do movimento negro, ela criou a ONG Arte
de Vencer e o projeto Tambor Menino, que levava a dança e a cultura negras para
bairros como o Vila Mathiesen e o Jardim dos Lírios. A ONG também tinha projetos que
ajudavam crianças em situação de vulnerabilidade social e mulheres na prostituição.
Até o início da década de 1980, os negros eram proibidos de entrar nos clubes da
elite da cidade, tais como o Rio Branco, Veteranos e o do Bosque. Em resposta foram
criados os clubes negros, dos quais Claudia Monteiro cita um na Av. Nove de Julho e
outro no Bairro Conserva, que, como escrito anteriormente, foi um bairro de ocupação
negra no passado. Esses espaços foram apelidados de “risca faca” e hoje não existem
mais. Também por consequência do não acesso dos negros aos clubes, Silvia Barros e
sua mãe criaram o carnaval de rua na cidade, o que demonstra a importância cultural
que o espaço da rua pode assumir.
Outras manifestações de cultura negra que podem ser citados são as capoeiras
Motta, Maguila e Abadá, o grupo de maracatu Estação Quilombo, o Centro Cultural
Candeeiro que reúne práticas do Jongo, o Cacuriá, o Maculelê, o Samba de Roda,
a Catira, o Xaxado, o Coco de roda, a Cenopoesia e outras, a escola de samba Acadêmicos do Salto Grande e os grupos de hip hop do Garrafão. No que concerne às
religiões, Pedro Monteiro nos conta na entrevista realizada com a UNEGRO, que não
existem terreiros de Candomblé na cidade, mas existem alguns terreiros de Umbanda,
dentre os quais o Terreiro de São Domingos é o mais antigo e tradicional e, além
dele, há também o Tenda do Caboclo, o Recantos dos Orixás, entre outros. Todos
esses espaços preservam aspectos da cultura africana e afro-brasileira e devem ser
mapeados e registrados a fim de se compreender a relação do espaço urbano com
as práticas culturais e tradicionais das populações negras de Americana e, de certa
forma, como isso pode se relacionar com todo o contexto nacional.
p. 127
Considerações finais
As análises empreendidas nesse artigo nos convidam a revisitar as histórias das
populações negras no pós-abolição, marcadas fortemente pela possibilidade de
migrar de acordo com seus interesses e possibilidades. Agentes de seus destinos e
sem nenhum tipo de amparo por parte do estado, coube a homens e mulheres negros,
desenvolveram estratégias de enfrentamentos às ações de exclusão empreendidas
tanto pela população branca quanto pelo poder público.
Além dos enfrentamentos sociais, políticos, econômicos, profissionais e culturais
que marcam as trajetórias da população negra nos municípios analisados, destacamos os enfrentamentos territoriais, fruto principalmente das ações de engenheiros,
arquitetos, governantes e médicos sanitaristas que empreenderam a partir do final do
século XIX uma varredura das populações negras das regiões centrais. Amparados no
racismo científico, nos códigos de posturas e nos discursos higienistas e sanitaristas
o nascente urbanismo brasileiro teve como alvo os corpos negros, como nos sugere
Andrelino Campos (2005). Henrique Cunha Júnior (2019) aponta que o espaço urbano
expressou as contradições da sociedade racista no início do século XX. Em resposta às
práticas segregacionistas e discriminatórias executadas pelo Estado e pela sociedade
civil, as populações negras empreenderam uma série de ações de resistência. Dentre
elas, destacamos as organizações familiares que se empenharam em preservar suas
práticas culturais e religiosas em seus espaços habitacionais. Atividades como festas,
danças, cantorias, capoeira e o candomblé encontram certa segurança para serem
praticadas nos espaços privados dos quintais negros urbanos.
Dessa forma, fica evidente, nas cidades analisadas, que a população negra lançou
mão de alternativas múltiplas para se apropriar de uma cidade urbanisticamente
planejada para marginalizá-la. Edificaram seus clubes, igrejas e irmandades e fomentaram as regiões centrais desenvolvendo suas habilidades profissionais. Além disso,
transformaram seus espaços culturais e de morar em redutos quilombolas carregados
de africanidades, preservadas e transmitidas, principalmente por meio da oralidade.
Assim como seus ancestrais, ressignificaram e africanizaram suas trajetórias frente às
violências a eles imputadas.
p. 128
Notas
Referências
1
BORTOLUCCI, M. Â. Moradias Urbanas Construídas em São Carlos No Período Cafeeiro. São
Paulo: FAU-USP. Tese de Doutorado, 1991.
Foi identificado na cidade de Americana um
importante grupo de representantes negros, a
União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO) de
Americana, que fazem um trabalho de representação e de estudo da população negra na
cidade e na região. Realizou-se uma entrevista virtual pela plataforma Google Meet,
no dia 22 de maio de 2021, com representantes do movimento, incluindo a presidenta do
grupo, Claudia Monteiro da Rocha Ramos, e
dois membros, Pedro Monteiro e Isabella Monteiro. A entrevista contou com um roteiro de
questões elaboradas acerca do histórico do
movimento, sua constituição e contribuições,
além do histórico da cidade e experiências
atuais na perspectiva racial da existência
e da cultura, acrescidas de questões que
surgiram durante a entrevista.
2
Essa definição surge no século XIX e dita
as políticas de repressão fora dos limites de
trabalho no pós-abolição, numa lógica em que
todo cidadão pode ser suspeito até que prove
o contrário, mas alguns são mais suspeitos
do que outros, incluindo a população negra
(CHALHOUB, 2004).
CAMPOS, A. Do quilombo à favela: a produção
do “espaço criminalizado” no. Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CHALHOUB, S. Cortiços In: CHALHOUB, Sidney.
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p. 131
“Quem pode ser dono
da morada de deuses?”
Terra, terreno, terreiro
Thiago de Azevedo
Pinheiro Hoshino
UFPR, CCONS / UFPR, MALOCA / UNILA
“Quem pode ser dono da morada de
deuses?” Terra, terreno, terreiro
Resumo
O que acontece quando orixás, ancestrais e espíritos extrapolam os
muros dos terreiros e passam assentar-se em documentos e órgãos
burocráticos? Quando (ar)riscam ponto não apenas na metrópole, mas
também na arquitetura das instituições? O artigo explora a contaminação
recíproca entre nomos (o mundo normativo do Estado) e axé (o mundo
normativo afroatlântico), a partir do processo de tombamento da Casa
Branca do Engenho Velho (Salvador/BA), primeiro templo de candomblé
patrimonializado em nível federal, na década de 1980. Ao longo do
conflito (fundiário e ontológico) travado pela manutenção da morada
dos deuses negros, imaginações contrastantes acerca da terra (e sua
reconversão em chão) e da nação (na multiplicidade de seus enredos)
cohabitam não apenas nos discursos e práticas do povo de santo, mas
em mitologias e ritos de funcionários públicos, despossuindo os
sentidos da cidade, dos direitos, das heranças e dos patrimônios.
Palavras-chave: terreiros; patrimônio cultural; posse e
propriedade; diáspora negra; antropologia do direito
“¿Quién puede poseer la morada de
los dioses?” Tierra, terreno, terreiro
Resumen
¿Qué pasa cuando orixás, ancestros y espíritus cruzan los muros de
los terreiros para asentarse en documentos y órganos burocráticos?
¿Cuándo rayan no solo la metrópolis, pero también la arquitectura
de las institucions? El artículo explora la contaminación entre
nomos (el mundo normativo estatal) y axé (el mundo normativo del
afroatlántico), a partir el proceso de patrimonialización de la
Casa Branca do Engenho Velho (Salvador, Bahia), primer templo de
candomblé reconocido oficialmente en Brasil al nivel federal, en la
década de 1980. A lo largo del conflicto (fundiário y ontológico) por
el mantenimiento de la vivienda de los dioses negros, imaginaciones
contrastivas sobre la tierra (reconvertida a llano) y la nación
(en su multiplicidad enredada) cohabitan no solo en los discursos
y prácticas del povo-de-santo sino también en las mitologías y
ritos de funcionarios públicos desposeyendo los sentidos de la
ciudad, de los derechos, de las herencias y de los patrimonios.
Palabras clave: terreiros; patrimonio cultural; posesión y
propiedad; diáspora negra; antropología del derecho
“Who can own the abode of gods?”
Land, terrain, terreiro
Resumen
Abtract
What happens when orixás, ancestors and spirits extrapolate the walls of
terreiros to settle in bureaucratic documents and agencies? What occurs when
they produce the metropolis and else the very architecture of institutions?
The present article explores the reciprocal contamination between nomos
(the normative world of the state) and axé (the afro-atlantic normative
world), based on the first process of recognition of a candomblé temple
(Casa Branca do Engenho Velho, in Salvador, Bahia) as national cultural
heritage in Brazil during the 80’s. Throughout the conflict (both over
tenure and ontology) involving the maintenance of the dwelling of black
gods, contrasting imaginations about land (and its reconversion to ground)
and nation (in its interwoven multiplicity) cohabitate in discourses and
practices of the povo-de-santo as well as in mythologies and rites of public
staff, dispossessing the meanings of city, rights, heritages and patrimonies.
Keywords: terreiros; cultural heritage; ownership and
property; black diaspora; anthropology of law
Por outro lado, Senhor Prefeito, quem
pode ser dono da morada de nossos
deuses e antepassados, onde eles
plantaram seu sagrado axé?
Antônio Agnelo Pereira, Ogã da Casa
Branca do Engenho Velho, 1982
Introdução: os orixás em
risco e os riscos dos orixás
Orixás em risco”. Essa era a chamada que se lia na
edição de 04.08.1982 da Revista Veja, em matéria que alertava para a investida da “especulação
imobiliária” sobre um dos mais tradicionais terreiros de Salvador: a Casa Branca do Engenho
Velho, ou, em sua denominação iorubá, o Ilê Axé Iyá Nassô
Oká. No subtítulo da notícia (“Candomblé pode perder sua
meca nacional”), antevia-se um caso digno dos romances
de Jorge Amado (ele mesmo um dos filhos-de-santo da
casa que engrossava os protestos ao prefeito Renan Baleeiro). A reportagem assim resumia o que designava de
um “enredo jurídico”:
“
v.2 n.1
p. 132-165
2023
ISSN:
2965-4904
A ameaça de uma operação imobiliária
envolvendo a Casa Branca do Engenho
Velho, o mais antigo terreiro de candomblé do Brasil, gerou em Salvador
um alvoroço de calibre suficiente para
figurar nos mais movimentados enredos
dos livros de Jorge Amado. [...] A
questão começou na semana passada, com
o anúncio de que a área ocupada pela
Casa Branca, com 6.000 metros quadrados e avaliada entre 30 e 40 milhões de
criros, seria ocupada por um conjunto
de grandes prédios. Ao mesmo tempo,
Hermógenes Príncipe [de Oliveira], um
rico proprietário de imóveis em Salva-
dor, atualmente radicado no Rio de Janeiro, passou a reivindicar a propriedade da área, por direito de herança, alegação
que seu advogado afirma poder provar com documentos que, até
sexta-feira passada, não tinham sido apresentados. A questão
irá para a Justiça e, a seu favor, os responsáveis pelo terreiro invocam seus dois séculos de funcionamento no mesmo local. [...] Enquanto isso, Mãe Teté, a babalorixá (sic) da Casa
Branca, invoca Oxóssi, o “Rei da Mata”, para que ele impeça
a construção de um edifício no seu templo (p. 29 do Processo
IPHAN/BR 1.067-T-82).
Tempos e modos distintos da terra (como terreno termo destinado a operações
imobiliárias e como terreiro destinado à casa dos santos) opunham os herdeiros da
1
“princesa Yá-Nassô, sacerdotisa da corte de Alafin, uma cidade da costa africana” e
um herdeiro de latifundiários da família “Príncipe”. Essas duas linhagens (tanto seus
contemporâneos, quanto seus ancestrais) eram postas em contato e em relação por
meio daquele acontecimento telúrico, a emergência de um conflito em torno de posses, possessões e propriedades, na mais antiga das cidades afro-atlânticas do Brasil.
O estopim da refrega foi a venda da área até então utilizada como a “Praça de
2
Oxum” para a construção de um posto de gasolina. Enquanto “a especulação imobiliária parece não temer os orixás”, aduzia o Jornal A Tarde de 22.07.82, os filhos e filhas
da Casa Branca temiam “a remoção dos deuses do local onde foram implantados pelos
africanos”. De costa a costa, num roteiro secular que passava por Oyó e Lagos, na costa
ocidental do continente Africano e, Salvador e o Rio de Janeiro no Brasil, heranças e
genealogias heterogêneas entremeavam as várias margens da “estrutura rizomórfica e
fractal da formação transcultural e internacional” do Atlântico negro (GILROY, 2001, p.
38). O conflito se desdobraria em diversos planos, não só confrontando e percepções
sobre parentescos, direitos, patrimônios e sentidos do habitar, mas também chamando
a atenção para o risco que corriam os orixás e para os riscos que eles traçavam em
sua (r)existência diaspórica e metropolitana: riscos impressos no corpo de suas(seus)
filhas(os), no corpo da cidade e no corpus de documentos jurídicos mobilizados.
Plantar axé, assentar
o mundo, co-habitar com o santo
As notícias que faziam alarde nos jornais preenchiam também nos autos de número
3
1.067-T-82 do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) . Neles, não
p. 137
era só Oxóssi, o “Rei da Mata”, que a Casa Branca invocava, mas um conjunto de institutos
e documentos legais, em petição fartamente fundamentada, contendo abaixo-assinado
anexo. Aberto em 27 de agosto daquele ano junto ao Ministério da Educação e Cultura,
o processo solicitava o tombamento do terreiro como patrimônio cultural brasileiro, nos
termos do Decreto-Lei 25/37 e, também, a desapropriação da área, a ser promovida
pelo Município de Salvador, seguida de sua concessão para a comunidade.
Em resposta à provocação da Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do
4
Engenho Velho. o Sr. Ary Guimarães, então Diretor da 5ª Regional do SPHAN em
Salvador, remeteria, por ofício, “proposta de tombamento da área do Terreiro da Casa
Branca” à chefia do órgão, no Rio de Janeiro. O desfecho da história se notorizou tanto
entre o povo-de-santo quanto entre antropólogos(as) e estudiosos(as) do patrimônio
cultural e arquitetônico: o Ilê Aé Iyá Nassô Oká se tornaria, por decisão apertada do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tomada em 31/05/84,
5
o primeiro terreiro tombado do Brasil, abrindo caminho para os demais.
Não faltam análises sobre o tombamento da Casa Branca (Oliveira, 2005; Dourado,
2011), a partir de diversas perspectivas. Entre elas, destaco a do próprio relator do
processo, o antropólogo Gilberto Velho, conforme ele a redigiria anos depois:
p. 138
É inegável que para a vitória do tombamento foi fundamental a atuação de um verdadeiro movimento social com
base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais,
jornalistas, políticos e lideranças religiosas que
se empenharam a fundo na campanha pelo reconhecimento
do patrimônio afro-baiano. Havia um verdadeiro choque de opiniões que não se limitava internamente ao
Conselho da SPHAN. Importantes veículos da imprensa
da Bahia manifestaram-se contra o tombamento que foi
acusado, com maior ou menor sutileza, de demagógico.
[...] O caso do tombamento de Casa Branca poderia ser
analisado como um drama social nos termos de Victor
Turner (1974). Havia um grupo de atores bem definido
com opiniões e mesmo interesses não só diferenciados
mas antagônicos em torno de uma temática que se revelava emblemática para a própria discussão da identidade nacional. Independentemente de aspectos técnicos e legais, o que estava em jogo era, de fato, a
simbologia associada ao Estado em suas relações com a
sociedade civil. Tratava-se de decidir o que poderia
ser valorizado e consagrado através da política de
tombamento. Reconhecendo a válida preocupação de conselheiros com a justa implementação da figura do tomba-
mento, hoje é impossível negar que, com maior ou menor
consciência, estava em discussão a própria identidade
da nação brasileira. A rápida passagem do Cardeal Primaz na histórica reunião não disfarçava que os setores
mais conservadores do catolicismo baiano e, mesmo nacional, viam com maus olhos a valorização dos cultos
afro-brasileiros. (VELHO, 2006, p. 239)
A leitura que gostaria de agregar, contudo, às interpretações que enfatizam o giro
de paradigma entre o corpo técnico do SPHAN ou os embates e as redes de relações
mobilizadas pelo povo de santo (que incluem procedimentos inusitados como uma
6
alardeada “iniciação” do secretário de cultura em uma visita diplomática ao terreiro )
diz respeito à eficácia daquilo que o Sr. Antônio Agnelo Pereira, presidente da entidade
civil ligada à Casa Branca, mencionava em sua manifestação ao prefeito de Salvador
como o “axé plantado” naquele local. Dito de outro modo, interessa-me explicitar de
que maneira os axés plantados em terreiros como a Casa Branca foram, pelas vias
de contato que os tombamentos propiciaram, trans-plantados para as instituições
públicas e o que ocorre quando esses entes não-humanos – como ancestrais, espíritos
e divindades – passam a co-habitar instâncias, práticas e discursos oficiais, povoando
a imaginação jurídico-institucional mesmo contra seus pressupostos ontológicos.
Gilberto Velho, rememorando o tombamento da Casa Branca, reforçaria, anos
depois, que “do ponto de vista dessas pessoas [o povo de santo] o que importava era a
sacralidade do terreno, o seu ‘axé’” (2006, p. 237). Esse axé, que é princípio organizador
do candomblé, não apenas dá nome às suas comunidades (Ilê Axé significa, literalmente, “casa de força”) como dá sentido ao espaço onde é (im)plantado. Assim “o termo
axé é utilizado para designar a casa de candomblé, seu conjunto de adeptos, seus
costumes e, por extensão, sua modalidade de culto ou Nação” (OPIPARI, 2009, p.86).
7
Nada melhor do que as palavras do próprio Ogã Agnelo para dizê-lo:
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PREFEITO
Mais uma vez aqui estamos, reiterando a V. Exa. Nosso
o pedido de desapropriação do terreno onde se acha o
ILÊ AXÉ NASSÔ OKÁ, e a cessão de uso permanente deste
à nossa Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do
Engenho Velho, que representa o povo da Casa Branca.
Temos toda a certeza de que V. Exa. concorda com a
absoluta justiça de tal solicitação. Trata-se de reconhecer a uma comunidade os direitos a um patrimônio
por ela criado e preservado, através dos séculos. Afi-
p. 139
nal, há perto de duzentos anos nossa gente ocupa este
terreno, de modo pacífico e laborioso.
Neste terreno, Senhor Prefeito, foi plantada uma semente vinda da África, trazida do coração do Império
Nagô para a nossa Bahia.
Neste terreno, a sabedoria e o trabalho do Povo de
Santo do ILE AXÉ IYÁ NASSO OKÁ criaram valores insubstituíveis, conservando tradições e monumentos que
a Bahia inteira aprecia e respeita.
Temos a certeza de que o Prefeito de Salvador não
nega a importância de nossas raízes africanas, o valor da herança cultural de nossos antepassados nagô;
não nega que os monumentos sagrados e a história do
povo negro, graças a cujo trabalho foi construída
esta grande nação brasileira, merecem tanto respeito
quanto a história e os monumentos de outras origens.
Por outro lado, nenhuma dúvida pode haver de que o
direito de uma comunidade instalada num local por ela
enriquecido com valores e obras durante tanto tempo
significa mais do que a alegada propriedade de quem
aí nada fez.
Por certo, o Senhor Prefeito também concorda em que
tem mais importância a preservação de um patrimônio
da Bahia, com a salvaguarda dos direitos da gente humilde responsável por sua existência, do que os interesses mesquinhos da especulação imobiliária.
[...]
De fato, nossa Casa é humilde, não tem o esplendor das
mansões luxuosas dos que tudo nos querem tomar, mas
aos olhos de todos os verdadeiros baianos, aos olhos
do Brasil, possui uma riqueza inestimável. Aqui está
a memória de um povo. Aqui moram os Orixás que vieram
da África em nosso amparo, em amparo de nossos ancestrais. A pobre Casa Branca está cheia de sua glória.
[...]
Afinal, sem a Casa Branca, sem outras casas como esta,
a Bahia não seria a Bahia, o Brasil não seria Brasil.
p. 140
Reivindicamos, Senhor Prefeito, apenas o que é nosso
por justiça. Não queremos terra por outros ocupada e
trabalhada para arrancar-lhes da mão o fruto de seu
continuado esforço, exigir que nos enriqueçam com
seu suor. Não queremos uma terra qualquer para obter lucro explorando gente pobre. Isto a nosso ver
constitui uma indecência e uma vergonha. Por outro
lado, Senhor Prefeito, quem pode ser dono da morada
de nossos deuses e antepassados, onde eles plantaram
seu sagrado axé? Quem pode cobrar pela permanência
de nossa comunidade nos lugares que ela cultivou,
consagrou e edificou no curso dos séculos? Quem pode
arrogar-se o direito de nos impor restrições ao uso
deste espaço, ameaçando-nos com a mutilação de nosso
acervo?
É muito clara a resposta que a Bahia dá a todas essas
questões.” (BRASIL, 1986, pp. 37-40)
Nessa narrativa poderosa que aciona tempos-espaços múltiplos, não só o valor
social do trabalho coletivo era contrastado com a obtenção de “lucro explorando
gente pobre”, mas um valor de uso mais-que-humano se alojava no coração da pergunta sobre “quem pode ser dono da morada de deuses e antepassados”. Ao tempo
em que rebatia as bravatas do suposto detentor dos “papéis do terreno”, o pleito da
comunidade do terreiro fazia concorrer uma modalidade de patrimônio (dominial) com
outra (patrimônio cultural). Nele, a ancestralidade negra se expressava como herança-de-santo, enquanto a propriedade se apresentava sob a forma de uma herança
de sangue, civil. Assim, o SPHAN se via diante do dilema de recusar ou ignorar as
faculdades insculpidas em cartas e assentos registrais para proteger “uma semente
vinda da África, do coração do Império Nagô”, nas conexões subterrâneas, ou melhor,
oceânicas de uma rede de cidades e territórios afroatlânticos (os orixás cultuados na
Casa Branca vinham também de Ketu, Osogbo, Abeokutá, Ejibo, Ile Ifé, entre tantas
outras localidades iorubás).
Essas imagens de “plantio” e “cultivo” não eram ocasionais. “Plantar o axé” corresponde, em termos nativos do candomblé, a fundar um terreiro, inaugurar um microcosmo de potência e vida em comum por meio de ritos que fixam (“assentam”) forças
cósmicas e políticas num determinado chão no qual a “família-de-santo” se faz:
Na construção física do terreiro, qualquer que seja
a arquitetura que se imagine, haverá sempre um lugar
central que será sacralizado e, de certa forma, se
é que podemos dizer assim, será mais sagrado que as
outras partes dessa comunidade. Em alguns candomblés,
você encontra o poste central, o opô, como o local
sagrado por excelência, onde estão depositados elementos simbólicos representativos do poder religioso
e da natureza mesmo do sagrado. [...] E, mais do que
p. 141
isso, um espaço onde a sacralização é permanente. É
nesse lugar que se diz que se plantou o axé. Plantar
o axé, neste caso, é ter um lugar, espaço físico, o
chão, onde no ato inaugural ou pré-inaugural se fazem
sacrifícios de animais [...] Geralmente nessa construção, nesse plantar o axé, na fixação desses elementos com sacrifício dos bichos de pena e colocação de
outros elementos que são utilizados nos rituais mais
secretos, que não podem ser revelados, são colocados
em uma espécie de buraco alguns elementos que representam o momento, o dia, o aqui e agora, em que se
está construindo e plantando o axé. E ali passa a ser
um núcleo extremamente importante, e muitas funções
religiosas terminando girando em torno dele (BRAGA,
2000, p. 163-165).
À luz desses “fundamentos” (preceitos basilares) de santo, desejo acentuar a função
constituinte do axé e dos atos de seu plantio não apenas para o terreiro e seu “povo”,
mas para a “grande nação brasileira” como um todo, nas palavras dos partidários do
tombamento. Os membros da Casa Branca sublinhavam que sem essa “semente”
e “sem outras casas como esta, a Bahia não seria a Bahia, o Brasil não seria Brasil”.
8
Trocando em miúdos, seria pelo axé plantado na Casa Branca do Engenho Velho que
todos esses entes políticos (estado, povo, nação, país) se constituiriam enredados.
Como outros trabalhos demonstram, a compreensão de que nos lugares onde
o seu axé foi plantado “moram os Orixás que vieram da África”, ou melhor, a ideia de
que é justamente através da materialidade desses atos de produção socioespacial
ou de “assentamento” que eles podem transitar entre mundos confere um sentido de
co-habitação e convivência ao terreiro. Sodré, num passeio, convida-nos a uma visão
panorâmica da morada desses deuses, vizinhos e parentes numa cosmopolis do axé:
p. 142
É o caso do terreiro baiano da Casa Branca, onde, topograficamente, «urbs” e “mato” se confundem. A primeira
visão que tem o visitante desse terreiro é o sacrário
do orixá gêge Dankô, com assentamento (fundamentos
simbólicos plantados) numa touceira de bambus. Em seguida, o Okoiluaê (monumento em forma de barco, também
chamado navio de Oxum), em frente ao qual se acha a
Fonte de Oxum. Vem depois o barracão (espaço com partes públicas e privadas), a “casa branca”. Ao redor,
os ilê-orixás (casas de Exu, Ogum, Xangô Airá, Omolu,
Oxossi) e uma casa dedicada aos antepassados (Egun).
Além das casas, existem os assentamentos de Tempo, de
Oxossi Ibualama e a Fonte de Oxumarê. No espaço “mato”
(vegetação intermitente, misturada ao “urbano”), encontram-se árvores sagradas, sedes de divindades: jaqueira de Exu, árvore de Loko Padê, gameleira de
Apaoká, birreiro de Omolu, os peregun (palmas). Esta
descrição superficial não se pretende etnográfica, mas
ilustrativa de uma poderosa condensação espaço-cultural, de uma reterritorialização operada pelo terreiro
através do sagrado. (SODRÉ, 1988, p. 52).
É pelo habitar em conjunto de pessoas, orixás, ancestrais e entidades-espíritos que
se institui a vida política de uma comunidade de santo. Implícita, assim, na narrativa
dos(as) filhos(as) da Casa Branca (casa comum a humanos, espíritos e divindades),
estava o direito à moradia não só de seus(uas) adeptos(as), mas também dos entes
não-humanos por eles(as) “plantados” e cultivados. Quem plantara a semente de
quem, na prática, era difícil saber. Esse é o sentido da interpelação: “Quem pode ser
dono da morada de deuses e antepassados, onde eles plantaram seu sagrado axé?”
Esse assentamento estabelece identificações, uma trama
cosmopolita e solidária e, a partir dos cruzos, ressemantiza sociabilidades transafricanas, ecologias
do pertencimento, processos transculturais, interculturais, cosmopolíticas, que alçam a diáspora negra como advento contracultural da modernidade como
nos ensina o navegante Gilroy. O assentamento é chão
sacralizado, é morada de segredos, é lugar de encantamento, é corpo ancestral, é onde se ressignifica a
vida. A diáspora evidencia a inventividade dos povos
negro-africanos desterritorializados, juntamente com
a inventividade de seus descendentes. Essas populações em dispersão reconstituíram seus territórios no
corpo, na roda, nos movimentos, nas sonoridades, nos
sacrifícios rituais – todos esses elementos são experiências de terreiro. [...] Nesse mesmo movimento
emerge a noção de terreiro, a ambivalente condição
dos seres em dispersão marca o nó que se ata entre
a perda do território e a invenção do outro. Assim,
o terreiro aqui inscrito não se limita às dimensões
físicas [...] mas sim como “campo inventivo”, seja
ele material ou não, emergente da criatividade e da
necessidade de reinvenção e encantamento do tempo/
espaço (RUFFINO, 2019, p. 100-101).
Durante o trabalho de campo que deu origem ao presente texto, derivado de
minha tese de doutoramento, tive oportunidade de tangenciar o assunto com Tata
p. 143
Loango (Ubaldino Bonfim) sacerdote do Abassá de Xangô e Caboclo Sultão e meu
9
pai-de-santo . Na conversa, Pai Ubaldino correlacionou as expressões “plantar o axé”
e “assentar o santo” com certa noção nativa de “moradia”:
- Por que se diz “assentar” o santo?
- Ô, meu filho, tu é advogado, não é? Tu se formou
advogado?
- Sim.
- Tu é advogado, mas tem que trabalhar pra ser advogado, não adianta só se formar, só ter o nome de
advogado. Então tu tá assentado lá, se não teu nome
não estaria também lá. [...] Como que eu vou pra minha casa sem um fogão, uma geladeira, sem nada pra
chamar de meu? Até o deus dos cristãos teve que ter
uma arca pra ser morada dele. Precisava? Não, mas
tinha que ter. Aquela arca era tão sagrada que representava a morada dele. O assentamento é uma morada.
O assentamento não deixa de ser uma morada do orixá.
Onde você chega e conversa. Tá conversando com o assentamento? Não, com o orixá. [...] Eu acho que seria
mais fácil ter um pedaço de terra, chegar ali, fazer
a coisa e dar pro santo: “é seu”. Mas pra remover um
assentamento, um igbá de louça é mais fácil do que pra
remover tudo aquilo que está debaixo da terra. [...]
Não que o fundamento plantado na louça não tenha seu
mistério, sua força, mas eu acho que tudo que é contato direto com a natureza é mais forte. O orixá vai
10
responder. Mas no chão é natureza, né?
Perspectivando a Arca da Aliança e a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil
como espécies de igbás, isto é, de assentamentos de orixá, Pai Ubaldino parecia insinuar
que, embora as prerrogativas de humanos e deuses possam prescindir de um meio
material de fixação, seu exercício se beneficia de determinados veículos e investiduras
capazes de lhes atribuir não só de fato, mas de direito, um domínio: sua “morada”.
p. 144
Assim como uma carteira da OAB situa e singulariza um profissional em suas relações (não significando, porém, que a carteira faça o advogado, ao contrário, é o conjunto dos advogados sêniores, sua corporação, quem faz a carteira), um assentamento
situa o santo, oferece-lhe um espaço próprio para existir e agir, dali tecendo suas
relações. Como salienta Rabelo, “o assentamento cria instância e circunstância para
que muita coisa aconteça” (2014, p. 207), ele “institui lugar” (2014, p. 228). Os assentos
dos orixás os singularizam como entidades e lhes amplificam a agência; os “assentos
funcionais” de profissionais jurídicos e servidores públicos os informam e conformam
como autoridades e lhes investem de poderes próprios. Assim como o orixá para ser
singularizado deve ser assentado, também a autoridade, para ser investida, precisa
“assentar-se”. Nesse sentido, assentar e ser assentado é também dar e tomar posse
de uma posição, lugar ou estatuto.
Ainda, do comentário de Tata Loango pode-se depreender sua insatisfação com
11
o modo atualmente mais corrente de “assentar” os santos em “louças” . Na opinião
do pai-de-santo, quanto mais próximo de sua “natureza” particular, de seu domínio
existencial, corpóreo, maior agência e “presença” tem o orixá, mais axé ele passa
e passa por ele. Esses são os corpos e terrenos em que o orixá melhor “responde”.
Poderiam ser suas as palavras de Rabelo, no sentido de que o “assentamento depende do lugar, nutre-se dele” (2014, p. 206). Daí a preferência por plantar o santo no
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chão – como muitos(as) adeptos(as) insistem ser “o estilo africano” predominante,
referindo-se a assentamentos na Nigéria e em países vizinhos –, em detrimento da
louça, embora justamente a proibição ou as dificuldades de acesso à terra, questão
enfrentada historicamente pela população negra no Brasil (R IBEIRO, 2020) induza
os(as) sacerdotes(isas) a preferir meios mais deslocáveis de assentamento, que possam
ser transportados em caso de mudança. O chão é, assim, plataforma e hipertexto de
uma cosmopolítica do habitar em conjunto ou em aliança com mais-que-humanos,
ponto de encontro entre terra, terreno e terreiro.
O terreiro como reconversão da terra em chão
Não é por acaso que a multiplicidade do habitar esteja no centro da demanda
apresentada pelo povo-de-santo nos processos de tombamento. A “morada” do orixá
não concerne apenas ao espaço físico do terreiro, mas ao mundo que nele se constrói,
que nele se constitui. Nos termos de R. Cover, ao nomos, ao mundo normativo do axé:
Habitamos um nomos - um universo normativo. Constantemente criamos e mantemos um mundo de certo e errado, legal e ilegal, válido e nulo. O estudante de
direito pode chegar a identificar o mundo normativo
com a parafernália profissional de controle social.
As regras e princípios de justiça, as instituições
formais da lei e as convenções de uma ordem social
são, de fato, importantes para aquele mundo; são, no
p. 145
entanto, apenas uma pequena parte do universo normativo que deve chamar nossa atenção. Nenhum conjunto
de instituições ou prescrições jurídicas existe além
das narrativas que o localizam e lhe dão sentido.
Para cada constituição existe uma epopéia, para cada
decálogo, uma escritura. [...] Uma vez compreendido
no contexto das narrativas que lhe dão sentido, o
direito torna-se não apenas um sistema de regras a
serem observadas, mas um mundo em que vivemos (COVER,
1983, p. 3-4, tradução do autor.)
Se nomos veicula um mundo normativo onde habitamos e, sobretudo, onde aprendemos a viver - “habitar um nomos é saber viver nele” (COVER, 1983, p. 6, tradução do
autor) – o axé como força-motriz e matriz desse mundo é o centro de uma teoria nativa
do poder constituinte. Assim, o axé fala (e ao falar, faz, performa) (d)a potencialização
da vida na precariedade, (d)a reterritorialização incessante dos orixás, ancestrais e entidades, mas também do próprio nomadismo do desejo e da saudade ante o desterro
afro-atlântico que é matéria expressiva do povo-de-santo.
Esse modo da existência reterritorializante, cuja expressividade aloca perda, anseio
e restituição como gestos fundacionais sobre a terra, encontra eco ainda em outra
formulação do nomos. O axé, uma vez plantado, é que engendra e assegura a vida
em comunidade – e por isso tem de ser reiteradamente alimentado – e que propicia
as condições de sua manutenção, especialmente pela perpetuação da linhagem.
Nesse aspecto, trata-se do umbilical vínculo entre terra e a ordem político-jurídica,
suscitada por Schmitt em seu notório ensaio de 1950:
Para não perder a conexão decisiva entre ordem [ordenação] e orientação [localização], não deveríamos
traduzir nomos como lei (em alemão, Gesetz), regulação, norma ou qualquer expressão similar. Nomos vem
de nemein – uma palavra grega que significa tanto “dividir” como “pastorear”. Logo, nomos é a forma imediata pela qual a ordem política e social de um povo
se torna espacialmente visível – medição e divisão
iniciais do pasto, é dizer, a apropriação da terra
bem como o ordenamento concreto contido nela e que a
ela se segue (SCHMITT, 2014, p. 70).
p. 146
Nessa leitura do nomos, o pasto é a metáfora forte, ao passo que os candomblés
costumam acionar imagens mais agrícolas. Pensemos na transferência do Ilê Axé Opô
Afonjá do Rio de Janeiro para Coelho da Rocha, descrito por Sodré e Augras:
Após a morte de Mãe Aninha (1938) é sempre o axé (a
autoridade oracular) que orienta a localização espacial das atividades no Rio de Janeiro. Nesse sentido,
Mãe Agripina, Obá Deyi, encarregada por Aninha de zelar pelo axé, consulta sempre Xangô. É esse orixá que,
em 1943, diz não querer mais a realização de obrigações na cidade, porque já dispunha de uma “roça”.
Esse enunciado é ainda obscuro, uma vez que não fica
explicitada a localização da “roça”. Entretanto, no
ano seguinte, Mãe Agripina – que vinha desenvolvendo
atividades litúrgicas num barraco de sapé (batizado
de “Pavilhão Obá” por Mãe Aninha em 1925), localizado
no subúrbio de Coelho da Rocha – recebe de Xangô a
instrução de permanecer em Coelho da Rocha. A mensagem
trazia, no entanto, uma incerteza: poderiam talvez
voltar para a cidade (bairro de São Cristóvão) depois
do ritual denominado “Águas de Oxalá”. Narra Augras:
“Depois dessa festa, no entanto, Xangô mandou dizer
que não mais voltaria para a cidade, pois ele já tinha uma roça. Conta um ogã da casa: ‘Ninguém sabia
desta roça’. Foi Omolu que, pegando uma estaca, saiu
porta afora, com todos acompanhando. Ele parou em um
terreno, próximo ao Pavilhão Obá e, fincando a estaca, disse ser ali a roça’”. Descobre-se, então, que o
terreno pertencia a Filhinha de Ogum (iniciada por Mãe
Aninha na Bahia, em 1921), irmã de Mãe Agripina. Nesse sítio, instala-se o terreiro fluminense do Axé Opô
Afonjá. [...]O lugar esquecido, mas pertencente a um
membro da comunidade, retorna sob a forma mítica (Xangô enuncia, Omolu localiza) para dissolver um impasse
real-histórico do grupo (SODRÉ, 1988, p. 96-97).
Tomo esta passagem, em que Xangô (ordem) e Omolú (localização) materializam o
nomos da terra do Opô Afonjá, como uma interjeição afro-brasileira num diálogo teórico
com Schmitt, para quem “a terra é denominada, na linguagem mítica, a mãe do direito”
(2003, p. 37). O agenciamento mítico da propriedade, que, em associação com a estaca
de Omolú, emerge metamorfoseada sob a forma de “roça” de candomblé (“roça” pola13
rizando com “cidade”, domínio de outras forças). por um lado revisita a já mencionada
potência constituinte do axé, sua capacidade de instituir lugar. Por outro, testemunha
a centralidade da ação não-humana na (re)tomada de posse do que “pertence” à ancestralidade (Xangô foi peremptório ao afirmar que ele dispunha de uma roça). Ainda,
realça o terreiro como espaço heterotópico frente à urbanização homogeneizadora.
É uma possessão – a do corpo de uma iniciada – que garante outra possessão - a
de um terreno. O axé possui corpos e territórios, ou melhor, participa de corpos como
p. 147
territórios e de territórios como corpos. A estaca de Omolú, agrimensor primordial, que
abre uma fenda no solo pelo qual “a terra” mesma poderá ser alimentada (medição
e divisão, na gramática schmittiana, “plantar o axé” e “dar de comer ao chão”, na do
14
candomblé), mimetiza a navalha do pai ou da mãe-de-santo que abre kuras e, por
meio dessa inscrição e orifício, também cura. Omolú “come” na terra e, nessa comensalidade, o “terreno” é sangrado e despido de suas vestes jurídicas (a propriedade) para
ser restituído à condição originária de “chão”, essa intensa virtualidade de um “terreiro”:
Quando um novo terreiro é fundado, o barracão é preparado em um rito que tem o chão como foco principal: um buraco de terra é aberto no centro, abaixo
da cumeeira. Aí são feitas oferendas que incluem bichos sacrificados, comidas secas e um certo conjunto
de objetos (que inclui moelas e recortes de jornais
contendo notícias boas) – estes materiais são os axés
ou fundamentos da casa. Como me explicou Mãe Beata, o
chão, que então comeu, é Intoto, qualidade de Obaluaê
[outro nome de Omolú], ligado ao subsolo. Os materiais plantados no chão são depois cobertos de terra
e um conjunto diferenciado de lajotas usado para fechar e demarcar o espaço – o ponto mais concentrado
de axé no terreiro [...]. (RABELO, 2014, p. 260)
Outro episódio digno de nota é o coletado por Parés (2007) e versa sobre a indefectibilidade de Azonsú, vodum da nação “jêje” também associado à terra, no Zogbodô
Male Vodun Seja Hunde (templo popularmente conhecido como “Roça do Ventura”,
em Cachoeira, Bahia). Ele seria um dos protagonistas do tombamento da casa pelo
IPHAN, em 2014, mas já zelava da Roça do Ventura ao tempo de Sinhá Abalhe:
As vodunsis da casa, ou seja, as filhas de Maria Ogorensi, não aceitaram que Sinhá Abalhe assumisse a direção do Ventura e foi por isso que a roça ficou tanto
tempo fechada. (...) Segundo Gaiaku Luiza, quem conseguiu reunir as filhas de volta foi o Azonsú de uma das
vodunsi antiga [Luiza Moreira de Avimaje] que “virou”
e disse que a roça de Bessen não podia virar pasto para
o gado, e que já era tempo das filhas voltarem e aceitarem a nova Gaiaku. E foi assim que as vodunsi foram
voltando pouco a pouco. (PARÉS, 2007, p. 220)
p. 148
15
Azonsú “virava” na sua filha, tomava posse de seu corpo, como meio para retomar
a posse de sua casa. Como é frequente, o santo que “virava” trazia uma admoestação:
“a roça não deveria virar pasto”. Alguns devires – o devir Azonsú da filha-de-santo, por
exemplo – são salutares, amplificam o axé. Outros – como o devir “pasto” da “roça”
– não são propiciadores de potencialização e circulação de axé. Só os devires que
impulsionam o circuito de dons e contradons, as trocas e relações são benfazejos. Toda
estagnação é deletéria. Deslocando o binômio roça-cidade, em que Xangô parecia
se mover, o recado do vodum contrapunha roça como espaço de cultivo, de zelo, de
plantio, a pasto como local do abandono, daquilo que cresce sem regra, à toa e ao leo.
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Essa imagética tem ressonâncias importantes no mundo normativo do axé . “Plantar o fundamento” consubstancia um ato primordial pelo qual a vida política do povo
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de terreiro se constitui: alimentação da terra (a terra, ou melhor, o “chão come”). A
manifestação da terra, no terreiro, já não como terreno e sim como chão, é refratária às
formas da propriedade. Já não é ela o objeto a se distribuir. O chão é que nos distribui:
A gente tem um Orixá chamado Omolú ou Obaluaê. Na
igreja católica ele é muito respeitado como São Lázaro ou São Roque. Os católicos são muito devotos dele
e nós muito devotos do nosso Orixá, é o dono da terra.
Eu muito pequena ouvia dizer e ouço até hoje: “do pó
viemos e ao pó voltaremos”. É isso: a gente precisa
respeitar uma coisa chamada terra, chão, porque de lá
a gente veio e para lá a gente vai voltar. Então, enquanto a gente estiver em cima desse chão, a gente precisa respeitar esse chão que a gente pisa em cima. Não
importa se é branco, preto, amarelo, azul, não importa
a cor, precisa ser respeitado. Por isso que, quando
eu piso esse chão aqui, principalmente esse chão que
tem Orixá, principalmente porque o Ariaxé dessa casa
é Omolú ou Obaluaê, quando eu piso nesse chão, eu sei
pisar nele com respeito (SANTOS, 2018, p. 87)
A “terra” vira outra coisa quando “tem orixá”, vira “
chão”, que come, que precisa ser alimentado, que carrega suas demandas e no qual é preciso “saber pisar”.
O plantio do axé, assim, é uma função ou fundação
não no chão, mas do próprio chão como modo de aparição originário da terra, seu hipertexto mais afeito
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à possessão do que à posse . Dito de outro modo, o
terreiro pode ser lido como um dispositivo de reconversão da terra em chão. Enquanto a posse participa
de uma hierarquia irreversível (entre sujeito e objeto possuído), a possessão permite reversibilidades
e trocas perspectivas:
p. 149
Em português, posse designa prioritariamente “ato ou
efeito de se apossar de alguma coisa”, enquanto possessão indica antes “o ato ou efeito de possuir ou de
ser possuído” (Houaiss 2001). O conteúdo semântico do
substantivo posse recobre, portanto, relações entre
um domínio constituído por sujeitos que possuem e um
outro domínio constituído por coisas que são possuídas
(ou pelo que não seria coisa, mas que coisa se torna
em obediência à relação de posse, como no exemplo fornecido por Hauaiss: “alguns homens consideram a esposa sua posse”). Já o do substantivo possessão recobre
isso e alga mais, pois o possuidor pode, ele também,
ser possuído, como o sujeito pode ser sujeitado, ou
predicado; nesse caso, o sujeito da (or)ação seria,
por assim dizer, mais um quase-sujeito, posto que também quase-objeto, do que um sujeito pleno, enquanto o
predicado da (or)ação seria mais um quase-objeto, já
que também quase-sujeito, do que um objeto acabado. Na
possessão o curso da (or)ação é reverso, enquanto na
posse, não (VARGAS, 2007, p. 41-42).
Interessante perceber no pleito da Sociedade Recreativa São Jorge do Engenho Velho pelo tombamento, o marcado descompasso entre a “alegada propriedade de quem
aí nada fez” (o fundamento de direito) e a “morada dos deuses” (o fundamento de santo).
Por isso se falava em “casa” de candomblé. E por isso, também, a insistência em um
estado insubmisso da terra como terreiro: ela é chão de santo que jamais poderá voltar
a ser sujeitada à condição de terreno. Ela participa da possessão, não da propriedade.
As nações enredadas e um nomos oceânico
Num lance arrojado, os(as) filhos(as) da Casa Branca igualmente expunham a tese
da comunicabilidade entre a terra-chão e a terra-solo da nação. Qualquer ameaça
à existência do terreiro não atingia somente a comunidade ou o “povo negro”, mas a
totalidade do povo baiano e, em última instância, feria todo o povo brasileiro, porque
os orixás, os candomblés, numa palavra, o axé seriam co-constituintes do Brasil. A
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nação brasileira e a nagô, talvez dissessem, também “comem juntas”.
p. 150
Essa formulação expande o espectro político do axé como teoria e prática nativos
da constituição e como modo de produção social do espaço, ao assentá-lo nas ordens
política e urbana (e ao assentá-las nele). Assim, o candomblé e seus agentes reliam,
em seus próprios termos, a doutrina dos juristas e urbanistas e enxertavam a raiz nagô
no coração do Estado e da cidade. Buscavam efetivar um elo, ou melhor, um enredo
entre a narrativa de sua africanidade – as origens ultramarinas da “nação nagô” – e a
da sua brasilidade – fazendo daquela um elemento essencial à vitalidade desta.
O termo “enredo’’ é uma categoria nativa do candomblé que tem muito a nos
dizer. Enredo não equivale a destino e não afasta a agência humana. Ao contrário, se
nossos enredos nos deslocam tanto quanto nos constituem, para serem plenamente desdobrados precisam ser assumidos e cultivados. O enredo convoca humanos,
espíritos e orixás:
Enredo chama atenção para os muitos caminhos que se
cruzam e se imbricam na pessoa, formando uma história. Frequentemente se ouve dizer que alguém tem um
enredo complicado: nele se encontram orixás que mantêm entre si relações de inimizade (conforme descrito
nos mitos), ou que disputam a primazia como donos da
cabeça. Outras vezes, a complicação do enredo está
justamente na dificuldade que impõe a mãe ou pai de
santo de discernir os muitos fios de que é composto –
a imagem, neste caso, é de um emaranhado que apenas
um olhar experiente e competente pode desvendar, ou
que apenas com o tempo vai assumir uma configuração
mais nítida. [...] Primeiro, o enredo, até onde entendo, é dotado de certo dinamismo: mais que uma estrutura feita de linhas ou pontos, é uma configuração
que sofre deslocamentos. […] Segundo, o enredo não é
apenas uma história que se desenrola fora do alcance
e interferência das pessoas humanas e que elas podem
apenas contemplar (no jogo) e/ou aceitar [...] é uma
história da qual eles efetivamente participam. (RABELO, 2014, p. 93)
Enredo, portanto, pode ser compreendido como um modo situado de produzir
relações e de falar delas. Sejam elas amistosas ou hostis, reconhecem-se as configurações que emaranham nomoi (COVER, 1983), diferentes mundos normativos, como
relacionais: “desvendar o enredo – ou pelo menos parte do enredo – que acompanha
uma pessoa é uma tarefa necessária para conduzir a contento à feitura [iniciação]”
(RABELO, 2014, p. 95).
Ao menos parecia ser esse o enredo – um certo parentesco entre a “nação” nagô e
20
a “nação” brasileira – que o povo da Casa Branca referenciava. No território político
p. 151
daquele terreiro se cruzavam duas, quiçá inúmeras tradições, advindas de terras distintas, fazendo desse espaço uma jurisdição compartilhada entre mundos normativos.
A demanda do povo de santo colocava em circulação signos compartilhados pelas
narrativas da africanidade e da brasilidade: patrimônio, território, nação. As “nações”
(jêje, nagô, ketu, angola, ijexá, etc., e suas inúmeras combinações) emergem no contexto do candomblé como artefatos políticos que extrapolam os limites do Estado-nação.
Mais do que isso, as nações de candomblé parecem operar pela contestação do amálgama “estado” e “nação”, promovendo sua dissociação e movendo-se dentro daquilo
que Matory (2005) nomeia “diálogo circun-atlântico”. De acordo com a reconstrução
empreendida pelo autor, no mesmo período em que o estado brasileiro passava a
ser imaginado como “nação” (e, na Bahia, o candomblé se ia estruturando como comunidade religiosa), populações diaspóricas como as da Costa da Guiné passavam
também mobilizar o vocabulário político do nacionalismo que cruzava o oceano:
No século XIX e no início do século XX, ao mesmo tempo
que os crioulos brancos estavam “imaginando” e reificando uma nação chamada Brasil, os africanos no Brasil e ao longo da costa da Guiné estavam “imaginando”
e sustentando uma nação de um tipo não imaginado por
Benedict Anderson. E é sem ironia - e sem exigência
de correção - que esses africanos e seus descendentes
no Candomblé afro-brasileiro ainda falam de suas comunidades transatlânticas como nações. Respeito essa
linguagem (...) não porque a considero a categoria
analítica apropriada (...), mas porque os membros e
vizinhos do Candomblé têm plena consciência de que os
cidadãos e analistas dos Estados-nação usam o mesmo
termo com pretensões monopolistas. Seu uso, portanto,
ensina uma lição significativa para aqueles que acreditam que os Estados-nação monopolizaram ou dominam
a imaginação de todas as classes da comunidade. Este
termo ilustra a co-ocorrência de, e a sobreposição
entre a cidadania dos crentes do Candomblé em múltiplas comunidades imaginadas. Em todo o mundo, a pertença simultânea ou situacional das pessoas em comunidades múltiplas e sobrepostas é - como as múltiplas
nacionalidades do candomblecista - um dado adquirido
pelo menos tão antigo quanto o Estado-nação (MATORY,
2005, p. 73, tradução do autor).
p. 152
Nessa teia afrodiaspórica residiria, reputa Gilroy, a especificidade da formação do
Atlântico negro e o proveito heurístico dessa lente para tematizar o “desejo de transcen-
der tanto as estruturas do E stado-nação como os limites da etnia e da particularidade
nacional” (2001, p. 65). O uso afroatlântico que o candomblé faz da noção de nação
dá ênfase à multiplicidade de vínculos políticos do povo- de- terreiro - a um só tempo
povo ‘africano’ e ‘brasileiro’ - sem que nenhum desses monopolize as lealdades.
A “nação” de candomblé, contudo, se pode ser lida no registro da proliferação de
diferenças, não deixa de se inscrever nos entre-lugares tensionados da colonialidade.
O termo “nação” foi inicialmente aproveitado pelos traficantes de escravos no comércio
atlântico e, posteriormente, pelo aparato de controle social da colônia como marcador
que não correspondia às denominações étnicas autoatribuídas pelos povos em suas
regiões de origem:
Ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo
“nação” era utilizado, naquele período [séc. XVII e
XVIII], pelos traficantes de escravos, missionários e
oficiais administrativos das feitorias europeias da
Costa da Mina, para designar os diversos grupos populacionais autóctones. O uso inicial do termo “nação”
pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses,
no contexto da África ocidental, estava determinado
pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos
estados monárquicos europeus dessa época, e que se
projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da Mina (PARÉS, 2007, p.23).
Nação, portanto, se forja como conceito do povo de terreiro na circularidade e na
especularidade de (auto)percepções, dentro dos quadros profundamente violentos e
expropriadores da relação colonial. Nasce, noutras palavras, no rastro de relações de
dominação e jugo, que, porém, são inventivamente subvertidas e reconfiguradas num
sistema religioso sofisticado e propulsor de resistências. De fetiche dos colonizadores
que projetavam sua própria imaginação social sobre as populações da África ocidental, a
“nação” pôde ser despossuída em identidade coletiva que ancorou comunidade políticas.
Nesse sentido, plantar o axé da cidade de Oyó, como se narrava terem feito as
fundadoras da Casa Branca, em solo brasileiro, era uma performance transatlântica:
Como antropólogo, considero que a implantação do axé
de uma casa é um momento de construção de um mito, de
um universo mágico e religioso específico. Talvez tenhamos aí plantado uma noção profunda de relação com
as origens africanas. Também tem-se aí elementos que
p. 153
representam essa unidade transatlântica, que guardam
absolutamente a noção de segredo, pois como já disse,
poucas pessoas têm acesso a esse instante em que se
planta o axé (BRAGA, 2000, p. 165).
Talvez tenha sido por isso que o conflito na Casa Branca se deflagrou precisamente
com a tentativa de demolição do “Navio de Oxum” (o Okô Iluayê), altar monumental
no espaço lindeiro ao muro que o terreiro dividia com o recém-inaugurado posto de
gasolina, fruto dos negócios imobiliários do autodeclarado “proprietário” do terreno.
Ora, a tomada da Praça de Oxum e a ameaça de despejo de sua embarcação-morada
são emblemáticas de um embate entre nomos terrestre ou, quiçá, telúrico e nomos
oceânico – ou nomos okúnico, em referência a Okun, o oceano, e sua divindade, Olokun.
O nomos okúniko poderia ser imaginado como aquele que se assenta não sobre
a terra apenas, mas sobre a mediação do mar entre terras ou “costas” conexas pela
grande formação rizomórfica do Atlântico negro. Não é por acaso que Gilroy (2001),
ao evocá-lo como contracultura da modernidade, aciona “a imagem de navios em
movimento pelos espaços entre Europa, América, África e Caribe como um símbolo
organizador central para este empreendimento”, pois eles
(...) imediatamente concentram a atenção na Middle
Passage [passagem do meio], nos vários projetos de
retorno redentor para uma terra natal africana, na
circulação de ideias e ativistas, bem como no movimento de artefatos culturais e políticos chaves: panfletos, livros, registros fonográficos e coros” (GILROY, 2001, p. 38).
O navio, como meio de passagem, e a “passagem do meio” (como ficou conhecido o trecho mais árduo e demorado da viagem transatlântica) estão poética, ritual
e espacialmente condensados no “Navio de Oxum” da Casa Branca e turbinam as
memórias e formas inventivas de vida que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká constituíra. Os
atributos de uma embarcação, aliás – “um sistema vivo, microcultural e micropolítico
em movimento” (GILROY, 2001, p. 38) – bem poderiam descrever um terreiro, esse
corpo em trânsito num nomos afrodiaspórico ou nomos afroatlântico (MATORY, 2005),
cheio de passagens e de (entre)meios de passagem
p. 154
Tenho sugerido que a potência de um nomos oceânico (nomos okúnico ou nomos-kalunga) pode inundar a concepção schmittiana de ordenação e localização, insinuando
novos e radicais desdobramentos de seu argumento sobre o caráter do direito:
O mar não conhece essa unidade clara entre espaço e
direito, entre ordenação e localização. [...] o mar
não tem um caráter, no sentido originário da palavra
caráter, que vem do grego charassein: inscrever, insculpir, imprimir. O mar é livre [...] originalmente,
antes da fundação dos grandes impérios marítimos, o
princípio da liberdade dos mares significava uma coisa
bem simples: o mar era um campo livre para a pilhagem. [...] a palavra pirata vem do grego peiran, ou
seja, pôr à prova, experimentar, arriscar. [...]pois
no mar aberto não havia cercados [Hegungen], fronteiras, lugares consagrados, localizações sagradas,
direito ou propriedade. [...] No mar não vige nenhuma
lei (SCHMITT, 2014, p. 38-40).
Como imaginar e experimentar um nomos sem “cercados, fronteiras e direito de
propriedade” entendo ser um dos desafios que o axé nos lança. Um nomos oceânico
seria, num arroubo especulativo, um nomos-pirata, não tanto fora da lei quanto entre leis?
Na Casa Branca, a questão era saber que lei, mesmo sem vigorar sobre o mar em si,
poderia atravessá-lo do reino de Oyó até a Bahia de Todos os Santos, dando passagem
ao direito dos descendentes de dignitários do “Império Nagô”. Navegamos em águas
turbulentas. Se, como aludia a petição da Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge
do Engenho Velho, era “muito clara a resposta que a Bahia [com todos os seus santos]
dá a todas essas questões”, a resposta dos órgãos públicos era menos incontroversa.
A arquiteta coordenadora do setor de tombamento do SPHAN, em sucessivas
informações prestadas sobre o andamento do processo, afirmava que o “problema,
além de ser muito importante, é muito complexo e delicado” (29/08/1983); que se
deveriam aplicar “a experiência e a criatividade à busca de novas medidas legais”, posto
que a situação era incompatível com “os recursos legais de preservação disponíveis”
(21/10 /1983); e, afinal, que restava “fundada dúvida, ainda não superada, no tocante
ao instrumento a ser utilizado para a preservação em que estamos empenhados”
(30/10/1983). Qualquer resposta ao problema era, naquele momento, uma forma
de experimentalismo institucional. Dois dos focos de angústia do corpo técnico da
instituição eram precisamente: (a) os efeitos da declaração de tombamento sobre
uma área cuja propriedade se achava em litígio; e (b) o conflito entre a mutabilidade
das práticas e espaços religiosos ante a cristalização que o tombamento, convencionalmente, impunha.
p. 155
Diversos intelectuais foram consultados sobre a questão, reafirmando o valor cultural da Casa Branca, mas reconhecendo, nas palavras de Peter Fry, que “os temores
da SPHAN [...] são fundados e que um tombamento tout cour poderia trazer prejuízos
infindáveis tanto para as gerações futuras do terreiro quanto para aquelas da SPHAN”. A
medida a ser adotada impactaria a herança e o destino não só do Ilê Axé Iyá Nassô Oká,
mas de todo o campo do patrimônio cultural (inclusive das futuras “gerações” de funcionários) e os sentidos mesmo da “nação” brasileira. Se o maior interesse dos dirigentes
do terreiro era “assegurar seu direito de continuar ocupando o atual terreno”, ponderava
o sociólogo, o ideal seria envidar esforços para levantar o montante necessário à sua
aquisição e não “imobilizá-lo num emaranhado burocrático” (BRASIL, 1986, p. 118).
Preocupações semelhantes permearam a 108ª sessão do Conselho Consultivo
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em que o processo foi pautado. Embora
o relator, o antropólogo Gilberto Velho, após apreciação sobre a relevância histórica
e etnográfica da casa, houvesse recomendado o tombamento da integralidade do
imóvel, com edificações, árvores e objetos sagrados, “acompanhado de todas as medidas necessárias que efetivamente garantam a segurança deste patrimônio” (BRASIL,
1986, p. 174), seus colegas não partilhavam do mesmo entusiasmo. O conselheiro
Gilberto Ferrez, por exemplo, pronunciando-se em seguida, “chamou atenção para o
precedente que se abriria e ao fato do terreiro estar situado em terreno de propriedade
de terceiros”, no que foi secundado por Eduardo Kneese de Mello. Este, enquanto se
abstivesse de votar, apresentou sérias reservas acerca da “questão da propriedade
do terreno, a falta de documentação no processo e o fato de o monumento, no seu
entender, não fazer parte da religião”. O conselheiro Pedro Calmon seguiu a mesma
linha, requisitando esclarecimentos complementares sobre o imóvel e perguntando
“se sobre ele incide algum direito que deva ser respeitado”. Manifestava “sua estranheza diante do fato do terreiro estar instalado naquele terreno há 150 anos e não
ser proprietário” e, insinuando que seus membros “não conhecem direito a situação
jurídica do terreno”, pleiteava ao fim o adiamento da pauta. O impasse apenas foi
superado com uma nota de Manuel de Castro, então prefeito de Salvador, presente
à sessão, repassada às pressas ao presidente do SPHAN, na qual afirmava “que a
Prefeitura garantirá a posse do terreno ao terreiro”. Lida a nota e aliviados os corações,
concluiu-se a votação com duas abstenções, um voto contrário ao tombamento, um
voto pelo adiamento da decisão e três favoráveis.
p. 156
Era o evidente problema da terra – e daquilo que o direito dela fazia, uma “propriedade” – que inquietava os presentes. Não apenas no caso concreto daquele imóvel
em si, mas o problema maior do nomos da terra e do quanto ele poderia ser abalado,
sacudido pelo precedente. Tanto assim que, mesmo deferido, o tombamento teve de
aguardar até junho de 1986 para sua homologação, somente depois da oficialização
da desapropriação promovida pelo Município de Salvador e da concordância formal
do que se reivindicava proprietário,ou seja, não houve definição para o terreiro até
que o destino do terreno estivesse selado. E selar esse enredo não foi simples: em
19 de setembro de 1985, o mesmo diretor Ary Guimarães, em tom algo constrangido, alardearia desta vez via Telex, a Angelo Oswaldo Santos, Secretário do SPHAN
em Brasília, que o proprietário do terreno, Hermógenes Príncipe de Oliveira, tentaria
anular o tombamento provisório do terreiro motivado pelo decurso de mais de um
ano sem sua homologação ministerial. Memorandos ansiosos seriam trocados nos
meses seguintes entre as sedes do órgão até que um novo telegrama encerrasse o
caso, comunicando, literalmente: “solenidade prefeito entregou a casa branca título
de propriedade permitindo assim finalização processo tombamento. Saudações”.
Com a entrega do título (uma traditio) e a finalização do tombamento (por meio
da inscrição do terreiro no livro do tombo), o SPHAN e o Município de Salvador acabaram plantando algo de seu próprio axé no solo da Casa Branca. Com a titulação, a
propriedade passou para o patrimônio da comunidade religiosa e com o tombamento,
o terreiro passou para uma jurisdição afro-brasileira: um espaço de “diálogo circun-oceânico” (MATORY, 2005) na execução de uma política cultural. Se “cultura” foi a
categoria jurídica que permitiu a passagem do axé ao nomos estatal, “tombamento”
era o instituto que abria uma via de passagem do direito à nação nagô. A retomada do
território dos orixás seria concluída com o Decreto Estadual 292, de 8 de setembro de
1987, que desapropriou também a área ocupada pelo posto de gasolina, devolvendo-a
à posse de Oxum. O terreno era, de novo, terreiro, terra de santo: chão.
Algumas lições sobre ferros,
tombamentos e contaminações
21
O resultado apertado da discussão do Conselho repercutiu nos jornais baianos ,
num misto de crítica aos mais reticentes e de celebração da atitude do SPHAN. O
Correio da Bahia estampava, acima de uma foto da fachada Ilê Axé Iyá Nassô Oká
e outra da mesa de reunião dos conselheiros, em 1º de junho de 84: “Casa Branca
é o primeiro monumento negro tombado”. Na mesma manhã, a Tribuna da Bahia
comemorava: “Patrimônio tombou o mais antigo terreiro de candomblé do Brasil”,
p. 157
não sem uma nota irônica: “Intervenção do prefeito garante tombamento da Casa
Branca”. Isto é: se os antepassados da casa haviam nela plantado a “semente do axé”,
seus descentes plantavam uma semente de direitos da qual muitos outros terreiros
colheriam, em breve, os frutos.
22
O Jornal da Bahia ressaltava o ineditismo da decisão que consagrava o Ilê Iyá
Nasô Oká como “monumento nacional”, fazendo publicar na mesma edição um artigo
de Cid Teixeira intitulado “Axé: um grande passo”. O autor descrevia com densidade
o ambiente da reunião do dia anterior. Do texto replico um trecho ao qual retornarei
mais adiante:
p. 158
[...] Era um cenário que só ocorre na cidade de Salvador. Em nenhum outro lugar do mundo aquilo seria
possível. No salão de beleza ímpar da Santa Casa de
Misericórdia, ao redor daquela mesa “sólida e larga
como deve ser a misericórdia da casa” estavam reunidos aqueles eruditos senhores para, com a assistência
sofrida e tensa de ogãs, ialorixás, ekedis e simples
curiosos para deliberar sobre o tombamento de um terreiro de candomblé. Para os ortodoxos e os rotineiros
tudo pode ter até um certo sabor de heresia. [...]
Afinal, se inovava o conceito de bem suscetível de ser
tombado. Se criava uma jurisprudência nova nas praxes
da burocracia federal quanto ao que deve ser preservado. [...] E nisto residiram, precisamente, algumas
dificuldades na marcha do assunto. Afinal, pensavam
e diziam os ortodoxos: o que se pretende tombar? O
barracão? Os pejis, um pé de árvore sacralizado? E a
resposta, aparentemente fácil na Bahia, fica difícil
de ser dada quando se dirige a pessoas da maior importância cultural, filhas, entretanto de outras raízes, de outros procedentes, de outras vivências. Como
explicar que o que se quer tombar é algo imponderável
como objeto, mas ao mesmo tempo substancial e essencial como valor de cultura. Como se explicar que o que
quer tombar é um axé? E, como explicar num processo
desses cheio de despachos-supra e informações retros
– e de pareceres de folhas tais ou quais o que é um
axé? [...] [Nos seus primórdios] os terrenos eram de
pouca valia, praticamente sem preço num rarefeito e
diluído mercado imobiliário. E, na verdade, a ninguém
ocorreria comprar um chão para fazer nele um terreiro de candomblé. A sua presença ali, junto ao pé de
‘loko’ era tão natural, tão óbvia que a aquisição
seria uma superfetação. O tempo passou e, com ele
tão puras visões de mundo. Passou o tempo de Sussu e
passou o tempo de Tia Massi. Chegou o tempo do BNH e
com ele toda uma tabela de valores. E aí, como estabelecer a compatibilização de uma tabela de UPCs com
um oriki para Xangô? E o que tem a ver a pedra fundamental de um desses conjuntos que, dois anos depois
de construídos já precisam de recuperações pelas rachaduras com o assentamento de um axé que é atemporal
por sua própria natureza? (BRASIL, 1986, p. 154)
As indagações suscitadas pelo historiador e jurista Cid Teixeira seguem ressoando
em conflitos e disputas pela cidade e pelo direito à cidade. Como explicar por pareceres, informações, memorandos e despachos o que é um axé? Como compatibilizar
unidades de custo tabeladas pelas agências governamentais com o valor de um
23
oriki de Xangô? Como compassar a temporalidade das políticas públicas, como as
de habitação ou as de regularização de “assentamentos humanos”, com a vida dos
assentamentos de santo, morada dos deuses? Essas e outras questões compartilhadas
por “ogãs, ialorixás, ekedis” e por “eruditos senhores” (e senhoras) em momentos de
urgência como o que colocou os “orixás em risco” na Casa Branca, voltaram a ressoar
num episódio ocorrido com Mãe Teté e Egbomi Ajikutu, no ano seguinte à decisão
do conselho.
Em meados de 1985, dois funcionários da prefeitura de Salvador foram designados
para cortar alguns dos galhos que já ultrapassavam os muros da casa. O que seria um
procedimento relativamente corriqueiro de poda noutro terreno qualquer, no terreiro
envolvia um cauteloso exercício de perspectivismo, pois se, do ponto de vista dos
agentes do município (poder público), aquelas eram “apenas árvores”, do ponto de vista
de orixás e entidades (poderes cósmicos), elas eram “casa de morada”. Se de ambas
se podia dizer que haviam sido “plantadas”, a confluência do vocabulário escondia um
profundo desencontro de sentidos. As zeladoras de santo, responsáveis pela tradução
dessas perspectivas num contexto de impasse cosmopolítico (ANJOS, 2006) que, se
administrado de maneira atabalhoada, podia acarretar severas consequências a todos
os envolvidos, tiveram de encontrar uma solução prática e, ao mesmo tempo, eficaz
nos dois mundos: consagraram os equipamentos e ferramentas que seriam utilizados,
incorporando-os ao axé como, antes, haviam simbolicamente “iniciado” o presidente
do SPHAN numa visita técnica que lhe permitiu acesso a certas parcelas do templo.
O ato de “lavagem”, seguindo preceitos de santo, transformava, inadvertidamente,
facões e motosserras em índices do enredo entre Estado e Candomblé e produziam
uma duplicação, uma imagem sua em cada um dos mundos. Do ponto de vista do
p. 159
nomos, eles eram instrumentos de trabalho e meio de suprir uma função urbanística;
na perspectiva do axé, elas passaram a ser também “ferramentas de santo”, como os
ferros dos assentamentos ou as paramentas dos orixás. Afinal, não era absurdo fazer
sua materialidade férrea “vibrar” em numa espécie de difração, afinal de contas o ferro
podia sempre ser despertado como fractalidade do corpo de Ogum.
Há mais de uma lição a se tirar desse breve “enredo”, como o próprio povo-de-santo
quiçá o descreveria, de tombamento da Casa Branca do Engenho Velho. Atenho-me,
por hora, a um “fundamento” sobre a co-existência e a co-habitação que a aparição
simultânea e enredada de nações e povos, terras e chãos, ferros e ferramentas oferece:
a oscilação sempre passageira entre simetrização (LATOUR, 2019) e equivocidade
(VIVEIROS DE CASTRO, 2018), ou melhor, a vocação nômade para “virar” a dita política
urbana (e a filosofia política, por que não) numa cosmopolítica enterreirada.
Notas
1
Trata-se da cidade-reino de Oyó, na atual
Nigéria, governada por Xangô (ou um de seus
avatares históricos), provavelmente na primeira metade do século XIX (TAVARES, 2008).
Ainda hoje, o Alafin, dirigente político máximo do território, é considerado um descendente direto do orixá do fogo.
2
p. 160
Cabe aqui, desde logo, a advertência de
Sodré sobre o espaço dos terreiros: “Deste
modo, embora o terreiro possa ser em conjunto apreendido por critérios geotopográficos (lugar físico delimitado para o culto),
não deve, entretanto, ser entendido como um
espaço técnico, suscetível de demarcações
euclidianas. Isto porque ele não se confina
no espaço visível, funcionando na prática
como um “entrelugar” - uma zona deinterseção
entre o invisível (orum) e o visível (aiê)
- habitado por princípios cósmicos (orixás)
e representações de ancestralidade à espera
de seus “cavalos”, isto é, de corpos que
lhes sirvam de suportes concretos.” (SODRÉ,
1988, p. 72)
3
O Processo 1.067-T-82-IPHAN/BR) conta com
um volume principal de 236 páginas e um anexo
de 6 páginas, além de plantas e fotografias
numa versão digitalizada que foi disponibilizada pelo setor de arquivo do IPHAN (1986).
4
Acredito ser útil pontuar, de saída, algumas características dessa configuração terreiro-associação que tornou possível, no caso
da Casa Branca, a articulação candomblé-patrimônio. A tendência de “legalizar”, como
muitas vezes se diz, ou organizar casas de
santo como instituições civis não é recente,
mas pressupõe um primeiro corte entre os
perfis dessas comunidades. Afinal, “a obtenção
de um CNPJ exige certo domínio dos códigos
e dos procedimentos burocráticos por parte
dos sacerdotes” e uma “inserção do terreiro
no idioma jurídico/burocrático do Estado,
através da constituição de uma diretoria e
de um estatuto” (EVANGELISTA, 2015, p. 76)
nem sempre acessíveis ou compatíveis com
a lógica da hierarquia religiosa, podendo
gerar vários conflitos de liderança. “Tirar
um CNPJ”, se garante entradas nas políticas
públicas, como as de patrimônio, passa por
ritos às vezes tão lentos ou onerosos como
a própria iniciação no axé.
5
Atualmente, contabilizam-se onze terreiros, de diversas denominações de matriz
africana, tombados em nível federal: um no
Maranhão, um em Pernambuco e nove na Bahia.
6
“Candomblé baiano inicia Secretário da
Cultura do MEC no ritual nagô”. Jornal da
Bahia, edição de 09/09/1982 (BRASIL, 1986,
p. 84).
7
Ogã é um dos cargos litúrgicos masculinos do candomblé. Em muitas casas, além
das funções sacerdotais, os ogãs também têm
funções políticas e de representação externa
do terreiro.
8
Toda fundação de terreiro, em certa medida, articula essas esferas: “a esfera espiritual ou sobrenatural;a esfera da materialidade ou das coisas e a esfera legal ou
pública” (EVANGELISTA, 2015, p. 79).
9
Ubaldino Bomfim é pai-de-santo do terreiro de candomblé Abassá de Xangô e Caboclo
Sultão, casa de nação angola, inicialmente
fundada em São Paulo (SP) e transferida para
a cidade de Curitiba, em meados de 2018. O
sacerdote é natural de Jequié (BA), filho-de-santo de Mãe Nininha Preta, sacerdotisa do
Abassá de Xangô Abairá, terreiro localizado
no quilombo urbano do Barro Preto, no mesmo
município.
10
Entrevista realizada em abril de 2019.
O conjunto mais amplo desses diálogos se acha
analisado em Hoshino, 2020.
11
As “louças de santo” ou igbás são conjuntos de peças de distintos materiais (por-
celana, barro, vidro), a depender da natureza
e qualidade da divindade assentada, onde esta
passará a ser cultuada e alimentada, depois
de certos ritos de consagração. Por vezes,
tratam-se de pratos e sopeira ou terrina numa
bacia, com quartinhas e quartilhões. Noutros
casos, os assentamentos de santo são compostos de ferros em “caqueiros” ou diretamente
na terra, mas têm em comum a importância do
okutáou otá, a pedra de fundamento.
12
Na entrevista que fiz com o Ogã Jorge
Gomes, nos recintos da Faculdade Nacional de
Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em dezembro de 2018, ele frisou ter
notado este aspecto em suas idas à Nigéria,
acompanhando seu pai-de-santo: “foi uma coisa
maravilhosa, na Nigéria onde foi cidade dos
orixás [...] dá gosto, os orixás não são tão
ornamentados como são aqui, é tudo o mais
simples possível, você não vê tantos paramentos, não, os orixás são à base de palha,
de dendezeiro [...] é como se você estivesse
vivendo no mundo dos orixás. [...] Eu procuro
passar pras pessoas humildade, simplicidade,
orixá não quer luxo, orixá não quer riqueza,
porque na África igbá dos orixás é no barro,
não tem louça, é tudo no barro, na cabaça,
é barro e cabaça, aqui não[...] Ah, o santo
pediu isso? Não! O orixá não pede, porque
pro orixá o que representa pra ele é aquilo
que é feito lá dentro, porque cá fora é só
pro público”.
13
“A designação “terreiro” é dada ao local de realização do culto da maioria das
religiões afro-brasileiras, retratado por
Sodré (1988) como a principal forma social
do negro no Brasil. É também conhecido como
“roça”, certamente uma terminologia que faz
remissão às condições dos sítios onde os
terreiros eram implantados no início da sua
estruturação, em ambientes caracterizados
por suas grandes dimensões, composto de árvores frutíferas e afastados do grande centro
urbano, como observa o parecer técnico do
Ministério da Cultura, com fins de tombamento
p. 161
do Ilê Axé Opô Afonjá: Os candomblés mais
antigos e tradicionais estão instalados em
grandes terrenos, denominados roças ou terreiros (...) Outros termos utilizados são
“ilê” e “ebé” (originado do iorubá egbé) que
tem na sua origem etimológica o significado
de “casa”, e, por fim, e mais freqüentemente
utilizado, o “axé”, que além de representar
a força cósmica, é largamente empregado com
esta finalidade entre os integrantes do culto,
moradores ou freqüentadores. Especificamente
para as casas do rito angola, eles também
são chamados de Casa de Inkise e de ‘abaçá’”
18
Escarificações realizadas em determinados pontos da pele dos(as) neófitos(as),
no ato da feitura de santo (iniciação), a
depender da nação de candomblé a que a casa
pertence.
Na teoria moderna do direito civil, a
posse foi paulatinamente sendo circunscrita
e minada como instituto autônomo para subordinar-se à propriedade: “Assim, o critério de
justiça que qualifica a posse deriva imediatamente de sua identificação com a propriedade.
Quando a relação entre o indivíduo e os bens
não corresponder ao poder adquirido por “justo-título”, ou seja, decorrer da propriedade,
então esta será tomada como injusta. Tanto o
é, que o código civil vigente qualifica como
justa “a posse que não for violenta, clandestina ou precária”. E esses atributos são
considerados tomando-se como base, evidentemente, o instituto proprietário.” (MILANO,
2017, p. 176)
15
19
(REGO, 2006, p. 34).
14
“Virar no santo” é uma das formas mais
comuns para referir-se à passagem ao estado
de transe.
16
p. 162
pertence, são conhecidos como candomblés de
“chão batido” por terem essa particularidade
construtiva como distintivo.
Se é possível recrutar um nomos do axé,
como farei ao longo do texto, ela se situa
mais no intervalo ou na “oposição entre o
logos e o nomos, entre a lei e o nomos”
(DELEUZE E GUATTARI, 2012, p. 37) do que na
acepção schmittiana clássica. Em Deleuze,
nomos (νομός) aparece como a ação de enviar
os animais para um espaço aberto, fora da
cidade, sem padrão, limite ou estrutura particular. É nesse sentido que nomos contrasta
com logos, algo como dois modos de distribuição, o primeiro deles mais “anárquico”
(atravessado pelo nomadismo), o segundo mais
“hierárquico” (vinculado às formas-estado).
A qui se colocam as questões tanto das configurações da “ordem” na ausência de governo
ou comando, quanto da agência da terra como
“chão”, da terra não apenas distribuída, mas
que distribui.
17
Vale destacar que justamente os terreiros da nação jêje, ao qual o Seja Hunde
A comensalidade é índice de parentesco
e afinidade nos candomblés. Humanos comem com
ancestrais, deuses e encantados, fazendo a
“família-de-santo”. Assim, falar do cardápio
divido, da comida votiva e das celebrações
ou interdições alimentares é um dos modos
de descrever relações. Os orixás que “comem
junto” são orixás que “têm enredo” uns com os
outros, que mantêm algum tipo de intimidade
ou aliança, geralmente explicada em termos
míticos. Também os orixás de pessoas que
construíram vínculos religiosos podem aceitar
comer juntos nas cerimônias, como no caso de
filhos(as)-de-santo que foram iniciados/as no
mesmo “barco” (no mesmo período de reclusão)
ou que “deram obrigação” ao mesmo tempo.
20
“Nação brasileira”, aqui, não é expressão empregada como conceito analítico,
mas como categoria nativa do povo de santo,
fortemente presente tanto em diversas conversações cotidianas quanto no repertório
ritual, especialmente nos ciclos de cantigas
e louvações dedicadas aos caboclos, figurações das populações indígenas incorporadas
ao panteão afro-brasileiro como ancestrais
“donos da terra”. Sobre este aspecto do culto
e os sentidos de brasilidade nele implicados,
vide HOSHINO e SANTOS, 2020.
21
Entre outros, Correio da Bahia, ed.
de 01/06/1984, e Jornal da Bahia, ed. de
09/09/1982, conforme processo 1.067-T-82
(IPHAN/BR)
22
23
Ver nota de rodapé 21
A conceituação ou tradução precisa do
termo iorubá oriki não são pacíficas, mas
pode-se com alguma segurança defini-los como
poemas louvatórios endereçados sobretudo a
pessoas, ancestrais, entes cósmicos e divindade. Sua presença é corriqueira no candomblé
brasileiro, especialmente de tradição nagô-ketu, mas a extensão dos usos e sentidos
desse gênero literário nas sociedades iorubás
é mais ampla e, segundo Barber (1990), está
associada, no contexto religioso, aos modos
como entidades se proliferam, se fundem e se
relacionam: “It is important to look at the
means or medium by which fractions of gods
are established, in order to understand how
the relationships between them are conceived. Yoruba òrìsà can scarcely be apprehended without taking into account the specific
textuality of the oral genres through which
they are created, maintained and communicated
with. (...) The tendency to emphasise the
orderly at the expense of the dynamic has
been assisted by the almost universal use of
itán, narratives or myths, as the principal
source of ideas about the òrìsà. The itán
lend themselves to the classificatory cosmology-building project (…) Oriki òrìsà, the
‘praise poetry’ attributed to the gods, is
cited, if at all, only as a supplement to the
narrative. (…) In my view, the relationship
between oriki òrìsà and itán òrìsà is the
other way round. Oriki are the principal
oral genre involved in the propitiation and
characterisation of òrìsà, and itán participate in the mode of oriki. They should be
treated as an adjunct to oriki rather than
the reverse. This makes it possible to understand characteristics of the itán which
have hitherto been dismissed as anomalies,
the result of error, forgetfulness or noetic
underdevelopment: for though each itán is
usually internally coherent, a collection
of itán, told by different people or even by
the same person, soon reveals notable gaps,
inconsistencies and contradictions” (BARBER,
1990, p. 313-315). A longa transcrição ajuda a situar-nos num campo de discussão em
que a própria textualidade está em questão.
Palmilhando a senda de Barber, suponho que
esta tese esteja mais próxima da textura
poética – equívoca ou plurívoca – dos orikis
do que do projeto metanarrativo linear que
estudiosos(as) ocidentais buscam construir
valendo-se seletivamente dos itán.
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p. 165
Pontos
riscados no chão:
a presença da umbanda
em Salvador, Bahia
Mayara Mychella Sena Araújo
FAUFBA
Nayara Cristina Rosa Amorim
PPG-AU / FAUFBA
Pontos riscados no chão: a presença
da umbanda em Salvador, Bahia
Resumo
Pontos riscados no chão, pontos cantados, duas formas de interpretar
e se referenciar as práticas umbandistas. O primeiro relacionado
à identificação e o segundo à louvação das forças elementares da
natureza e das entidades espirituais. Ambas formas plurais de conexão
com a ancestralidade e a espiritualidade presentes na Umbanda, que
correspondem aos fios condutores que guiam e precedem a elaboração
deste artigo, cujo objetivo é levantar os terreiros de Umbanda
em funcionamento em Salvador, na Bahia. Para alcançá-lo, além da
descrição das descobertas e do processo decorrentes dessa busca,
tenta-se entender o que é a Umbanda e o que são suas ramificações,
com vistas a relacioná-las com a produção do espaço urbano de
Salvador. Trabalho que se justifica, primeiro, por dar visibilidade
a essa religião e, segundo, e principalmente, por apresentar outros
e necessários questionamentos que visam preencher uma lacuna na
produção acadêmica que dá conta da leitura da Umbanda em Salvador.
Palavras-chave: Umbanda, Ramificações da Umbanda,
Levantamento, Terreiros, Salvador.
Puntos rayados en el suelo: la presencia
de la umbanda en Salvador, Bahia
Resumen
Puntos rayadas en el suelo, puntos cantados, dos formas de interpretar
y referirse a las prácticas umbanda. El primero relacionado
con la identificación y el segundo a la alabanza de las fuerzas
elementales de la naturaliza y las entidades espirituales. Ambas
formas plurales de conexión con la ancestralidade y espiritualidad
presentes en la Umbanda, que corresponden a los hilos conductores
que guían y preceden a la elaboración de este artículo, cuyo
objetivo es encontrar los terreiros de Umbanda en funcionamiento
en Salvador, Bahia. Para lograrlo, además de la descripción de los
descubrimientos y el proceso resultante de esa búsqueda, se intenta
comprender qué es la Umbanda y qué son sus ramificaciones, con el fin
de relacionarlas con la producción del espacio urbano de Salvador.
Se trata de un trabajo que se justifica, primero, por dar visibilidad
a esta religión y, segundo, y principalmente, por presentar otras y
necesarias cuestiones que pretenden llenar un vacío en la producción
académica que da cuenta de la lectura de Umbanda en Salvador.
Palabras clave: Umbanda, Ramificaciones de la
Umbanda, Encontrar, Terreiros, Salvador
Scratched points on the floor: the presence
of umbanda in Salvador, Bahia
Abtract
Dots scratched on the floor, sung points, two ways to interpret and refer to
Umbanda practices. The first related to identification and the second to the
praise of the elementary forces of nature and spiritual entities. Both plural
forms of connection with ancestry and spirituality present in Umbanda, that
correspond to the conducting wires that guide and precede the elaboration of
this article,whose objective is to raise the Umbanda terreiros in operation
in Salvador, Bahia. To achieve it, in addition to the description of the
discoveries and the process resulting from this search, tries to understand
what Umbanda is and what its ramifications are, in order to relate them to
the production of urban space in Salvador. This is a justified work, firstly,
because it gives visibility to this religion and, secondly, and mainly,
it presents other and necessary questions that aim to fill a gap in the
academic production that accounts for the reading of Umbanda in Salvador.
Keywords: Umbanda, Ramifications of Umbanda, Survey, Terreiros, Salvador.
Introdução
uando duas pessoas se unem para a escrita
de um texto, convergências e divergências
surgem dessa junção. Este artigo, fruto de
quatro mãos e dois universos distintos, é um
desafio ao qual se propõem as autoras, seja
por representar a descoberta da negritude e da ancestralidade de uma, seja por significar o encontro de respostas
que compõem a consciência e a personalidade da outra –
ambas instigadas pelo despertar de suas espiritualidades.
Q
Tal despertar é, ao mesmo tempo, o que guia e o que
move o processo de elaboração do texto, que por esse
motivo busca apresentar essa dupla visão. Esse duo universo está nos títulos das subseções que compõem o
artigo e em sua escrita, e é uma opção crítico-discursiva
que não resulta numa visão oposta, pelo contrário, pelos
dois olhares intencionamos lançar luz para o que nos é
comum e nos atravessa no processo de elaboração
v.2 n.1
p. 166-195
2023
ISSN:
2965-4904
Ao contrário do que geralmente ocorre, quando este
trabalho foi iniciado, seu objetivo já estava bem definido
1
– tratar do levantamento dos terreiros de Umbanda em
funcionamento em Salvador, na Bahia –, mas onde chegar
com ele ainda nos era pouco claro, uma vez que havia
uma miríade de possibilidades. Com o aprofundamento
das leituras e, principalmente, com a apropriação do trabalho Mapeamento dos terreiros de Salvador, realizado
em 2008, é que processualmente o objetivo e os resultados foram sendo delineados com mais clareza. Ou seja,
num primeiro momento, o objetivo principal era fazer o
tal levantamento dos terreiros umbandistas em Salvador,
buscando mensurar seu aumento desde o Mapeamento
dos terreiros de Salvador. Todavia, na medida em que
nossa opção metodológica é distinta daquela empregada
no já citado trabalho no processo de levantamento e das
leituras realizadas para compreensão do que é a Umbanda e como ela se apresenta
em Salvador, por um lado constatou-se que não seria possível análises comparativas
quanto ao quantitativo de terreiros, mas por outro foi identificada o quão escassa é a
produção acadêmica em torno do tema, principalmente no que diz respeito ao seu
entendimento e às ramificações que a compõe.
Assim, nossa intenção é realizar o levantamento dos terreiros umbandistas, descrevendo o processo e as descobertas decorrentes dessa busca, além de tentar
entender o que é a Umbanda e suas ramificações, visando sua correlação com a
produção do espaço urbano de Salvador. Marcadamente reconhecida pelas religiões
de matriz afro-brasileira, particularmente o Candomblé, a cidade pode ter também
com a Umbanda registros que influenciaram (e ainda influenciam) seu processo de
formação, eventualmente apagados ou atravessados por outros. Por isso, tenta-se
romper essa invisibilidade, reafirmando a identidade e o respeito à Umbanda, pelo
reconhecimento dessa manifestação religiosa que precisa ser divulgada e difundida,
de modo a se combater estereótipos e preconceitos.
É importante já aqui mencionar, em primeiro lugar, que a Umbanda é “constitutivamente plural, diversa, e apesar de utilizar materiais, conceitos e preceitos de
outras religiões, construiu sua própria identidade” (NASCIMENTO, 2020, p. 8). Ou
seja, é conhecida e divulgada como a única religião brasileira, de base monoteísta e
inspirada em matrizes religiosas relacionadas aos cultos africanos, indígenas, católicos
2
3
e espíritas/kardecistas – por isso, a veneração ao Deus supremo, além dos Orixás
4
e dos guias e das entidades espirituais.
Em segundo lugar, a menção, no título deste artigo, a “ponto riscado no chão” é uma
referência aos símbolos que os guias e entidades espirituais usam para identificar sua
5
relação com a falange e o sentimento a eles atribuídos. São marcas únicas, realizadas
pelos/as médiuns quando incorporados/as por esses espíritos e que, geralmente,
trazem imagens, traços e simbologias que podem traduzir a identificação dos terreiros
de Umbanda. E, por fim, a compreensão de que o terreiro é “um espaço produzido
pelos umbandistas no exercício de sua fé, na manifestação religiosa que representa
a territorialidade e a identidade de um grupo, que se constrói socialmente a partir de
suas crenças e práticas ritualísticas” (NASCIMENTO, 2020, p. 27).
Essas três menções, portanto, são também formas de destacar a heterogeneidade
cultural que envolve a constituição do que é a Umbanda e, por conseguinte, de seus
pontos riscados e da compreensão do que é o espaço físico de seu culto. Ao realizar
p. 171
o levantamento dos terreiros umbandistas em Salvador e buscar compreender sua
relação com a produção de seu espaço urbano, o texto se dedica, de certo modo, a
um resgate e uma reflexão sobre a religião na cidade, considerando: (1) sua liberdade
de culto, que elimina tudo o que limita as escolhas; (2) o fato de integrar a cultura
brasileira e resistir, a despeito das adversidades; e (3) ser celebrada pela diversidade,
com forte apelo ao cuidado e à preservação da natureza.
Essas dimensões podem ter possibilitado a ampliação da autodeclaração, nos
últimos Censos Demográficos de 2000 e 2010, no Brasil, daqueles/as que se afirmaram Umbandistas de 397.431 para 407.331 pessoas. Esses números podem (ou não)
contribuir para o reconhecimento, entre 2000 e 2010, da ampliação de instituições
religiosas de matriz afro-brasileira. Afinal, no país, os/as autodeclarados/as Umbandistas, Candomblecistas ou de outras religiosidades afro-brasileiras passaram de
525.013, em 2000, para 588.797, em 2010. Na Bahia, esses números são ainda mais
representativos, pois passaram de 21.733, em 2000, para 47.070 (em 2010); e, em
Salvador, de 11.959, em 2000, para 28.019, em 2010.
No caso da capital baiana, uma das formas de corroborar com essa ampliação
6
é pondo em relação esses dados censitários e o mapeamento de terreiros. Esse
levantamento, embora possa ser usado para fomentar a elaboração de políticas públicas, teve como objetivo principal reconhecer e valorizar os terreiros, contribuindo
para diminuir os preconceitos e as intolerâncias religiosas existentes em torno das
práticas e das religiões de matriz africana. Para este estudo, foi ponto de partida o
Mapeamento dos Terreiros de Salvador (2008), que registrou 1.165 terreiros, dos quais
24 (2,1%) se declararam de Umbanda.
Vale ressaltar que mesmo o material sendo em parte fruto de inquietações pessoais, em torno da busca por respostas, compreensões, ligações com a ancestralidade
e a espiritualidade, ele traz uma abordagem ainda pouco elaborada nas publicações
científicas que tratam da Umbanda, em Salvador. Por esse motivo, compreende-se
sua relevância acadêmica e ancestral para a produção da cidade e das memórias de
sua população, que se diferenciam do pensamento e religiões hegemônicas.
p. 172
O surgimento da Umbanda: um olhar
de perto e de dentro ou de longe e de fora?
É importante logo salientar que a inferência no título nesta subseção não representa
dois olhares dicotômicos, mas objetiva ressaltar o já mencionado: que a leitura pode
pretensamente associar o início da jornada espiritual de uma das autoras na Umbanda
e a busca por respostas instigadas pelo despertar da espiritualidade da outra, não
manifestada pela religião.
Por esse motivo, teve-se o cuidado para que as vivências e ainda poucas experiências de uma autora não repercutissem na forma de ler e analisar da outra, cuidado que
possibilitou uma leitura de atravessamentos e completudes. Assim, olhando de fora
e de longe quando se trata do surgimento da religião, tem-se que, historicamente, a
Umbanda surge no Brasil com esta nomenclatura num período situado entre o final
do século XIX e início do século XX, segundo Adriana Cristina Zielinski do Nascimento
(2020), havendo variações interpretativas sobre como se deu esse surgimento.
7
Segundo Ortiz (1999), mencionado pela supracitada autora, nesse período ocorreu
a proclamação da República e a abolição da escravatura, e no Rio de Janeiro essas
transformações podem ter influenciado um maior contato entre os elementos rituais
8
dos cultos sincréticos chamados de “macumba” com o espiritismo kardecista, que
havia chegado ao Brasil na segunda metade do século XIX. De acordo com a autora e
o autor, esse contato ocorreu primeiramente nas camadas mais pobres da população,
em seguida na classe média, tendo dessa junção de ritos surgido a Umbanda.
Sinaliza-se quanto ao emprego do termo “macumba” como sendo referente a
“denominações religiosas de origem ou influência africana [...] que compõem um
largo espectro de crenças e práticas assemelhadas, mas diversas, que usualmente
9
denominamos religiões afro-brasileiras” (PRANDI, 2014 apud CARNEIRO, 2014, p. 8).
Ou seja, quando se trata das religiões afro-brasileiras, tanto a localização geográfica
quanto a predominância de uma etnia devem ser consideradas como caracterizadoras
de cada culto, por conseguinte das denominações que recebem. Por isso, as relações
entre essas diversas religiões são tão complexas, pois cada comunidade tem sua
tradição e sua história. Nenhuma é melhor ou pior que a outra, apenas se adequa ao
ângulo de interpretação daquele/a que a escolheu. Isso repercute na pluralidade
e na especificidade de cada culto, inclusive, quanto à Umbanda e a seu processo
de formação. Subsequentemente, tem-se um quadro de Carneiro (2014), no qual
sintetizam-se essas complexidades.
p. 173
Quadro 1 – Religiões afro-brasileiras: descrição, tradição, cultos e suas variações
Fonte: Carneiro (2014, p. 18)
Grupos das religiões
Descrição
afro-brasileiras
p. 174
Tradição, cultos e variações
participantes de um mesmo
conjunto
Culto de Nação
Candomblé em suas três principais
Conjunto composto por tradições com
nações: Ketu (iorubá), Angola (bantu)
forte influência africana. O culto dá
e Jêje (fons); Batuque; Candomblé de
ênfase aos deuses denominados orixás,
Caboclo; Jarê, Culto ao Ifá; Culto aos
voduns ou inquices.
Egungun; Xangô do Nordeste; Xambá.
Encantarias
Conjunto marcado pela presença
dos encantados. Os encantados ou
C a t i m b ó ; J u re m a ; B a b a s s u ê ;
“incantes”. Alguns desses não chegaram
Pajelança; Cura; Tambor de mina;
a encarnar. Os que viveram em terra
Terecô; Toré.
desapareceram misteriosamente sem
morrer.
Umbandas
Conjunto marcado pela presença de
ancestrais ilustres no culto. Por exemplo:
caboclo, preto-velho, criança, exu
(entidade e não apenas o orixá), baiano,
marinheiro, boiadeiro, cigano.
Macumba; Cabula; Umbanda Branca
ou Cristã (também chamada de
espiritismo de umbanda); Umbanda
Omolocô; Umbandaime; Umbanda
Esotérica ou Iniciática; Umbanda
Oriental; Umbanda Mística; Umbanda
Traçada [...].
Compreender a diversidade religiosa afro-brasileira numa sociedade que habita nesse
país-continente é importante, mas apesar disso a intenção aqui é tentar trazer as origens da Umbanda. Assim, vale lembrar que desde 1720 já existia no Brasil, não só no
Rio de Janeiro, cultos que traziam o sincretismo e elementos indígenas, portugueses e
africanos, que tinham como objetivo realizar curas, adivinhações e limpezas espirituais;
e que tinham, em seu ritual, cânticos e danças embalados pelo som de atabaques,
com a incorporação de entidades espirituais (NASCIMENTO, 2020).
Por isso é que se pode afirmar que, embora a Umbanda seja conhecida e amplamente divulgada pela sua maleabilidade e sincretismo religioso – pautados nas
práticas religiosas de matriz africana e de influências indígena, católica e kardecista
–, ela vem se ressignificando de acordo com os acontecimentos culturais e conflitos
enfrentados tanto quanto adaptando-se às transformações sociais, políticas e econômicas no Brasil. Para o que Verger (1999, p. 193) afirma: “a Umbanda é uma religião
popular tipicamente brasileira, que apresenta um caráter universalista que engloba
principalmente em seu corpo doutrinário cinco influências: africana, católica, espírita,
indígena e orientalista”.
Olhando de perto e de dentro, a versão mais conhecida sobre o surgimento da
Umbanda é de que a mesma foi anunciada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas,
através do médium Zélio Fernandino de Moraes, no dia 15 de novembro de 1908, no
distrito de Neves, no município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
10
De acordo com o diálogo entre o espírito do Caboclo, incorporado no referido
médium, e o então presidente da Federação Espírita de Niterói, o médium vidente
José de Souza, no dia seguinte ao seu anúncio, na casa de Zélio Fernandino:
haverá uma mesa posta e toda e qualquer entidade que queira ou precise se
manifestar, independentemente daquilo que haja sido em vida, [...] serão ouvidos e
nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais, e ensinaremos àqueles
que souberem menos, e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não, pois esta
é a vontade do Pai.
Com essa fala, tem-se a origem da Umbanda com a perspectiva do respeito ao
saber do mais velho. Por isso, no cotidiano umbandista vislumbra-se o resgate e a
manutenção dos valores e saberes populares que lhe dão forma. Especialmente, porque historicamente esses vêm sendo invisibilizados pela epistemologia eurocêntrica
e há a urgente necessidade de reconhecer a complexidade do universo simbólico
umbandista, que dá acesso a conhecimentos que desconstroem o imaginário colonial.
Nesse sentido, a busca pelo aprofundamento – de perto e de dentro – e mesmo
por uma ótica mais afastada – de longe e de fora –, o que se pode dizer é que a
Umbanda é uma religião em processo, que vem se autoconstruindo a partir de sua
própria prática, pelas inter-relações das inúmeras vivências religiosas de seus/suas
líderes e daqueles/as que optaram (e optam) por segui-la. E que embora tenha como
prerrogativa amparar e socorrer a todos/as que a buscam, não há como transformar
seu universo múltiplo em algo unívoco, estritamente dogmático e doutrinário. A Umbanda é dinâmica, pluralista, multicultural e inter-racial.
Mesmo a Umbanda sendo reconhecida como a religião na qual a manifestação
dos espíritos se dá para a prática da caridade, fundamentada no amor incondicional
e respeito ao livre arbítrio, é certo que há diferenças quanto as capacidades de assimilação das diversas formas de cultos de espíritos em cada região do país. Por isso,
é essencial respeitar as diferenças existentes e, concomitantemente, aproximá-las, a
partir da compreensão dos conteúdos que expressam.
p. 175
De acordo com Brown et al. (1985), os primeiros terreiros encontrados no Brasil,
foram a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, fundada por Zélio Fernandino, além
de outras sete tendas fundadas por umbandistas que frequentavam a referida Tenda.
Nelas, talvez pela herança kardecista, a prática de culto não representa a diversidade
ritualística que hoje a Umbanda possui. Seu processo dinâmico de construção, seja
na ciência, seja no senso religioso, repercute em suas ramificações:
Quadro 2 – As “Umbandas” Fonte: Elaboração própria (2021), com base em Barbosa Júnior
11
(2014) e Pinheiro (2009) .
Ramificações
Umbandas
Descrição
Umbanda
Tradicional
Genericamente, refere-se à Umbanda organizada por Zélio
Fernandino. É a vertente fundamentada pelo Caboclo das Sete
Encruzilhadas, Pai Antônio e Orixá Malê, através do médium
Zélio Fernandino de Morais (1891 – 1975). É considerada a
primeira e mais tradicional Umbanda, pois através dela,
a religião começou a ser fundamentada com a criação da
Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade em São Gonçalo/
RJ (16/11/1908). Trabalha basicamente com as linhas de
Caboclos e Pretos-velhos, unindo seus mistérios, magias e
sabedoria. Empenhada em prestar a caridade.
Umbanda de
Mesa Branca ou
Kardecista
Geralmente, não utilizam elementos africanos (em algumas
casas, nem mesmo o culto direto aos Orixás) não trabalham
diretamente com Exus e Pombogiras nem se utilizam de
fumo, álcool, imagens e atabaques. Por outro lado, trabalham
com Caboclos, Pretos-Velhos e Crianças, bem como se valem
de livros espíritas como base doutrinária
Essa vertente tem uma forte influência do Espiritismo
(Kardecismo), também chamada Umbanda de Cárita porque abre as sessões com a Prece de Cáritas, é praticada
em centros espíritas que passaram a desenvolver giras de
Umbanda junto com as tradicionais sessões espíritas. Usa
roupa e sapatos brancos, mesa, sobre assoalhos de madeira
e se preocupa muito em praticar a caridade material e
espiritual.
Umbanda
Esotérica
Seu maior representante é W. W. Mata Pires (Mestre
Yacapany). A Umbanda por essa perspectiva estuda as forças
sutis da natureza pelas quais Deus, seus Anjos, Orixás, gênios
e espíritos se manifestam. Estuda também a astrologia, a
parapsicologia, a grafologia, a quiromancia, as propriedades
medicinais e espirituais das plantas, a simbologia que envolve
pontos riscados, talismãs, amuletos. Assim, adota ritos
mágicos europeus, o que a torna mais aberta à presença de
brancos e membros de classes mais altas.
Umbanda Branca*
Umbanda Esotérica
p. 176
Ramificações
Umbandas
Descrição
Derivada da Umbanda Esotérica, foi fundamentada por Pai
Umbanda Iniciática Rivas (Mestre Arhapiagha), com grande influência oriental,
como uso de mantras indianos e do sânscrito.
Umbanda Esotérica
Umbanda Mística
Umbanda Branca
Umbanda Mirim
Esotérica
Tem por base a religião e a fé. Diz o místico que, quando
todos os recursos materiais se esgotarem, restará a fé. Em
outras palavras: quanto toda a sabedoria humana e todos os
remédios falharem, a fé faz o milagre.
É fundamentada pelo Caboclo Mirim com o seu médium
Benjamin Figueiredo (26/12/1902 – 03/12/1986), surgida
em 1924 com a fundação da Tenda Espírita Mirim, no Rio de
Janeiro e responsável pela criação do Primado de Umbanda,
fundado em 1952.
Genericamente conjugação do culto africanista aos Orixás
ao culto dos Guias e das Linhas de Umbanda.
Essa vertente vem com o processo de “umbandização” das
Umbanda Omolocô
casas de Omolocô e começou a ser fundamentada em 1950
no Rio de Janeiro pelo médium Tancredo da Silva Pinto, Tátá
Tancredo (10/08/1904 – 01/09/1979).
Umbanda Traçada
Umbanda Cruzada
Em linhas gerais, conjuga a Umbanda Tradicional e os ritos
africanistas do Candomblé Angola, praticado em Santa
Catarina e que teve sua origem no Rio de Janeiro.
É também o resultado da transformação (umbandização)
de antigos terreiros de Almas e Angola. Existe um forte
Umbanda de Almas sincretismo entre os Orixás e os santos católicos vinculados
e Angola
às tradições africanas, incluindo obrigações internas
denominadas feituras de Orixá ou camarinhas. Nessas
atividades o médium tem sua cabeça raspada, fica recluso
no Terreiro, deitado numa esteira por sete dias e, como ocorre
no Candomblé, oferece menga – sangue de animais – aos
Orixás.
Umbandomblé**
O sacerdote ora toca para Umbanda, ora para Candomblé,
em sessões com dias e horários diferenciados.
Casas de Candomblé que se identificaram com o movimento
da Umbanda, mais especificamente Candomblé de Caboclo,
começaram a adotar em suas práticas, também as giras de
Umbanda alternando com o culto do Candomblé em sessões
diferentes (dias e horários).
Umbanda Popular
Praticada antes do trabalho de Zélio Fernandino, conhecida
também como macumba, de forte sincretismo entre Orixás e
santos católicos. Alguns consideram o chamado Candomblé
de Caboclo também uma forma de Umbanda Popular.
p. 177
Ramificações
Umbanda Cruzada
Umbandas
Descrição
Umbanda Popular
É uma das mais antigas vertentes, resultado do processo
de transformação em Umbanda (umbandização) de antigas
casas de Macumba dos morros cariocas. Como o próprio
nome já diz, é uma das formas mais abertas a novidades e
praticadas no Brasil, pois é possível adotar práticas místicoreligiosas que mais convêm associando a duas ou mais
religiões.
Umbanda de
Preto-Velho
Forma de Umbanda na qual o comando cabe aos PretosVelhos.
Umbanda de
Caboclo
Forma de Umbanda na qual o foco são os Caboclos,
prevalecendo a influência das culturas indígenas.
Foi fundamentada por Pai Benedito de Aruanda e pelo Ogum
Sete Espadas da Lei e da Vida, através do médium Rubens
Saraceni, em São Paulo, no ano 1966, com a criação do Curso
de Teologia da Umbanda.
Seus principais divulgadores são: o Colégio de Umbanda
Sagrada Pai Benedito de Aruanda, fundado em 1999; o
Umbanda Sagrada
Instituto Cultural Colégio Tradição de Magia Divina, de 2001;
a Associação Umbandista e Espiritualista de São Paulo, de
2004. Além dos livros escritos pelo próprio Rubens Saraceni,
do Jornal de Umbanda Sagrada (editado por Alexandre
Cumino), do programa radiofônico Magia da Vida e dos
colégios e terreiros criados pelos discípulos de Saraceni.
*Mesmo não sendo o viés da discussão, diante do contexto atual é importante não deixar
passar despercebida a conotação pejorativa ao emprego dos termos “branca” e “negro” como
referência, respectivamente, a compreensões mais afastadas dos elementos africanos ou como
algo “do mal”, entendidos como causa e consequência da discriminação racial. Embora as
autoras se pautem em referências históricas e tragam as discussões tal como elas se apresentam, isso não significa concordância, até porque desde seus lugares de fala, entendem a
necessidade de uma reconstrução conceitual quanto ao emprego dos termos com vistas a não
mantê-los sedimentando o racismo estrutural tão perverso e cruel existente na sociedade.
Todavia, para essa realização, acreditam ser necessária uma releitura e aprofundamento
teóricos que ainda não dão conta, mas que certamente constitui-se em um caminho a ser
refletido e buscado no âmbito de futuras e fundamentais discussões em torno da temática.
p. 178
**De acordo com Pinheiro (2009), ao mencionar o editorial de número 10 da Revista Espiritual de Umbanda – de circulação nacional entre 2003 e 2008 –, não seriam coerentes tanto a
utilização dos termos Umbandomblé quanto Quimbanda, com referência a Umbanda, como uma de
suas compreensões ou como variação de seu culto. Aliás, para ele, e por conseguinte para os
editores de tal periódico, não seria admissível o emprego dos termos: o primeiro, Umbandomblé, porque associa as práticas de Candomblé e da Umbanda, o que não seria sincretismo, mas
sim a migração de práticas religiosas, de rituais ou filosofias do Candomblé para a Umbanda; e o segundo, Quimbanda, porque designaria um culto autônomo, independente e até mesmo
oposto à própria Umbanda, já que admite trabalhos voltados para o mal, de magia “negra”.
É oportuno mencionar que as Ramificações da Umbanda, ou as Linhas de Umbanda, ou as Correntes de Umbanda, ou simplesmente as “Umbandas” podem representar,
de um lado, formas de legitimar socialmente a religião que é tão diversa; e, de outro,
uma busca pela aceitação e pela superação dos estigmas – como marginalidade,
transgressão, ignorância e “atraso” –, dada sua pluralidade.
Em outros termos, ao considerar as relações sociais e de fé tão multifacetadas, haja
vista a liberdade de culto, que elimina tudo o que possa limitar as escolhas preconizadas
pela prática umbandista, essas representações tentam aproximar as diversas formas
que os dessemelhantes grupos integram, acabando por criar “identidades” cujo significado simbólico pode ser o de um status ou de uma posição na sociedade. Como se
extrai da leitura de Pinheiro (2009), essas ramificações, linhas, correntes, modalidades
ou “Umbandas” se relacionam a “formas institucionalizadas e objetivas, em virtude das
quais ‘representantes’ marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo” (p.
8). São tentativas de defender determinado segmento ou corrente dentro da própria
Umbanda, ou simplesmente de codificar, de trazer unificação doutrinária à religião.
Ao pôr em interface o olhar de perto e de dentro com o de longe e de fora, ainda
se percebe que a pluralidade da Umbanda se reflete na enorme produção de livros
e informativos da religião. Como aponta Pinheiro (2009), esse esforço de escritores
umbandistas (ou não umbandistas) tenta reproduzir o espaço das tramas cotidianas
e o encontro das resistências, trazendo experimentações quanto às ressignificações
das relações do dia a dia, somadas a oralidade, além da escrita.
Essa vasta produção bibliográfica e acadêmica, notadamente nas regiões Sul e
Sudeste do país, não reverbera, por exemplo, em Salvador, cuja lacuna nas abordagens
científicas e acadêmicas é apontada a seguir.
p. 179
“Deixa a Gira girar!” –
registros sobre a Umbanda em Salvador
“Iê, oh...
Meu pai veio da Aruanda e a nossa mãe é Iansã...
Oh, gira, deixa a gira girar...
Deixa a gira girar
Saravá, Iansã!
É Xangô e Iemanjá, iê
Deixa a gira girar...”
Esta seção traz no título e em sua epígrafe trechos de um cântico ou ponto cantando nos terreiros de Umbanda. A intenção, ao fazermos essa inferência, é mostrar
as várias possibilidades de estudar e entender a riqueza da religião. As giras são sessões geralmente realizadas nos terreiros de Umbanda, mas tal exercício da fé com a
celebração de rituais também pode ocorrer nos espaços da natureza. Nesse sentido,
se as formas de culto da Umbanda são multifacetadas, as formas de compreendê-la
e as possibilidades de suas celebrações ritualísticas também são.
E o que tudo isso tem a ver com os registros sobre a Umbanda em Salvador?
12
De maneira geral, como depreendemos da leitura de Isaia, mencionado por
Pinheiro (2009, p. 6), “os significados sociais não são impostos unilateralmente, mas
subordinados a um jogo relacional, em que a realidade vivida impõe-se e anula o
desejo meramente arbitrário de nomear a realidade”. Ou seja, não se trata de como
se optou por nomear a seção, mas de transgredir ao que se impõe como significados
socialmente dominantes.
p. 180
Nesse sentido, o título quer trazer de forma alusiva a força da palavra, no caso
do cântico, que também para Isaia representa “fonte imanente de axé, força vital, [...
uma vez que] sua pronúncia no ato da fala [...] movimenta as forças sagradas” (ISAIA,
1999 apud PINHEIRO, 2009, p. 7). Mais uma forma de legitimação e aceitação do que
é a Umbanda, que no caso de Salvador, pelas suas marcas e raízes históricas, pode
talvez ainda ter na oralidade – característica fundante das religiões afro-brasileiras
– o principal mecanismo de transmissão dos conhecimentos e da manutenção das
relações de poder e reciprocidades estabelecidas por aqueles/as que optaram (e
optam) pela religião.
Por não ser o foco de nossa análise, não se tem como ratificar esse pensamento,
embora possa-se notar que as pesquisas e registros em publicações científicas acerca
da Umbanda em Salvador sejam escassas.
Sabe-se que os textos acadêmicos não são a única forma de registro das práticas culturais e religiosas. A importância do registro histórico e de seu processo de
consolidação traz, ao mesmo tempo, visibilidade em outras esferas que não aquela
que abarca a comunidade religiosa, e possibilidades de reflexão e questionamentos
em torno dos diversos vieses de diálogo que se podem estabelecer. Por isso, como
afirma Prandi (2014), no prefácio do livro de Carneiro (2014), “as religiões afro-brasileiras
são religiões rituais, pouco afeitas à reflexão sistemática sobre si mesmas, baseadas
fortemente na mitologia e sua representação ritualística. Diz-se que ser afro-brasileiro
é repetir a tradição”.
Para o autor, e inclusive como dito antes, a manutenção das práticas religiosas
afro-brasileiras por meio da oralidade é uma tradição, faz parte de sua compreensão,
do aprendizado no chão do terreiro. Todavia, o mesmo Prandi (2014) traz que:
Talvez por herança kardecista, a umbanda, desde cedo, apegou-se à produção e
ao consumo da palavra escrita. Mas se manteve longe da construção de um exercício
intelectual que se propõe a estudar, refletir e avançar na interpretação de si mesma,
na natureza de suas divindades e no sentido de seus ritos. Livros fazem parte do
cotidiano umbandista, mas o assunto primeiro é a mitologia dos guias e entidades e
o receituário ritualístico, o que não é pouco. Muitos deles sequer têm autoria que não
seja atribuída a espíritos, guias, entidades que, por si só, impõem-se com autoridade
capaz de dificultar o questionamento que é próprio da reflexão intelectual e científica.
Em outros termos, para Prandi, muito embora a Umbanda tenha na escrita uma
potente ferramenta de manutenção de sua história, de sua consolidação e da afirmação de seus ritos e símbolos, essa não se faria seguida de um embasamento teórico
e analítico que possibilitasse diálogos e reflexões acerca dos diversos conflitos e
preconceitos que, por exemplo, cercam a religião.
Essa é a razão de nossa opção por tratar dos registros sobre a Umbanda em
Salvador considerando a produção científica que versa sobre ela, por se entender
que apesar de ainda incipiente, essa produção traz aquilo que Isaia ressalta – “a força
da palavra” –, ainda que, aqui, não pela oralidade, mas pela escrita acadêmica. Para
tanto, os bancos de dados utilizados no levantamento foram os de dissertações de
mestrado e pesquisas de doutoramento da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal
p. 181
de Nível Superior (CAPES), da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD),
do Scielo e da Biblioteca Eletrônica Científica Online, a partir das seguintes palavras-chave: Umbanda e Umbanda em Salvador. O quadro abaixo apresenta as produções
científicas que abordam a Umbanda em Salvador, publicadas até 10 de junho de 2021.
Quadro 3 - Publicações científicas sobre a Umbanda em Salvador
Fonte: elaboração própria (2021).
Autoria
BORGES, Mackely
Ribeiro
MIRANDA, Eduardo
Oliveira e SILVA,
Hellen Mabel
Santana
MOURA, Mariana
Mendes
PAZ, Adilson
Meneses da
Título
Ano
Gira de escravos na Umbanda de
Salvador-BA
2005
Umbanda e Candomblé: Pontos de
Contato em Salvador – BA
Gira de escravos: a música dos exus e
pombagiras no Centro Umbandista Rei
de Bizara
Principais espaços retratados
2006 Centro Umbandista
Rei de Bizara
2006
Festa de Iemanjá no Bairro Rio
Paisagem e Umbanda:
análise da festa de largo
2010
A Umbanda em Salvador: memórias e
considerações
2012
Umbanda em Salvador (BA): memórias
e narrativas
2013
Pedrinha Miudinha em Aruanda ê,
Lajedo: o modo de vida da Umbanda
2019
Vermelho e Centro de Iemanjá
13
Umbandista Mãe Liu
Ogum de Ronda Rei dos Astros,
Terreiro de Umbanda São Jorge
Guerreiro e Casa de Lua Cheia
Centro de Umbanda
Irmão Carlos
A publicação de maior visibilidade e abrangência é a dissertação de Mariana Moura,
defendida em 2013, em que a presença dos terreiros umbandistas e de suas tradições
é investigada principalmente através das reportagens publicadas nos jornais locais.
Segundo a autora, tendo como base as informações levantadas em jornais, pode-se
considerar que a existência da Umbanda em Salvador ocorre desde a fundação do Centro
Umbanda São Jorge Ogum de Ronda, em 1922, e do Terreiro Gagá Umbanda Afuramã,
em 1927, apesar de não se ter conhecimento do registro desses terreiros em instituições
ou órgãos oficiais. Entretanto, a maior parte dos registros bibliográficos e documentais
apontam a presença da Umbanda em Salvador a partir da década de 1950, tornando-se
mais cultuada na década de 1960 (BORGES, 2006; SANTOS, 2008; PAZ, 2019).
p. 182
A dissertação de Borges (2006), defendida na Faculdade de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA), registra as práticas ritualísticas, principalmente a oralidade
14
e os pontos cantados do Centro Umbandista Rei de Bizara, que cultua uma Umbanda
Mista ou Umbandomblé, que possui similaridades com o Candomblé Angola e o de
Caboclo, o centro funciona desde a década de 1950, apesar de ter sido formalmente
fundado somente em 1977. Por sua vez, a tese de Paz (2019), defendida na Faculdade
de Educação da UFBA, apresenta o cotidiano e as práticas ritualísticas do Centro de
15
Umbanda Irmão Carlos – que, na descrição do autor, parece ter alinhamentos com
a Umbanda Cruzada –, cujas atividades iniciaram em 1981. Comparando-se os relatos
e os depoimentos nessas duas publicações, é possível perceber como as práticas
umbandistas são diversas e influenciadas pelas experiências de vida e formação
mediúnica de cada dirigente de terreiro.
Finalmente, o artigo de Miranda e Silva (2010), além de trazer os costumes umbandistas durante a Festa de Iemanjá, permite perceber conflitos entre praticantes do
Candomblé e da Umbanda em Salvador, já registrados na década de 2010.
Vale acrescentar que a primeira tentativa de criação de uma associação que promovesse a união entre os terreiros umbandistas baianos foi identificada em 1974, com
a formação da União de Umbanda da Bahia. Criada pelo babalorixá carioca Mário
16
de Xangô, sua sede funcionava na residência do babalorixá, no bairro de Nazaré –
mais especificamente, na Travessa Joaquim Maurício, conhecida como Cova da Onça.
Posteriormente, foi transferida para Pau da Lima e, depois, para Itapuã (MOURA, 2013).
Em reportagem, o babalorixá ressalta sua influência sudestina:
Na Bahia tem poucos umbandistas, os poucos terreiros que serão criados aqui,
se basearão nos moldes de Rio e São Paulo, onde a Umbanda é realizada de portas
abertas para a caridade, fugindo ao folclore, ao turismo, “Em suma, a Umbanda é um
ritual nosso autêntico, onde respeitamos os orixás e não uma entidade para inglês ver
[...] Atualmente as várias casas que praticam e seguem a linha de Umbanda possuem
programações que se desenvolvem por toda semana, e já contam com 3 terreiros
situados em Brotas, 1 no Sertanejo, na Ribeira, Liberdade, e 2 que serão considerados
dentro de pouco tempo (se tudo der certo) os mais famosos de Salvador (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 14/04/1974 apud MOURA, 2013. p. 48).
Mário de Xangô esteve presente na mídia, principalmente nas décadas de 1970 e
17
1980, ressaltando comemorações de tradição umbandista e denunciando intolerâncias religiosas, conflitos com praticantes do Candomblé e com a Federação dos
Cultos Afro-brasileiros, como aponta Moura (2013).
Outra tentativa de promover a união entre os terreiros umbandistas baianos pode
ser observada em 2017 e 2018, quando ocorreram em Salvador o 1º e 2° Encontro de
p. 183
Umbanda da Bahia (Umbahia), promovidos pelo Centro de Umbanda Mística Oxum
Apará (CUMOA), com o apoio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia
(IPAC). Fomentada por esses dois encontros, em 2019 foi criada a Associação de
18
Umbanda da Bahia (AUMBA), presidida pela Mãe Zaide Alencar, com Pai Leandro
Seixas como vice-presidente.
Nenhuma das publicações científicas identificadas e consultadas teve como foco
o levantamento ou o mapeamento dos terreiros umbandistas em funcionamento em
Salvador. Ainda que Borges (2006) tenha ao menos mencionado um levantamento,
que teria sido realizado pela Federação Nacional de Culto Afro Brasileiro (Fenacab),
com 53 terreiros umbandistas, distribuídos em 28 localidades/bairros, o autor não
indicou, e também não foi encontrado, seu ano de realização, a metodologia adotada ou o nome dos terreiros, apenas a indicação dos bairros ou localidades onde se
localizavam. a maior parte dos terreiros estaria situada nas proximidades do Centro
Antigo de Salvador, ao passo que cinco se encontrariam no bairro de Brotas.
Nesse sentido, é oportuno afirmar que a partir das pesquisas nas produções científicas utilizando as já referidas palavras-chave, foi possível notar diversas lacunas quanto
aos registros históricos sobre a presença umbandista em Salvador. Diante disso, e
com a intenção ainda inicial de preenchê-las, sem a pretensão de esgotá-las, a seguir
é apresentado o passo-a-passo para o levantamento dos terreiros de Umbanda em
funcionamento, com base em um esforço de encontrar e registrar evidências dessa
presença na cidade.
Umbanda em Salvador: o passo a
passo para o levantamento e um
registro primário dos números
Nesta seção, tratamos do passo a passo para o levantamento dos terreiros de
Umbanda em funcionamento em Salvador. Para dar conta disso, vale lembrar que o
ponto de partida foi seu registrado no Mapeamento dos Terreiros de Salvador (SANTOS,
2008) e aqueles mencionados nas publicações científicas anteriormente citadas de
Borges (2006), Moura (2013) e Paz (2019).
p. 184
19
É oportuno sinalizar que no caso do Mapeamento dos Terreiros de Salvador,
entre as cinco etapas para sua realização estavam a “identificação e informações
físico-ambientais e socioeconômicas dos terreiros de candomblé de Salvador” e a
“seleção dos terreiros de candomblé para o cadastro físico-fundiário” (SANTOS, 2008,
p. 1, grifos nossos), ainda que mais tarde os/as envolvidos/as tenham percebido que
20
seria possível realizar um censo das religiões afro-brasileiras na Bahia. Em outros
termos, aparentemente a intenção inicial não foi a de mapear os terreiros de Umbanda,
embora tenham sido ao final catalogados 24 terreiros umbandistas na cidade, fundados
entre a década de 1950 e os anos de 2000.
Nesse sentido, pode-se ressaltar a originalidade desse passo a passo, do mesmo
21
modo que a do próprio levantamento, uma vez que há uma impressão que esse
número atualmente é bem maior.
Em decorrência do contexto pandêmico, este levantamento ocorreu de forma não
presencial, entre os dias 10 de junho e 10 de julho de 2021, e seguiu várias etapas
que, embora por razões didáticas apareçam em uma ordem, na prática ocorreram,
por vezes, concomitantemente e de forma complementar.
Inicialmente pautadas na ideia de Moura (2013), além da própria escolha pelo
emprego das palavras-chaves Umbanda e Umbanda em Salvador para as pesquisas
em publicações científicas, e depois de identificados os terreiros no Mapeamento
acima citado e nas referências anteriormente apresentadas, oprtou-se por buscar
no Google Maps (2021), em Salvador, todos os locais que possuíam na toponímia as
palavras “Umbanda” ou “Umbandista”. Com isso, foram verificados os tipos de atividades
que possuíam: (a) terreiros com giras, abertos a consulentes; (b) escolas com cursos
sobre os preceitos umbandistas; (c) médiuns que oferecem serviços de cartomancia
e consulta aos búzios; (d) lojas de artigos religiosos. Optou-se por delimitar o levantamento, pesquisando somente as opções (a) – os terreiros - e (b) – as escolas.
Com vistas a perceber as atividades dos terreiros e das escolas identificados, em
seguida foram acessados seus sites e redes sociais (Facebook, Instagram e YouTube).
Nessa etapa, foi possível notar a relação e/ou as parcerias que existem entre esses
terreiros com outros também localizados em Salvador. A investigação dessa rede
de relações possibilitou que fossem encontrados ainda mais terreiros, para os quais
foram adotados os mesmos procedimentos de verificação junto a seus sites e redes
sociais – o que possibilitou que, mais uma vez, novos terreiros fossem identificados.
Nesse processo, notou-se que muitos, apesar de se declararem umbandistas, não
possuem referências à Umbanda em seu nome, como será visto adiante.
p. 185
Como forma de complementar e também de certo modo “ver”, “reconhecer” ou
apenas “identificar visualmente” esses terreiros, seguiu-se a verificação de sua localização através das imagens do Google Street View (2018, 2019). Com isso, além
dessa identificação visual, tentava-se encontrar indícios de seu funcionamento. E foi
observado em alguns casos a presença de letreiros com o nome do terreiro e cartazes
com informações de funcionamento. Todavia, a maior parte possuía apenas plantas
de uso ritualístico na fachada.
Ressalta-se que, desde o início da pandemia de Covid-19, as atividades presenciais
nesses terreiros tornaram-se restritas, mas as ações de caridade continuaram, assim
como a consulta aos búzios e a manutenção dos espaços físicos. Também foi identificado o aumento das palestras e lives virtuais, disponibilizadas nas suas redes sociais.
O levantamento realizado buscou evidenciar o ano de fundação, quando foram
registrados em algum órgão oficial – o que é diferente da data em que o terreiro iniciou
suas atividades, que em muitos casos antecede em alguns anos ao registro oficial
de funcionamento. Além disso, houve casos cujo registro oficial não existiu ou não
foi identificado; nestes o ano de início das atividades foi considerado como o oficial.
Na sequência, o Quadro 4 traz os terreiros umbandistas identificados em Salvador.
Quadro 4 – Levantamento inicial dos terreiros de Umbanda, por bairro, ano de fundação e status de
funcionamento, em Salvador Fonte: elaboração própria (2021), com base em Santos (2008); Moura
(2013); Paz (2019); Google Maps, redes sociais dos locais levantados e entrevistas informais.
nº
Nome
Bairro
Ano de
Fundação
Em
funcionamento
1
Centro Umbanda São Jorge Ogum de
Ronda
INE**
1922*
Não
2
Terreiro Gagá Umbanda Afuramã
Engenho Velho de
1927*
Brotas
Não
3
4
5
6
Umbanda
Centro de Umbanda
Ogum de Ronda Rei dos Astros
Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro
Centro de Caboclo Serra Negra da Aldeia
de Jequitiriça
Centro de Umbanda Ogum de Ronda
Centro Luz do Mestre
Centro de Umbanda Oxóssi Guerreiro
Centro de Umbanda Mística Oxum Apará CUMOA
Centro de Umbanda Ogum Estrela
Castelo Branco
Pernambués
Amaralina
Sete de Abril
1950
1956
1956
1960
INE**
INE**
Sim
Sim
Dom Avelar
1962
INE**
Cajazeiras IV
INE**
Águas Claras
1964
1969*
1970
INE**
Não
Não
Piatã
1971
Sim
Barbalho
1974
Não
7
8
9
10
p. 186
11
12
n
Nome
Bairro
Ano de
Fundação
Em
funcionamento
13
14
União de Umbanda da Bahia
Centro de Oxalá
Nazaré
São Marcos
1974
1976
Não
INE**
15
Sultão das Matas
Luís Anselmo
1976
INE**
16
17
18
Casa de Lua Cheia
Cabula
Centro Umbandista Rei de Bizara
Brotas
Centro de Umbanda Caboclo Pena Branca Ribeira
Boa Vista do
(não informado)
Lobato
Ylê Axé Oiassi
Fazenda Coutos
Boa Vista de São
Centro de Umbanda Obaluaiê
Caetano
Centro de Umbanda Irmão Carlos
Alto de Coutos
Centro de Caboclo Sete Flechas
Vasco da Gama
Centro de Umbanda Jequiriça Sultão das
Praia Grande
Matas - CEUJSM
Centro de Umbanda Juriti (Razão
social: Associação Universalista para o
Cabula VI
Desenvolvimento da Humanidade)
Centro Espírita Caboclo Tumba Jussara
Bairro da Paz
Centro Umbandista Paz e Justiça
Luís Anselmo
Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol
Cabula V
Nordeste de
Ogum de Kariri
Amaralina
Casa de Umbanda Giro de Caboclo
Fazenda Grande II
Casa de Umbanda Santa Rita de Cássia IAPI
CUSRS Abassá de Oxum das Pedras
Centro de Umbanda Cultural Oficina
Boa Vista de São
Mediúnica - CUCOM
Caetano
Jardim Nova
Umbanda
Esperança
Centro Cigana Maguidala
Alto das Pombas
1977
1977
1978
Sim
INE**
INE**
1978
INE**
1979
INE**
1981
INE**
1981*
1983
Sim
INE**
1987
Sim
1988
Sim
1991
1995
1997
INE**
Sim
INE**
1998
INE**
1999
INE**
2000
Sim
2001
Sim
2002
INE**
2003
Não
Templo e Escola Umbandista Mata Virgem Pituaçu
2007
Sim
São Cristóvão
2008
Sim
Vale dos Lagos/
Canabrava
2010
Sim
Amaralina
2012
Sim
Pelourinho
2012*
Sim
2012*
Sim
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
Fraternidade Umbandista Cavaleiros
de Aruanda e Templo e Escola Caboclo
Tupinambá e Vovó Benedita
Lar Umbandista Mensageiros da
Esperança - LUME
Casa de Caridade Caboclo Boiadeiro
(Razão social: Centro de Umbanda Casa de
Caridade Caboclo Boiadeiro)
Lar Umbandista Espírita de Oração e
Caridade - LUEOC
Templo Aldeia Umbandista Amor e Caridade Cassange - São
- TUAC
Cristóvão
p. 187
nº
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
Nome
Abassá de Yemanjá (Nome anterior: Tenda
de Umbanda da Preta Velha Maria Conga)
Casa de Umbanda União e Caridade
Centro Espírita Renascer na Umbanda
Centro de Umbanda Estrela de Aruanda
Centro de Umbanda Caboclo Taperoá
Bairro
Ano de
Fundação
Em
funcionamento
Pero Vaz
2014*
Sim
2014*
2014*
2014
2014
Sim
Sim
INE**
Sim
2014
Sim
2014
Sim
2015*
Sim
2016
Sim
2016
Sim
2017
Sim
2018
Sim
2018
Sim
2018*
Sim
2018*
Sim
2018*
Sim
Bonfim
Pernambués
Praia do Flamengo
Boca do Rio
Jardim das
Tenda Umbandista Jornada Espiritual - TUJE
Margaridas
Eng. Velho de
Terreiro de Umbanda Força e Luz
Brotas
Centro de Umbanda Mãe Iansã - CUMI
São Caetano
Casa de Oração Irmãos e Fé - COIF (Razão
Lapinha/
social: Centro de Umbanda Casa de Oração
Liberdade
Irmãos e Fé)
Templo de Umbanda Estrela Guia
Itapuã
Templo e Escola de Umbanda Pai José de
Boca do Rio
Aruanda
Templo e Escola de Umbanda Flecharuanda Boca do Rio
Templo Universalista Luz de Aruanda
Garcia
-TULAR
Tenda de Umbanda Pai Cipriano de Angola
Mussurunga I
e Ogum de Ronda
Terreiro de Umbanda Casa das Almas TUCA e Escola Dominical de Umbanda
INE**
Casa das Almas
Terreiro Filhos de Oxalá ou Tenda
Mussurunga I
Umbandista Filhos de Oxalá
57
Centro de Umbanda 7 Caminhos de Aruanda Stella Maris
2019*
Sim
58
Terreiro de Umbanda Aldeia Tupyara
2020
Sim
Nova Brasília
*Ano de início do funcionamento, a instituição ainda não possui fundação ou a mesma não
foi identificada.
**INE = Informações Não Identificadas.
pesar de o levantamento não ter identificado muitos terreiros fundados entre as décadas de 1920 e 1950, isso não quer dizer que eles não existam, muito provavelmente
não foram registrados em uma instituição ou órgão oficial, ou ainda, eventualmente,
pode ser que o nome não tenha os termos Umbanda ou Umbandista, dificultando
sua identificação em nosso levantamento.
p. 188
Como sinalizado antes, alguns terreiros (16), embora se declarem de Umbanda,
não trazem essa referência em seu nome – Ogum de Ronda Rei dos Astros (nº 5),
Centro de Caboclo Serra Negra da Aldeia de Jequitiriça (nº 7), Centro Luz do Mestre
(nº 9), Centro de Oxalá (nº 14), Sultão das Matas (nº 15), Casa de Lua Cheia (nº 16), Ylê
Axé Oiassi (nº 20), Centro de Caboclo Sete Flechas (nº 23), Centro Espírita Caboclo
Tumba Jussara (n°26), Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol (nº 28), Ogum de Kariri
(nº 29), Centro Cigana Maguidala (nº 34), Casa de Caridade Caboclo Boiadeiro (nº 38),
Abassá de Yemanjá (nº 41), Casa de Oração Irmãos e Fé (nº 49), Templo Universalista
Luz de Aruanda (nº 53) – ver Quadro 4.
Além disso, outra característica percebida é que geralmente aqueles que trazem
22
a denominação de “Templo e Escola” realizam cursos de teologia, curimba, desenvolvimento mediúnico e vivências. Esses cursos possuem preços específicos, geram
uma renda para o espaço e auxiliam no custeio de suas despesas de funcionamento.
Ainda contribuem para que se possa ter mais acesso e conhecimento sobre a religião,
como por exemplo o Templo e Escola Umbandista Mata Virgem (nº 35), o Templo e
Escola de Umbanda Pai José de Aruanda (nº 51) e o Templo e Escola de Umbanda
Flecharuanda (nº 52).
Vale ressaltar que alguns terreiros realizam cursos, mas não adotaram o nome
Templo Escola, como é o caso do CUMOA (nº 11), da TUJE (nº 46) e do CUMI (nº 48).
23
Outra instituição presente em Salvador é o Curso de Curimba das Meninas, que
realiza parceria com diversos terreiros de Umbanda da cidade.
Ainda com referência apenas ao nome, poder-se-ia inferir uma possível relação
com as Umbandas mencionadas no Quadro 2, na seção 2, casos do Centro Espírita
Caboclo Tumba Jussara (nº 26), do Centro Casa de Mesa Branca Raio de Sol (nº 28),
do Lar Umbandista Espírita de Oração e Caridade (nº 39), do Centro Espírita Renascer
na Umbanda (n º 43), cujas denominações trariam uma ligação com a Umbanda de
Mesa Branca ou Kardecista. Além do Ylê Axé Oiassi (nº 20) e do Abassá de Yemanjá
(nº 41), cujos nomes poderiam, de alguma forma, os relacionar àUmbanda Traçada. Ou
ainda, o Centro de Umbanda Mística Oxum Apará (nº 11) e o Centro Cigana Maguidala
(nº 34) que, eventualmente, poderiam ter suas origens/funções mais relacionadas à
chamada Umbanda Esotérica.
É oportuno adicionar, de acordo com Borges (2006), que o Centro Umbandista Rei
de Bizara (nº 17) também funcionou como escola voltada ao ensino dos fundamentos da Umbanda, onde o/a médium, após finalizar um curso que durava sete anos,
poderia abrir seu próprio terreiro. Assim, segundo o autor, o referido centro contribuiu
para formação de outros terreiros como o Centro Umbandista Oxossi Matalambô, o
p. 189
24
Centro Iansã da Pedra do Ouro e o Rosário de Luz. Para a dirigente do Centro Umbandista Rei de Bizara, quando um novo terreiro se forma, o vínculo com o de origem
permanece, isso porque o/a médium continua frequentando e/ou se aconselhando,
esporadicamente, com a mãe ou o pai de santo, o que contribui para união entre os
terreiros (BORGES, 2006). Essa característica da formação e da união dos terreiros de
Umbanda, em Salvador foi percebida em outros exemplos, como o TUAC (nº 40), que
se formou do LUEOC (nº 39), e que ainda mantém o vínculo com este último, muitas
vezes realizando eventos, palestras e festivas juntos.
Também se acrescenta que muitos deles mudaram de endereço ao longo dos
anos de funcionamento, isso porque às vezes o terreiro começa nas dependências da
própria residência do/a dirigente, ou em locais improvisados, e, aos poucos, conforme
os/as frequentadores/as e o número médiuns em atendimento vão aumentando, o
terreiro vai se tornando mais consolidado e é finalmente registrado. Um exemplo é o
Abassá de Yemanjá (nº 41), que iniciou as atividades no bairro Marechal Rondon, em
seguida foi transferido para Nova Brasília, localidade Vila Mar, e, atualmente, está em
Pero Vaz, mantendo a mesma dirigente. Outro exemplo é a Casa de Umbanda União
e Caridade (nº 42), que antes se situava no bairro Matatu e atualmente está no Bonfim.
Quando se analisa a presença da Umbanda no urbano é importante compreender
que os espaços de culto dessa religião são, muitas vezes, invisíveis aos olhos de leigos/
as. Principalmente, quando o terreiro ainda funciona no mesmo lote das residências
dos pais e mães de santo, seja no quintal, nas lajes ou nos pavimentos superiores, ou
ainda, em cômodos específicos da casa. Geralmente não existem letreiros ou símbolos
que indiquem o local quanto ao uso religioso. Entretanto, é comum haver várias ervas
e árvores de uso ritualístico na entrada, e em alguns dias também é possível ver filas
de pessoas trajadas com roupas claras na porta e até, quem sabe, ouvir da rua o som
dos atabaques durante as giras.
Considerações finais? Elas não se encerram,
caminham para outros e necessários começos
p. 190
O território umbandista vai muito além dos limites do terreiro, sendo uma religião
que tem seus fundamentos doutrinários em defesa da natureza, interagindo com
diversos espaços livres urbanos a fim de realizar seus rituais e festivas, em locais como
praias, rios, matas, pedreiras, parques urbanos, próximos a elementos da arborização
urbana, ruas e encruzilhadas. Como a religião é também pautada na caridade, os terreiros muitas vezes intervêm em causas sociais e promovem atividades assistencialistas,
atuando na escala da cidade. Dessa forma, o presente levantamento entende que a
localização dos terreiros de Umbanda em Salvador é apenas uma pista, ou um ponto
de partida, para a compreensão mais ampla de como se dá a influência e a atuação
desses terreiros no espaço urbano.
No Mapeamento dos Terreiros de Salvador, como já mencionado, identificou--se a
presença de apenas 24 terreiros umbandistas na cidade. Já o levantamento realizado
pela Fenacab, e que antecede o realizado em 2008, citado por Borges (2006), relatou
a presença de 53 terreiros de Umbanda em Salvador. Metodologicamente, no mapeamento foram identificados todos aqueles fundados ou registrados em órgãos oficiais, e
o segundo levantamento provavelmente não se restringiu aos terreiros fundados, com
registros oficiais. Já o levantamento apresentado neste artigo identificou 58 terreiros
umbandistas, terreiros e escolas, 32 deles fundados antes de 2008.
Apesar de o levantamento apresentado neste artigo também agregar os terreiros
cuja data de fundação não pôde ser detectada e aqueles que não estão mais em
funcionamento, ainda assim não foi possível identificar todos os terreiros apontados
pela Fenacab ou aqueles mencionados nas publicações científicas de Borges (2006),
Moura (2013) e Paz (2019), sinalizados ao longo do texto. Por isso, considera-se a necessidade de os resultados serem aprofundados no campo empírico, principalmente
através de visitas in loco e entrevistas, além de consulta a dirigentes dos terreiros
umbandistas e consulentes/ visitantes.
Mesmo assim, já é possível afirmar que a presença da Umbanda em Salvador tem
aumentado, pois desde 2008 já foram identificados 22 novos terreiros. A realização
do 1º e do 2º Umbahia, em 2017 e 2018, também trouxe momentos importantes de
visibilidade e de reconhecimento para a religião.
Como dito, as considerações aqui postas não se encerram, mas indicam novos
e necessários recomeços. Por isso, pontua-se que quando da proposição inicial de
atualizar o levantamento dos terreiros de Umbanda em funcionamento em Salvador,
as autoras tinham em vista: (1) identificar os bairros onde se inserem; (2) entender
se esses bairros são os que mais concentram pessoas negras; e (3) quais as outras
relações que se estabelecem entre o terreiro (a partir das práticas que desenvolvem,
além das celebrações religiosas) e o bairro ou a cidade onde se inserem.
p. 191
Todavia, no processo de elaboração do artigo, viu-se lacunas que não poderiam ser
negligenciadas, como a compreensão das “Umbandas”, e como a religião vem sendo
tratada nas publicações científicas. Trata-se de aspectos considerados importantes
para o entendimento do crescimento no número de terreiros da religião, como também
de seus/suas adeptos/as.
Nesse sentido, foi oportuno o desapego das expectativas iniciais, visando a perseguir e atingir um outro objetivo. Assim, neste artigo abordou-se primeiramente tais
compreensões e a seguir, além do fundamental aprofundamento acerca do levantamento, pretendemos dialogar com os pontos acima suscitados, e quem sabe até
mesmo realizar uma reconstrução conceitual quanto ao emprego de termos que
sedimentam o racismo estrutural.
Com isso, afirma-se que ainda há uma longa jornada, seja para trazer respostas às
inquietações pessoais e às conexões com a espiritualidade que uniu (e une) as autoras, seja para dar visibilidade às inúmeras possibilidades de leituras que a Umbanda
proporciona como a religião que “é paz e amor, é um mundo cheio de luz, é força
que nos dá vida”.
Notas
1
Com vistas a evitar repetições desnecessárias e, especialmente, considerando a pluralidade e a diversidade da Umbanda, representada inclusive pela multiplicidade de nomes
usados como referência aos espaços físicos
de seus cultos – tenda, casa, cabana, barracão, centro ou templo –, aqui o emprego
será simplesmente terreiro, embora reflita as
denominações anteriormente citadas.
2
p. 192
Que pode ser conhecido como Zambi, Olorum
ou Olodumare, isso porque os povos africanos
vinham de diferentes regiões (Congo e Angola; da Nigéria; ou do Reino do Daomé, onde
é o atual Benim), que atribuíam distintos
nomes ao mesmo Deus, de acordo com a nação
de origem angola, ketu ou jêje e ao idioma
falado, bantu, iorubá e fon ou ewé, respectivamente. Além de Nhanderu, relacionado à
vertente indígena Guarani.
3
Forças elementares que representam a natureza, assim conhecidos pelos povos da nação
ketu, mas que podem ser chamados inquices
quando se relacionam à nação angola; ou Voduns, se estiverem ligados à nação jêje.
4
Já viveram neste mundo físico, mas após a
morte, alcançaram determinado grau de elevação/evolução que retornam à terra, na condição de espíritos de caboclos, pretos-velhos
– por exemplo –, cuja sabedoria os permite
atuar nos trabalhos de aconselhamentos espirituais e no benzimento, normalmente intermediados/as pelos/as médiuns do terreiro,
durante uma gira.
5
Correspondem aos agrupamentos de espíritos que possuem a mesma vibração. As energias
de cada falange vêm de um determinado Orixá
(Oxalá, Iemanjá, Oxum, Iansã, Ogum, Oxóssi,
Xangô, Ossain, Oxumarê, Nanã, Obaluaê). Em
uma falange, podem existir centenas de espíritos atuando com o mesmo nome, denominados
falangeiros. Por exemplo, a Cabocla Jurema
é uma falange constituída de milhares de espíritos que adotam o mesmo nome. “Por isso,
pode ocorrer a manifestação de centenas de
Caboclas Juremas ao mesmo tempo, em diversos
terreiros, inclusive dentro da mesma gira
de um terreiro” (NASCIMENTO, 2020, p. 14).
6
Vale acrescentar que na Bahia, além do
mapeamento citado, também há o Mapeamento
dos terreiros do Recôncavo Baiano (2012),
que registrou 420 terreiros, dos quais 77
(15%) se auto-identificaram como pertencente
à Umbanda e o Mapeamento da região do Baixo
Sul da Bahia (2012) que identificou 116 terreiros, sendo 47 (43%) de Umbanda.
7
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiti-
ceiro negro: Umbanda e sociedade brasileira.
São Paulo: Brasiliense, 1999.
8
Ainda no século XVII, um expressivo contingente de negros/as que chegou à Bahia
era de origem bantu. O que possivelmente se
reflete na constituição das irmandades dos homens pretos aos calundus, aos candomblés, às
macumbas, às congadas e aos maracatus – manifestações que propiciavam a troca de energia
e promoviam o equilíbrio ou que, como afirma
Sodré (1988), destinavam-se a renovar a força. Inclusive Rolnik (1999, p. 33) registrou:
“Em suas habitações coletivas moravam as tias
negras e seus clãs, que praticavam o jongo,
macumba ou roda de samba como extensões da
própria vida familiar; pouco a pouco esses
batuques familiares foram se transformando
em cordões de carnaval”.
9
PRANDI, Reginaldo. Prefácio. In:CARNEIRO,
João Luiz. Religiões afro-brasileiras: uma
construção teológica. Petrópolis: Vozes, 2014.
10
11
Está presente em diversas obras, sites
e blogs que tratam da religião.
O referido autor fez um abrangente le-
vantamento que conta com nomes como: Antonio
Carlos do Amaral Azevedo, autor do Dicionário Histórico das Religiões; Olga Gudolle
Cacciatore, autora do Dicionário de Cultos
Afro-brasileiros; Josef Ronton, escritor umbandista e autor do Trabalhos Umbanda-Canjerê e Sacramentos da Umbanda Mística; A. G.
Anselmo, autor de Catecismo Espiritualista
da Linha Branca de Umbanda, publicado pelo
Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro; Domingos Forchezatto, Maria Alice Giannoni e
Maria Elidia dos Santos, autores do livro
Umbanda Branca e Cristã; e Caio de Omulu,
autor do livro Umbanda Omolocô.
12
ISAIA, Artur Cesar. Ordenar Progredindo: A Obra dos Intelectuais de Umbanda no
Brasil da Primeira Metade do Século XX. In:
Anos 90. Porto Alegre, nº 11, julho de 1999.
13
14
Localizado na cidade de Feira de Santana-Bahia.
A mãe de santo do centro Tia Preta,
nascida em Cachoeira-Bahia, se iniciou no
Candomblé de nação ketu e angola, mas se
tornou umbandista quando foi morar no Rio de
Janeiro, carregando essas influências (BORGES, 2006).
15
A primeira dirigente, a mãe de santo
Dona Glorinha, nascida no povoado de Bela
Vista de Covas, em Itiúba, Bahia, teve sua
formação mediúnica no Centro de Giro Cavaleiro Jorge de Aruanda, em Petrolina, Pernambuco.
p. 193
16
Mário Bernardo ou Mário Exê Oba Kawo,
umbandista desde os sete anos, e portador de
inúmeros títulos pela Assembleia Legislativa
do Rio de Janeiro, na condição de conhecedor
e divulgador do culto de Umbanda (A Tarde,
28/01/1976, p. 2, apud MOURA, 2013).
17
Alguns exemplos: festa de Iemanjá (2
de fevereiro), grande festa de Iemanjá (31
dezembro), a noite dos Pretos-Velhos, a festa de São Jorge, dos Santos Mirins Cosme e
Damião e o Baile de Nanã dedicado às professoras (MOURA, 2013).
18
Casa da Vovó Maria Conga e Caboclo Sete
Flechas, localizado no Quingoma em Lauro de
Freitas-BA.
19
Realizado sob a coordenação geral de
Jocélio T. dos Santos, em uma parceria entre
as Secretarias Municipais da Reparação e da
Habitação e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), compondo o Programa de Valorização
do Patrimônio Afro-brasileiro.
20
Essa realização só foi possível, segundo Santos (2008), porque o projeto passou
a contar com recursos da Fundação Cultural
Palmares e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR),
além do apoio da Federação Nacional do Culto
Afro-brasileiro (FENACAB) e da Associação
Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu
(ACBANTU).
21
22
p. 194
23
O Curso de Curimba das Meninas se
localiza no bairro Imbuí e foi fundado em
2019, embora esteja em atividade desde antes
dessa data.
24
Embora Borges (2006) sinalize que esses
terreiros estariam situados em áreas próximas ao bairro de Brotas, a pesquisa ainda
não conseguiu confirmar nem a localização,
nem suas data de fundação; Por isso, não são
mencionados no Quadro 4.
Referências
BARBOSA JÚNIOR, Ademir. O livro essencial
de Umbanda. São Paulo: Universo dos Livros,
2014.
BROWN, Diana. Uma história da umbanda no Rio.
In: BROWN, Diana et al.Umbanda e política,
Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. pp. 9-42.
BORGES, Mackely Ribeiro. Gira de escravos:
a música dos Exus e Pombagiras no Centro
Umbandista Rei de Bizara. 211f. 2006. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação
em Música. Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2006.
_____. Umbanda e Candomblé: Pontos de Contato
em Salvador-BA. XVI Congresso da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música. Anais... Brasília, 2006.
_____. Gira de escravos na Umbanda de Salvador-BA. XV Congresso Congresso da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música. Anais..., Recife, 2005.
Conforme identificado em palestras e depoimentos nos UmBahia de 2017 e 2018.
CARNEIRO, João Luiz. Religiões afro-brasileiras: uma construção teológica. Petrópolis: Vozes, 2014.
Curimba é um grupo de pessoas que realizam práticas musicais em rituais umbandistas, utilizando instrumentos como atabaques,
agogô e a própria voz.
Governo do Estado da Bahia. Secretaria de
Promoção de Igualdade Racial – Sepromi.
Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana do Recôncavo. Salvador, 2012.
Disponível em: <http://www.igualdaderacial.
ba.gov.br/category/publicacoes/>. Acesso em:
jun. 2021
Governo do Estado da Bahia. Secretaria de
Promoção de Igualdade Racial – Sepromi.
Mapeamento dos Espaços de Religião de Matriz Africana do Baixo Sul. Salvador, 2012.
Disponível em: <http://www.igualdaderacial.
ba.gov.br/category/publicacoes/>. Acesso em:
jun. 2021.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma
social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes,
1988.
VERGER, Pierre. Lendas africanas dos Orixás.
Salvador: Corrupio, 1999.
MIRANDA, Eduardo Oliveira; SILVA, Hellen
Mabel Santana. Paisagem e Umbanda: análise
da festa de largo. VI Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura. Anais… Salvador, 2010.
MOURA, Mariana Mendes de. Umbanda em Salvador (BA): memórias e narrativas. 120f.
2013. Dissertação (Mestrado). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia - Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2013.
MOURA, Mariana Mendes de. A Umbanda em Salvador: memórias e considerações. III Encontro Baiano de Estudos em Cultura. Anais…
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NASCIMENTO, Adriana Cristina Zielinski do.
“Avante, filhos de fé”: a Umbanda e suas práticas ritualísticas. 101f. 2020. Dissertação
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PINHEIRO, André de Oliveira. Revista espiritual de Umbanda: mito fundador, tradição
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Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em História - Centro de Filosofia e
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São Paulo. São Paulo: Studio Nobel / FAPESP,
1999.
SANTOS, Jocélio. Mapeamento dos terreiros
de Salvador. Salvador: Centro de Estudos
Afro-Orientais, UFBA, 2008.
p. 195
Novas raízes:
ontologias jamaicanas da
negritude, da África ao gueto1
Wayne Modest
Museu Nacional das Culturas Mundiais,
Países Baixos
Rivke Jaffe
Universidade de Amsterdã, Países Baixos
TRADUÇÃO:
Carolina Maurity Frossard
Universidade Livre de Amsterdã / Universidade de
Amsterdã, Países Baixos.
Novas raízes: ontologias jamaicanas
da negritude, da África ao gueto
Resumo
Este artigo explora ontologias contemporâneas da negritude na ilha
caribenha da Jamaica. Abordando a negritude como uma questão ontológica
– uma questão que pertence ao ser, ou à existência, de uma categoria
de pessoas –, enfatizamos a dimensão espacial de tais ontologias. Com
base na arte contemporânea e música popular jamaicanas, propomos que o
local da negritude, como é imaginado na Jamaica, se deslocou da África
em direção ao “gueto”. Traçando mudanças nas perspectivas jamaicanas
sobre raça e nação, o artigo discute “ser negro” e “ser jamaicano” como
autodefinições que envolvem a negociação da consciência histórica e da
conectividade transnacional. Durante grande parte do século XX, vários
movimentos sociais e políticos jamaicanos tinham o continente africano
como referente da negritude. No século XXI, o espaço urbano do gueto se
tornou mais central nos comentários e críticas sociais jamaicanos. Ao
traçar as mudanças históricas do imaginário espacial que ancora noções
de pertencimento e autenticidade em termos raciais, buscamos chamar a
atenção para a mutabilidade da relação entre negritude e africanidade.
Palavras-chave: Jamaica, arte contemporânea, dancehall,
ontologias da raça, imaginário espacial.
Nuevas raíces: ontologías jamaiquinas de
la negritud, desde África hasta el gueto
Resumen
Este artículo explora las ontologías contemporáneas de la negritud en
la isla caribeña de Jamaica. Enfocando la negritud como una cuestión
ontológica —una cuestión que atañe al ser, o a la existencia, de una
categoría de personas—, hacemos hincapié en la dimensión espacial de
tales ontologías. Basándonos en el arte contemporáneo y la música
popular jamaicanos, proponemos que el lugar de la negritud, tal y como
se imagina en Jamaica, se ha desplazado de África al “gueto”. A partir
de las cambiantes perspectivas jamaicanas sobre la raza y la nación,
el artículo analiza cómo las autodefiniciones de “ser negro” y “ser
jamaicano” implican la negociación de la conciencia histórica y la
conectividad transnacional. Durante gran parte del siglo XX, diversos
movimientos sociales y políticos jamaicanos miraron principalmente
al continente africano como referente de la negritud. En el siglo
XXI, el espacio urbano del gueto ha adquirido mayor protagonismo
en el comentario y la crítica social jamaicanos. Al rastrear los
cambios históricos del imaginario espacial sobre el que se proyectan
la pertenencia racial y la autenticidad, pretendemos poner en primer
plano la mutabilidad de la relación entre negritud y africanidad.
Palabras clave: Jamaica, arte contemporáneo, dance
hall, ontologías de la raza; imaginario espacial.
New Roots: Jamaican Ontologies of
Blackness from Africa to the Ghetto
Abtract
This article explores contemporary ontologies of blackness in the Caribbean
island of Jamaica. Approaching blackness as an ontological issue – an
issue that pertains to the being, or the existence, of a category of
people – we emphasize the spatial dimension of such ontologies. Drawing
on Jamaican contemporary art and popular music, we propose that the site
of blackness, as it is imagined in Jamaica, has shifted from Africa
towards ‘the ghetto.’ Tracing changing Jamaican perspectives on race and
nation, the article discusses how self-definitions of ‘being black’ and
‘being Jamaican’ involve the negotiation of historical consciousness and
transnational connectivity. During much of the twentieth century, various
Jamaican social and political movements looked primarily to the African
continent as a referent for blackness. In the twenty-first century, the urban
space of the ghetto has become more central in Jamaican social commentary
and critique. By tracing the historical shifts of the spatial imaginary
onto which racial belonging and authenticity are projected, we seek to
foreground the mutability of the relation between blackness and Africanness.
Keywords: Jamaica, contemporary art, dancehall,
ontologies of race; spatial imaginary.
m sua canção African, de 1977, o artista do
reggae jamaicano Peter Tosh afirma: “Não importa de onde você vem, contanto que você seja
um homem negro, você é um africano. Não liga
para a sua nacionalidade, você tem a identidade
de um africano”. Tosh segue listando uma variedade de
2
localizações espaciais, incluindo paróquias jamaicanas,
outras ilhas caribenhas – como Trindade e Cuba –, e bairros negros em Londres e Nova York, como Brixton e o
Bronx. Ele traça uma visão pan-africanista das identidades
negras, enfatizando os vários locais diaspóricos que são
unificados pela experiência afrodescendente. Quase trinta
anos mais tarde, uma regravação de African foi lançada,
com adições à letra feitas por artistas do reggae de raiz
(reggae roots) jamaicano, como Bushman, Queen Ifrica,
and Buju Banton. A regravação, ainda que incluindo a afirmação de Tosh em sua própria voz, centralizou as histórias
compartilhadas de escravização que conectam negros
da diáspora africana: “Bem, não importa onde o barco
[i.e., o navio negreiro] atraca, pode ser Barbados ou em
Portland – todos sabem que o carregamento é da África”.
Além disso, a nova letra faz referência ao branqueamento
de pele e à branquitude cultural: “Estou confortável na
minha pele, nunca quero clarear essa melanina... Nunca
trairei minha raça, ainda que enfrentemos preconceito.
Vou sempre honrar minhas raízes, nunca me tornarei uma
fruta-pão assada [preta por fora, branca por dentro]... Tão
preto quanto for, você deve permanecer”.
E
3
v.2 n.1
p. 196-227
2023
ISSN:
2965-4904
Em músicas como African e Mama Africa, Peter Tosh
buscou reconectar jamaicanos negros à África, promovendo uma visão pan-africana da negritude como parte do
compromisso rastafári de revalorizar as origens africanas e
a negritude (leia, por exemplo, MATHES, 2010). Ainda que
a regravação do século XXI de African siga nessa mesma
linha, ela coloca em primeiro plano uma série de ansiedades contemporâneas que têm mais a ver com a cor da
pele e a autenticidade do que com a África em si. Na versão mais recente da letra,
vemos uma deixa para pensar possíveis mudanças nas formas contemporâneas de
compreender e vivenciar a negritude na Jamaica. Sugerimos que tais mudanças talvez
apontem para uma reconfiguração mais ampla das noções de negritude da diáspora
africana. Dentro do escopo desta edição especial sobre noções de “ser africano”, nosso
foco é a mudança do lugar simbólico que a África tem ocupado ao ancorar noções de
negritude no Caribe. O artigo se concentra no período da década de 1960 (os principais
anos da descolonização do Caribe) até o presente. Nós exploramos a importância da
África para a imaginação do “eu” – ou self – negro no período imediatamente após ao
colonial, rastreando sua persistência, bem como o surgimento de novas imaginações
do que constitui a negritude hoje.
Nós encaixamos essas discussões no âmbito das ontologias da negritude – quando
falamos de tais ontologias, nos referimos a formas de “ser” negro, em um mundo
estruturado pela branquitude como norma. Como aponta Michael Rabinder James,
a pergunta “O que é negro?” é uma questão ontológica: “Aborda o ser, a própria existência, de uma categoria de humanos distintos de outros humanos” (JAMES, 2012,
p. 107, ênfase no original). O que significa ser negro e jamaicano no século XXI e de
que forma essas autodefinições envolvem a negociação da consciência histórica e da
conectividade transnacional? Com base no caso da Jamaica, este artigo sugere uma
abordagem Américas que enfatiza o papel dos imaginários espaciais nas ontologias
da negritude da diáspora africana. Especificamente, sugerimos que concepções de
negritude que estavam intimamente ligadas ao espaço imaginado da África, do meio
para o final do século XX, foram complementadas nas últimas décadas por um enraizamento da negritude no “gueto”, um espaço imaginado em que a raça se mistura
com a pobreza e a violência urbanas.
O artigo começa com uma seção que delineia esta abordagem espacial, seguida
por um breve panorama histórico da política racial na Jamaica pós-emancipação, que
inclui uma reflexão sobre por que as geografias culturais da negritude teriam mudado na Jamaica. Para ilustrar tais mudanças nas ontologias jamaicanas da negritude,
discutimos, em primeiro lugar, as reorientações espaciais da arte contemporânea
jamaicana e, em seguida, movimentos semelhantes na música popular jamaicana.
Tais discussões são baseadas em análises visuais e musicológicas, entrevistas com
artistas visuais e debates midiáticos. Essas duas seções não almejam apresentar uma
revisão abrangente do tema (que estaria além do escopo deste ensaio). Em vez disso,
chamamos a atenção para as principais linhas discursivas de artistas visuais e músicos
p. 201
jamaicanos sobre a África, a fim de oferecer uma análise preliminar do que acreditamos
ser o descentramento da “África” e o surgimento do “gueto” (tanto um lugar real quanto
uma metáfora espacial) como mais um local em torno do qual os significados de ser
negro e jamaicano estão sendo re-imaginados.
Espacializando as ontologias da negritude
Críticas expressivas a concepções essencialistas de negritude vêm surgindo nas
últimas décadas – vindas, por exemplo, dos estudos críticos sobre raça. Esse debate
desafia a ontologia biológica da raça criada sob o colonialismo. Esta lógica racial
essencialista procurou justificar a colonização de povos da África através de uma
lógica quase científica que colocava a branquitude no topo de uma hierarquia racial
“natural” e inferiorizava os negros. Enquanto tais “raciologias” tiveram origem em uma
lógica baseada na cor da pele ou “epidermalização”, mais recentemente a genômica
tem sido mobilizada como alicerce para defesas de uma diferença biológica essencial
(GILROY, 1998; ABU EL-HAJ, 2007). Em contraste, as perspectivas sociais construtivistas
enfatizam a natureza não-biológica dos sujeitos raciais, entendendo a raça como uma
ontologia social (ver, por exemplo, MILLS, 1998). Aqui, entende-se as imaginações da
negritude a partir do colonialismo e do comércio transatlântico de escravizados. Dentro
desta ontologia social, a negritude não é uma qualidade essencial, mas uma identidade
atribuída; ainda que não-escolhida, é socialmente real. Além dessas ontologias biológicas e sociais, Michael Rabinder James (2012, p. 109) sugere uma ontologia política
da raça, que “presume que as pessoas de cor são agentes que podem escolher a
saliência política de suas identidades raciais não-escolhidas”. Tais ontologias políticas,
que destacam agências individuais e coletivas, têm informado lutas pan-africanas que
unem grupos diaspóricos distintos de forma estrategicamente essencialista, assim
como movimentos explicitamente não-essencialistas que sublinham os aspectos
interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade.
p. 202
Essas diferentes ontologias de raça e negritude têm sustentado imaginações
científicas e populares acerca das conexões entre os negros na África e aqueles da
diáspora africana. Sugerimos que as três ontologias descritas aqui (a biológica, a social
e a política) têm fortes dimensões espaciais que muitas vezes permanecem implícitas.
A partir de debates da geografia cultural, podemos abordar a negritude não apenas
como uma categoria racial definida somática e culturalmente, mas também como
um imaginário espacial. Por exemplo, a origem geográfica – mais especificamente,
a ideia do continente como “lar” – desempenha um papel importante nas ontologias biológicas, sociais, e políticas de raça. No caso da negritude, a “África” tem sido,
obviamente, o principal referente espacial. No entanto, como argumentamos neste
artigo, os continentes não são as únicas formas relevantes de espacialidade. Embora
a noção de deslocamento tenha sido central para os debates acerca das raízes e rotas
transnacionais que conectam sujeitos diaspóricos ao continente africano, propomos a
necessidade de ampliar esse enfoque através do papel das mobilidades e imobilidades
urbanas na construção de conexões diaspóricas. Como buscamos ilustrar com o caso
da Jamaica, abordar tais ontologias através de um viés espacial pode gerar novas sacadas acerca de como a negritude é compreendida e vivenciada. Enquanto os estudos
de Africana nos Estados Unidos estiveram focados principalmente nas geografias
da negritude que surgiram por meio do comércio transatlântico de escravizados,
levar em conta questões de espaço, lugar e mobilidade que vão além da escravidão
podm permitir uma melhor compreensão das novas formas como os negros estão
reconfigurando e re-enquadrando a diáspora (cf. CLARKE, 2010).
Focado em culturas de expressão, este artigo traça mudanças nas perspectivas
da Jamaica sobre raça e nação, com ênfase em imaginários espaciais. Nós estamos
especialmente interessados em como esses imaginários espaciais figuram nas ontologias políticas da negritude e na importância dos mesmos para os significados
atribuídos à negritude dentro de projetos políticos conscientes. Com base na arte
contemporânea e música popular, propomos que o local da negritude, como se imagina na Jamaica, começou a se deslocar da África para o “gueto”. Durante grande
parte do século XX, as ontologias políticas da raça evidentes nos movimentos negros
radicais, como o etiopismo, o garveyismo e o movimento rastafári, tinham a África
como principal referente espacial. Mais recentemente, comentários e críticas sociais
acerca de desigualdades e exclusões racializadas na Jamaica trouxeram à tona novos
espaços culturais e políticos de agência negra. Traçando as mudanças históricas do
imaginário espacial sobre o qual se projeta o pertencimento e a autenticidade quando
em relação com identidades raciais, buscamos chamar a atenção para a mutabilidade
das conexões entre negritude e africanidade.
Políticas raciais jamaicanas
A Jamaica tem uma longa história de consciência política negra e a África, tanto
como local físico quanto como espaço do imaginário político e social, desempenhou
p. 203
um papel importante na constituição dessa política. Vários movimentos pan-africanistas tiveram destaque nessa história. Diferentes vertentes do etiopismo podem
ser rastreadas ao longo de séculos de dominação colonial, escravidão de latifúndio
monocultor e racismo institucionalizado. Baseando-se nas referências bíblicas aos
africanos como etíopes, grupos afrodiaspóricos no Caribe e nos Estados Unidos têm
procurado enfatizar suas raízes culturais e conexões transnacionais. Na Jamaica, vários
movimentos sociais, religiosos e políticos formularam projetos de consciência racial e
de orientação para o continente africano. Entre esses movimentos espirituais, estão o
Revival da Jamaica, originado em 1860-1861, e o Kumina, que surgiu no final do século
XIX com a imigração pós-emancipação de trabalhadores africanos contratados (ver
STEWART, 2005). Um movimento mais abertamente político foi a Associação Universal
para o Melhoramento do Negro (UNIA), que foi fundada em 1914 pelo pan-africanista
jamaicano Marcus Garvey, mas ganhou centenas de sucursais em todo o Caribe,
América do Norte, América Central e África, dentro de uma década. A UNIA buscou
incutir o orgulho racial entre os afrodescendentes e promoveu um retorno à África por
meio de iniciativas que incluíam a empresa de navios a vapor Black Star Liner – que
acabou não tendo o sucesso esperado. O garveyismo também foi uma influência
central para o movimento rastafári (LEWIS, 1998), talvez a forma contemporânea mais
conhecida de etiopismo e pan-africanismo. O rastafári, que surgiu na capital jamaicana
de Kingston na década de 1930, posiciona os negros do Novo Mundo como africanos
no exílio, cuja conexão com a pátria-mãe foi cortada e obscurecida pela escravidão e
pelo colonialismo. O movimento defende um retorno metafórico ou real desse exílio
na Babilônia (o Ocidente corrompido) para sua pátria em Sião, ou na Etiópia.
p. 204
Esses vários movimentos populares tiveram um impacto na política institucional da
Jamaica. O período imediatamente após a independência da Grã-Bretanha em 1962
foi caracterizado pelo nacionalismo multirracial crioulo (Creole), exemplificado pelo
lema nacional “De Muitos, Um Povo”. Em contraste com imaginários raciais bipolares
ou baseados na regra da “gota de sangue única”, a Jamaica tem sido historicamente
caracterizada por uma distinção popular entre “negros” de pele mais escura e “pardos”
de pele mais clara – uma distinção de cor que permanece associada a diferentes
4
posições de classe. Embora a maioria da população se considere negra, a imagem
nacionalista crioula de mistura e crioulização foi uma narrativa que legitimou o poder
político e econômico das elites pardas, libanesas, chinesas e judias de pele mais clara.
Esta forma de nacionalismo foi contestada pelo movimento rastafári e outros projetos nacionalistas negros. Em resposta a essas críticas populares ao domínio político
branco e pardo, líderes políticos de pele clara, como Michael Manley e Edward Seaga,
procuraram incorporar tradições culturais afro-jamaicanas, muitas vezes associadas
à Jamaica rural.
No final do século XX, o nacionalismo multirracial crioulo e a valorização estatal
das tradições culturais negras rurais foram em grande parte substituídos por formas populares do que Deborah Thomas (2004) chama de “negritude moderna”. Essa
mudança em direção a uma política que privilegia a negritude como base para o
pertencimento nacional foi informada por uma série de influências nacionais e transnacionais. Nacionalmente, o rastafári e outros movimentos pan-africanistas foram
influentes nesta revalorização da negritude. Além disso, a emigração jamaicana em
grande escala (principalmente para cidades nos Estados Unidos, Canadá e Reino
Unido) e a acessibilidade de novas mídias e tecnologia digital ampliaram as influências
transnacionais e possibilitaram um diálogo particularmente intenso com a negritude
“urbana” afro-americana. As mudanças populares em direção ao nacionalismo negro
ganharam evidência no âmbito da política institucional em 1992, quando P. J. Patterson
se tornou o primeiro primeiro-ministro negro da Jamaica e proclamou publicamente:
“A Hora do Homem Negro é Agora” (“Black Man Time Now”).
Essas mudanças na política da negritude nas décadas após a independência também envolveram uma reorientação de seu lócus espacial. Enquanto os movimentos
políticos anteriores – tanto os populares quanto os institucionais – colocavam uma
forte ênfase na África e, em menor medida, na Jamaica rural, a partir do final do século
XX, houve um maior envolvimento com os “guetos” urbanos. Até mesmo o rastafári,
o movimento pan-africanista mais importante da Jamaica, passou evidentemente a
concentrar-se um pouco menos na África. Ainda que o grito de guerra costumasse
ser “Repatriação [para a África] é uma obrigação”, a ênfase em voltar para o continente
parece ter diminuído significativamente no século XXI e soluções contemporâneas
para a injustiça passam a ser buscadas de forma mais direta, dentro na Jamaica, do
5
que no retorno à pátria mítica de Sião/Etiópia.
Sugerimos que este descentramento da África se relaciona com fatores nacionais
e transnacionais. Nacionalmente, muitos jamaicanos perceberam a descolonização
como uma promessa frustrada de progresso e igualdade, especialmente para a maioria
da população negra e pobre. À medida que o país se urbanizava, essa população em
particular se concentrava cada vez mais em “guetos” urbanos. Enquanto o projeto
anticolonial conectava as desigualdades raciais jamaicanas à geopolítica imperial,
conectar a persistência dessas desigualdades raciais às relações de classe nacionais e
urbanas passou a ser mais relevante. Cada vez mais, o opressor podia ser encontrado
p. 205
em casa e não no exterior – a luta tornou-se mais localizada, resumida pela situação
dos “sofredores” que viviam em guetos caracterizados pela pobreza e pela violência.
De forma transnacional, como observado acima, a influência da cultura popular negra
norte-americana – com sua forte ênfase na natureza racializada da desigualdade
urbana – aumentou, junto à migração jamaicana e as novas tecnologias de mídia. Essa
forma mais politizada de consciência do gueto foi acompanhada por um mercado
crescente em torno da “cultura do gueto”, na música popular e, em menor medida, no
mundo da arte. O surgimento do “gueto” como um importante referente espacial para
a negritude também pode ser interpretado à luz das mudanças nas concepções de
África; em menor medida uma pátria mítica e idealizada. Nas próximas duas seções,
discutiremos os imaginários espaciais da África e do gueto nas artes visuais e na
música popular, respectivamente.
Imaginações visuais da África e do gueto
p. 206
Por que e como a africanidade passa a ser importante para a arte visual jamaicana,
e como sua imaginação tem sido fundamental para ideias de raça e nação? Em um
artigo intitulado “Desesperadamente em Busca da África”, o historiador da arte Petrine
Archer Straw (2004, p. 20) afirma que “os negros diaspóricos compartilham uma forte
herança artística enraizada na África, mas a escravidão bloqueou suas habilidades em
escultura, confecção de máscaras, cerâmica e tecidos herdados do Oeste africano”.
Esta declaração – esperançosa e talvez até exagerada em reivindicar uma memória
distintamente africana para artistas do Novo Mundo – apresenta um ponto importante para o tema deste artigo. Archer Straw vê a estética africana como ressurgindo
nas obras de artistas afro-jamaicanos “intuitivos” (autodidatas), que para ela personificam um “despertar das artes” e demonstram “que as ideias e imagens africanas
permaneceram fortes” no Novo Mundo (ibid.). Seu interesse na importância das raízes
africanas da arte jamaicana ecoa as preocupações de muitos artistas visuais; nesta
seção, traçamos brevemente a importância da África (especificamente em relação
com a negritude) no imaginário artístico da Jamaica. No final do século XX, os artistas
jamaicanos mais radicais praticavam um essencialismo político estratégico que se
baseava fortemente nas noções de pan-africanismo para comentar sobre as estruturas
contemporâneas de dominação e supremacia branca e sobre o viés eurocêntrico das
práticas contemporâneas da história da arte. Na última década, vemos esses modos
artísticos de crítica cada vez mais concentrados na cultura visual das comunidades
dos “guetos” jamaicanos, valendo-se dessa forma específica de estética urbana para
comentar sobre agenciamentos interseccionais de opressão.
As histórias convencionais da arte jamaicana identificam artistas como Edna Manley, Carl Abrahams, Albert Huie, Cecil Baugh e Alvin Marriott como pioneiros (ver, por
exemplo, BOXER, POUPEYE, 1998). Do início a meados do século XX, com a Jamaica
ainda sob o domínio colonial britânico, mas marcada por um fervor nacionalista crescente, esses artistas deram expressão visual a uma visão nacionalista e anticolonialista
(HUCKE, 2013). Manley – esposa de Norman Manley, o primeiro premiê da Jamaica,
e fenotipicamente branca – foi considerada a mãe da arte jamaicana moderna e,
assim como os outros “pioneiros”, foi uma figura importante no início do envolvimento
artístico da Jamaica moderna com a África. Como parte do movimento nacionalista,
ela estava interessada no desenvolvimento de uma estética nacional informada pela
cultura nacional que ela acreditava poder ser encontrada na herança africana da
ilha. Seus primeiros trabalhos, incluindo Negro Aroused (Negro Desperto) e Pocomania
(batizado em homenagem a uma vertente da tradição religiosa afro-jamaicana Revival), demonstram esse investimento estético. Outros artistas dessa geração, como
Ronald Moody, estavam igualmente interessados nas práticas estéticas africanas e
nas tradições religiosas e folclóricas afro-jamaicanas, que também acreditavam ser
de origem africana.
Logo antes e em seguida da independência da Jamaica em 1962, surgiu um grupo
diferente de artistas que se envolveu com a África, muitos dos quais atribuídos ao
movimento rastafári e a outras religiões afro-jamaicanas, como o Revival. Esta geração
de artistas também se dedicou a um projeto político que buscava centralizar a África
como uma parte importante da prática estética jamaicana. Este período coincidiu com
o fim do colonialismo e do movimento de independência em muitos outros estados
caribenhos e africanos, e com o movimento negro originado nos Estados Unidos.
Embora o projeto desses artistas fosse diferente do projeto dos primeiros pioneiros,
ambos compartilhavam a dedicação ao fortalecimento da posição dos negros na
Jamaica por meio de um tradicionalismo folclórico. Além de um grupo de artistas
autodidatas posteriormente apelidados de “Os Intuitivos”, nas décadas de 1960 e
1970, a tradição negra radical do rastafári também inspirou artistas com formação mais
formal. Vários desses artistas, incluindo Osmond Watson, estudaram no exterior, na
Europa e na América do Norte, onde se interessaram pela África. Watson, conhecido
por ter sido exposto à arte africana em museus europeus, inspirou-se nas tradições
das máscaras africanas em seu trabalho e incorporou referências às pinturas etíopes
p. 207
sobre painel. O trabalho de outros artistas que surgiram nas décadas de 1960 e 1970,
como David Boxer e Petrona Morrison, também mostra influências africanas; Morrison
até estudou no Quênia.
Como essa diversidade indica, não houve um projeto radical negro singular de
6
relação com a África. Indiscutivelmente, no entanto, o movimento artístico recente
que ficou conhecido como Afrikan Vanguard ofereceu as imaginações mais radicais
da África e da negritude na Jamaica contemporânea, posicionando-se como explicitamente afrocêntrico, em contraste com gerações anteriores de artistas jamaicanos.
Composto por oito artistas visuais, muitos dos quais assumiram nomes “africanos”,
este grupo incluía artistas como Omari (“African”) Ra, Khalfani Ra, Oya Tayehimba e
Khepera Oluyia Hatsheptwa. O grupo surgiu em meados da década de 1990 com a
seguinte declaração:
Não somos artistas, não na quintessência ocidental da palavra. Realizamos o ritual do Akoben, como fez Boukman em Bwa Kayman no Haiti há 210 anos: “Jogue
fora a imagem do Deus do homem branco, pois seu Deus inspira apenas o crime.”
Localizamos nosso início, a verdadeira gênese do Novo Mundo, no triunfo da nova
vontade da África. Em nosso impulso evolutivo, reconhecemos o importantíssimo
imperativo político entre nação e imagem (imaginação). Como criadores de imagens,
não ansiamos pelo novo, mas pelo esquecido e morto; os mortos imortais, fonte de vida
eterna – Dessalines, Shakaben Awayo, Marcus Garvey, Bobby Wright et al. (AFRIKAN
VANGUARD, 2000, p. 8-9)
Esse desejo por aqueles “mortos imortais” – o revolucionário haitiano Dessalines, o
pan-africanista jamaicano Marcus Garvey e outros revolucionários – sinaliza o desejo
desses artistas de repensar a história dos negros do Novo Mundo, afastando-se do
que eles acreditam ser uma narrativa branca (ocidental) dos africanos nas Américas,
e aproximando-se de uma versão da história mais afrocêntrica, ou mais pautada pelo
nacionalismo negro. Em uma entrevista, Khalfani Ra resumiu esse repensar de forma
sucinta ao refletir sobre sua relação com o passado da escravidão:
p. 208
Ao contrário da maioria dos jamaicanos e muitos outros, quando penso na África, as
imagens que vêm à mente não são do suposto diagrama do navio negreiro de Brookes
(essa imagem é autêntica de qualquer maneira?), mas pirâmides, as imagens do vale
do Nilo, imagens do Grande Zimbábue; essas são as imagens na minha cabeça. Até
imagens do Haiti, imagens de Vodun. O fato de a imagem do navio negreiro estar tão
presente e até mesmo reverenciada é motivo de preocupação. Acredito que isso seja
parte do subdesenvolvimento do povo negro. Acho que o papel de um artista, que
é negro, é desafiar essas imposições. Minha história não começa na escravidão, ela
[a escravidão] chegou com mais de dez mil anos de atraso. Não que não tenha sido
importante, mas foi apenas um episódio nesta longa história. Algo está definitivamente
errado com nossa cultura e nosso povo, se esta é sua imagem icônica, de sua história.
7
Indica uma mentalidade de vítima.
Esta citação ilustra o engajamento do Vanguard com uma ontologia política da
negritude que imaginava os jamaicanos negros como conectados à África de forma
explícita, em termos de orgulho e agência, em vez de vergonha e perda – uma geografia imaginativa de raça que conecta jamaicanos negros a haitianos e africanos,
mas descentra o comércio transatlântico de escravizados. Um aspecto contínuo do
trabalho de Khalfani Ra é o uso de uma tela vermelha profunda, com pregos salientes saindo da tela. Como ocorre, por exemplo, no trabalho de 2005 intitulado 1804,
a geografia prolongada (Jamaica) – altar para (r)evolução #2 (1804, the protracted
geography (Jamaica) – altar for (r)evolution #2, Figura 1). Esta “geografia prolongada”
oferece uma imaginação visual do que significa ser negro nas Américas, conectando
a Jamaica às práticas espirituais e estéticas da África Ocidental e Central. Tanto a cor
vermelha quanto o ferro evocam os espíritos de Ogum e Xangô, os orixás iorubás da
guerra, trovões e relâmpagos, que Khalfani Ra vê como os espíritos que oferecem
poder aos negros no Novo Mundo, o poder que ajudou os negros a vencer a Revolução
Haitiana. Ao mesmo tempo, Khalfani Ra usa os pregos para evocar os espíritos das
práticas medicinais centro-africanas que fazem uso de imagens e pregos, a força de
cura dos N’kisi. Esta e outras obras semelhantes de outros artistas foram apresentadas
na segunda grande mostra coletiva do Vanguard em 2004, que buscou comemorar
o bicentenário da Revolução Haitiana, em 1804. Assim como na primeira mostra, as
obras desta segunda exposição imaginaram fluxos históricos globais de ideias radicais
e até militantes por todo o Atlântico Negro que poderiam ser utilizadas para confrontar estruturas persistentes de racismo. Nós sugerimos que esse anseio militante
pela África demonstra desilusão com a narrativa nacionalista crioula que dominou a
agenda política e, indiscutivelmente, as políticas culturais do período imediatamente
pós-independência. A proeminência desse grupo coincidiu com o aumento do discurso
nacionalista negro no início dos anos 1990, descrito na seção anterior.
Sugerimos que estas são as imaginações radicais da África que estão mudando hoje.
Enquanto as práticas artísticas na Jamaica sempre foram variadas e múltiplas, informadas por trajetórias distintas, queremos marcar uma aparente mudança em direção
p. 209
Figura 1. 1804, a
geografia prolongada
(Jamaica) – altar para
(r)evolução #2 (1804,
the protracted geography
(Jamaica) – altar for (r)
evolution #2), Khalfani
Ra, 2005, fotografia de
Donnette Zacca.
à incorporação de outro lócus de interesse da luta negra jamaicana, que identificamos
aqui como o imaginário espacial “do gueto”. O gueto é um espaço emblemático em
que a raça se combina com a pobreza e a violência urbanas e, no contexto da Jamaica,
é ocupado quase que exclusivamente pela população negra. Artistas mais jovens,
sugerimos, estão recorrendo a esse outro local para a construção de uma imaginação
radical, ainda que as ideias de raça e nação continuem compondo uma parte importante
de suas inspirações artísticas. Conforme indicado acima, vemos essa mudança como
o resultado de uma interação complexa de fatores nacionais e transnacionais.
p. 210
No ensaio que introduz o catálogo da exposição Curator’s Eye II (O Olho do Curador
II), realizada entre 2005 e 2006 na Galeria Nacional da Jamaica (National Gallery of
Jamaica), o curador Eddie Chambers descreve a dedicação da arte na Jamaica à
tessitura de um “comentário em várias camadas sobre as vidas e as lutas do povo
e do país”. Nesta exposição, embora reconhecendo a importância da África para a
imaginação da diáspora, Chambers identifica seu interesse curatorial prévio em como
as “gerações mais jovens de artistas da Jamaica estavam trabalhando de formas que
refletiam os desenvolvimentos internacionais na prática da arte contemporânea”. Os
artistas que ele incluiu na exposição estavam preocupados com “uma história sangrenta que vive e respira, ao mesmo tempo que se envolve e interage com uma ampla
gama de preocupações correspondentes e contemporâneas... episódios traumáticos
na história da Jamaica com ressonâncias modernas” (CHAMBERS, 2005, p. 4-5). São
essas preocupações modernas que, como sugerimos, vieram complementar a ênfase
anterior na África. Essa geração mais jovem de artistas está tomando o urbano, e mais
especificamente o gueto urbano, como um local distinto para uma experiência negra
global e de luta.
A exposição de 2013 da Galeria Nacional intitulada Novas Raízes: 10 Artistas Emergentes (New Roots: 10 Emerging Artists) abordou questões semelhantes às da Curator’s
Eye ii. Composta por dez artistas “com menos de 40 anos e novos, ou relativamente
novos, no mundo da arte jamaicana”, a mostra foi, segundo os curadores, “concebida
para identificar e incentivar novos rumos no mundo da arte jamaicana” e apresentou
“novas perspectivas acerca do potencial da arte para fomentar a transformação social
8
em tempos de crise”. Embora a novidade da Novas Raízes pareça ter sido em grande
parte extraída de novos modos de expressão artística – novos, ao menos, para a cena
9
artística jamaicana –, a exposição parecia enraizar a prática artística e a negociação da
identidade e do pertencimento fora das bases vistas em práticas artísticas contemporâneas anteriores. Em sua introdução à exposição, Veerle Poupeye, diretora executiva da
Galeria Nacional e uma das curadoras da exposição, faz referência ao apelo de Stuart
Hall (1999) para que passemos da ênfase exagerada em raízes a questões sobre rotas
na formação da identidade. Poupeye (2013) descreve à exposição da seguinte forma:
As obras na exposição são provocantes e certamente colocam questões incômodas, mas não há uma sensação esmagadora de distopia, e a exposição reflete uma
nova disposição por parte dos artistas de intervir ativamente em seu ambiente social...
Em vez de buscar por novas certezas, as obras [da exposição] Novas Raízes ilustram
a vontade dos artistas de abraçar as novas incertezas e fragilidades, a nível pessoal e
coletivo, e de encontrar um novo sentido de identidade, mais mutável e questionador,
este contexto.
A exposição também foi alvo de críticas. Um comentarista online que se identificou como George Blackwell postou um extenso comentário em uma postagem do
blog da Galeria Nacional (um diálogo republicado no site da ARC, uma notória revista
caribenha de arte), descrevendo a exposição como: uma tentativa desesperada de
fugir de qualquer discurso sério que coloque o negro em primeiro plano como o
p. 211
Figura 2 I Took the
Liberty of Designing
One (Eu Tomei a
Liberdade de Desenhar
Um), Matthew McCarthy,
2013, fotografia cedida
pela Galeria Nacional
da Jamaica.
constituinte essencial nas questões locais de identidade. A exposição tem, portanto,
10
uma curadoria insípida para evitar essa discussão.
p. 212
Embora discordemos da afirmação deste crítico de que a exposição e as obras
seriam apolíticas, ao contrário, por exemplo, do coletivo Afrikan Vanguard (que ainda
estava incluído na exposição Curator’s Eye ii), os artistas da Novas Raízes, ainda que
preocupados com a negritude, ofereceram uma nova perspectiva, da qual essa luta
emerge entre um repertório mais amplo de preocupações. Simultaneamente, suas
obras parecem ter adotado uma linguagem de luta mais popular, com base nas ruas.
O trabalho de Matthew McCarthy, por exemplo, embora se aproprie de parte da iconografia rastafári, está mais investido na política democrática da arte do grafite. O
trabalho de McCarthy na exposição Novas Raízes, I Took the Liberty of Designing One (Eu
Tomei a Liberdade de Desenhar Um) (Figura 2), foi uma instalação participativa em que
os visitantes foram convidados a adicionar seus próprios comentários e intervenções
a uma cerca de zinco coberta com pôsteres e adesivos. A cerca de zinco simboliza o
“gueto” e a pobreza urbana, e McCarthy se baseia nisso como uma forma de pensar
sobre as noções de exclusão urbana, raça e classe na Jamaica.
Não foi de admirar, então, que uma das curadoras da exposição, Nicole Smythe-Johnson, tenha respondido às críticas de Blackwell com uma revisão da declaração
do próprio crítico, redigida como: “uma tentativa desesperada de se afastar de qualquer
discurso sério que ponha em primeiro plano qualquer constituinte essencial único
em questões locais de identidade”. Ela explica esta revisão como uma tentativa de
reformular o diálogo para que “a conversa não seja sobre a ‘negritude’ e o seu peso e
densidade relativos no conjunto de ‘todos os constituintes (não essenciais e essenciais)
da identidade nacional’. Em vez disso, a conversa é ampliada, com mais nuance e
mais atenção às reconfigurações do próprio conceito de identidade para dar lugar a
11
articulações mais inclusivas, múltiplas e flexíveis”.
Esse diálogo deixa claro o desejo curatorial de descentrar modelos de identidade
singularmente afrocêntricos – um artista da Afrikan Vanguard chegou a descrever
esse afastamento curatorial “da identidade positivamente conectada à África” como
12
“um ato grave de repressão e ataque racial”. Para além de tais enquadramentos
curatoriais, a obra desta geração mais jovem de artistas demonstra claramente uma
preocupação com a sociedade jamaicana que é muito menos orientada pela África e
mais interessada em examinar questões de raça através de uma lente interseccional
que está atenta a classe, gênero, sexualidade e espaço urbano. Assim como o trabalho
de McCarthy, artistas como Ikem Smith, Varun Baker e Nile Saulter engajam modos
populares de luta e documentam táticas da vida cotidiana nas ruas de Kingston – uma
cidade representada frequentemente como um local distópico de extrema pobreza
e violência que é também um local vibrante de empreendedorismo, criatividade e
esperança para muitos de seus habitantes diários, muitas vezes silenciados. O que
é surpreendente em toda a arte incluída na mostra Novas Raízes – uma amostra
representativa do trabalho da geração mais jovem de artistas visuais jamaicanos – é
a ausência de qualquer alusão aberta à África. Enquanto isso, o Afrikan Vanguard
perdeu muito de sua força coesiva e muitos de seus membros deixaram o movimento.
Embora muitos da mais nova geração de artistas jamaicanos continuem a mostrar
uma dedicação à negritude, isto se articula na preocupação com outros marcadores
de identidade e precariedade da vida na Jamaica urbana, mais do que com qualquer
investimento discernível em pensar a África.
Ebony Patterson, uma jovem artista que se desloca entre a Jamaica e os Estados
Unidos, é, sem dúvida, a artista mais preocupada em repensar o social através das
lentes do gueto. Em suas cenas extravagantes e cuidadosamente construídas, Patterson explora a complexidade das vidas no gueto. Os principais protagonistas de
p. 213
Figura 3 (Untitled)
Disciple VII – (Sem
título) Discípulo VII – da
série Gangstas for Life
(Gangsteres até morrer),
Ebony Patterson, 2008.
Fotografia cedida pela
artista e pela Monique
Meloche Gallery, Chicago.
p. 214
seu trabalho são os ícones que representam gangsteres jamaicanos, como o badman
(“homem mau”), o rudebwoy (“cara rude”) e o don. O trabalho de Patterson oferece
uma exploração mais texturizada e em camadas dessas figuras infames, cuja vida é
geralmente reduzida a ideias mais simplistas sobre a violência. Em suas cenas, esses
jovens negros do gueto – tão raramente retratados em obras de arte anteriores – são
poderosos atores sociais, responsáveis por seu próprio futuro, que ajudam a moldar
uma nova estética jamaicana. Patterson critica o abandono e a violência de estado
que relega certos jamaicanos a um status sub-humano (por exemplo, em sua recente
série De 72 (Of 72), que retrata 72 homens mortos pelas forças de segurança jamaicanas
nos Jardins de Tivoli, um gueto de Kingston, em 2010). Suas obras de arte contradi13
zem retratos de “gente do gueto” que comumente justificam essa relegação. Uma
característica recorrente do trabalho de Patterson é a complexidade da estética do
gueto, com jovens recorrendo a um estilo que é hipermasculino, mas que também
envolve o clareamento do rosto e a incorporação de padrões de beleza considerados
femininos (ver, por exemplo, Figura 3).
Patterson também participou da primeira Bienal do Gueto (Ghetto Biennale) realizada no “gueto” haitiano de Grand Rue, Porto Príncipe, em 2009; uma bienal “concebida
para expor a imobilidade social, racial, de classe e geográfica” e que aspirava “conter
14
as sementes da possibilidade de transcender diferentes modelos de guetização”.
A participação de Patterson na Bienal sugere um contraste com o envolvimento de
Khalfani Ra com o Haiti: aqui, a conectividade jamaicano-haitiana é informada, não por
uma noção de africanidade compartilhada, mas por uma preocupação compartilhada
com a guetização e uma abordagem interseccional acerca das desigualdades urbanas. O trabalho de Patterson, que ecoa o de outros artistas da mostra Novas Raízes,
envolve questões de identidade racial e de classe como parte de um projeto político
contemporâneo, mas não oferece nenhum envolvimento forte com a África. Esse é um
novo tipo de ontologia política da negritude, que, impregnado de diferentes questões
do presente, coloca o gueto em primeiro plano como seu principal referente espacial.
O trabalho de Patterson e os vários artistas incluídos na exposição Novas Raízes
sugerem o surgimento de um imaginário visual rearticulado que não estava presente
na arte jamaicana anterior. Esta nova arte envolve ideias de raça e nação moldadas
pela precariedade, violência, criatividade e esperança que emergem dos bairros do
gueto de Kingston. Nos primeiros anos da arte jamaicana moderna, os artistas estavam
preocupados com a África e dedicados a um tradicionalismo que considerava o rural
e o folclórico como alicerces da “afro-jamaicanidade”; no período pós-independência,
p. 215
o projeto político de negritude dos artistas incluiu várias tentativas de recuperar a
África. Agora, o local da negociação está no símbolo do gueto, um espaço urbano de
precariedade racializada e, também, de formas de criatividade que desafiam identidades essencialistas.
Movimentos musicais da África ao gueto
Conforme exposto na seção anterior, dentro da arte visual jamaicana, diferentes
imaginários espaciais têm sido centrais para a negritude como ontologia política. Assim
como na arte visual, podemos distinguir dois imaginários espaciais distintos, ou lugares
conceituais, que desempenham um papel central nos enquadramentos da negritude
que emergem da música jamaicana. Um movimento semelhante de descentramento
da África é perceptível na música popular jamaicana no período pós-independência.
Enquanto a música reggae mais lenta e melódica das décadas de 1960 e 1970 demonstrou uma forte dedicação à África, o gênero mais recente de música dancehall
(uma forma de música eletrônica mais rápida que se assemelha ao hip hop) exibe um
15
interesse bem maior no espaço urbano do gueto. Esse engajamento crítico com o
gueto como foco principal pode ser entendido, por um lado, como uma expressão
de desilusão com a política pós-independência e, em particular, sua incapacidade de
melhorar a vida dos negros urbanos. Por outro lado, a mudança pode ser entendida à
luz do aumento do intercâmbio entre a cultura popular jamaicana e afro-americana.
Essas trocas não só permitiram a emergência de uma espécie globalmente conectada
de “contra-público”, com críticas sobre a pobreza urbana e a exclusão, mas também
produziram um mercado transnacional para a “música do gueto” (JAFFE, 2012). Nesta
seção, discutimos a interação entre representações não essencialistas e estrategicamente essencialistas da negritude na música popular contemporânea, com ênfase
em Vybz Kartel, um dos músicos de dancehall mais populares da Jamaica.
p. 216
Tanto o reggae quanto o dancehall foram enquadrados localmente como pertencentes a jamaicanos negros de classe baixa (e não a pardos de classe média)
(STOLZOFF, 2000; HOPE, 2001). A ênfase no caráter negro do reggae e do dancehall
pode ser vista como uma forma de essencialismo estratégico que serve um propósito
político, para mostrar às elites de pele clara que a fama da ilha se deve aos esforços
dos jamaicanos negros, geralmente dos bairros mais pobres de Kingston. Além disso,
o marketing do reggae e do dancehall como negro ou pan-africano também pode ter
sido um fator estratégico nas tentativas de obter sucesso comercial entre um público
global. Embora compartilhem uma ênfase na negritude, esses dois gêneros lidam de
maneira diferente com questões de enraizamento espacial e mobilidade.
Como observado acima, a música reggae de raiz tem olhado principalmente para
a África. A partir dos anos 1960 e 1970, essas representações musicais da negritude
tenderam a se basear no rastafári e em outras narrativas pan-africanistas que localizam
a África como o foco geográfico-emocional da identidade negra. Louis Chude-Sokei
(1994, p. 80) fala desta geração como uma “que ajudou a empuxar uma ‘África’ mítica
para a vanguarda da cultura popular negra nas Índias Ocidentais e, por meio da música
reggae e do rastafarianismo, no mundo”. Artistas rastafári cantaram repetidamente
sobre repatriação para “Sião” ou Etiópia. Além disso, a solidariedade política com
os negros sob o apartheid na África do Sul e com as lutas de libertação nacional na
Rodésia colonial e Moçambique desempenhou um papel importante nessas narrativas
afrocentradas. Como Peter Tosh, Bob Marley foi, claro, uma figura central nessa política
musical orientada em direção à África, com canções como Africa Unite, Zimbabwe e
16
War. Os elementos gráficos dos discos de sua geração também apresentavam várias
representações do continente africano (MORROW, 1999).
Nesses imaginários do reggae, a África não é apenas o espaço originário da negritude, mas também está associada à mobilidade em termos de exílio e retorno,
movimento forçado e voluntário, histórico e futuro. A preocupação do rastafári e do
reggae de raiz em comemorar o passado escravista da Jamaica e as origens africanas
da população jamaicana – e em relação a isso, os parâmetros de pertencimento
étnico-nacional jamaicano – enfatizaram o deslocamento forçado do passado de
escravidão, desenraizamento, mobilidade involuntária e migração. Este engajamento
com o deslocamento foi equilibrado pelo desejo rastafári de se reconectar por meio
da mobilidade voluntária, um desejo mais evidente na insistência de que “a repatriação
é uma obrigação”, que eventualmente rastafáris devem deixar a “Babilônia” e retornar
a Sião, na África.
Parte desse anseio pela África continua no trabalho de artistas contemporâneos
do reggae de raiz, como Tarrus Riley e Chronixx, que produziram canções de sucesso
com títulos como Africa Awaits, African Queen e African Heritage. Enquanto nas artes
visuais um menor envolvimento com a África é encontrado principalmente entre a
geração mais jovem, na música essa diferença de foco está menos relacionada à
geração do que ao gênero. Em contraste com o envolvimento dos artistas do reggae
de raiz com a África, os músicos do dancehall colocaram uma ênfase mais forte nos
espaços urbanos locais – e em particular nos espaços do “gueto” no centro da cidade
p. 217
da capital Kingston – como a localização espacial da negritude autêntica. Esse foco no
espaço urbano talvez seja explicado pelo parentesco musical do dancehall com o hip
hop, que compartilha essa forte ênfase na interseção de raça e espaço (ver ROSE, 1994;
FORMAN, 2002). Na Jamaica, as raízes da negritude urbana contemporânea a que o
dancehall se refere estão localizadas principalmente em Downtown Kingston (Baixa
de Kingston) e outras áreas urbanas marginalizadas em toda a ilha (STANLEY-NIAAH,
2010). O foco contemporâneo do dancehall nos guetos como espaços geradores de
negritude coloca em primeiro plano a condição de imobilidade social e física. Essa
ideia do gueto como um espaço de imobilidade é reforçada linguisticamente por
meio do termo área “proibida”: estranhos e até mesmo a polícia têm medo de entrar,
enquanto os “de dentro” não conseguem sair (JAFFE, 2012). Ao mesmo tempo, os guetos jamaicanos, assim como os assentamentos informais em todo o mundo, também
podem ser associados à mobilidade involuntária, com seus posseiros vulneráveis a
remoções à força.
p. 218
Essa ênfase do dancehall no espaço do gueto ganhou destaque em comparação
com a priorização musical anterior do continente africano. Até mesmo o rastafarianismo
e o gangsterismo do gueto se tornaram compatíveis, com artistas de dancehall como
Munga reivindicando o apelido de “gangsta Ras[ta]”. No entanto, isso não quer dizer
que a África tenha sido totalmente deslocada das negociações musicais jamaicanas
sobre raça e nação. Aqui, chamamos a atenção para a figura do artista de dancehall
Vybz Kartel e a alguns de seus trabalhos, com o fim de ilustrar como a ontologia
política da raça é negociada dentro da música jamaicana. Sua música oferece uma
visão sobre as maneiras pelas quais a negritude é essencializada e desconstruída, e
como ela é construída por meio dos temas de lugar e mobilidade. Vybz Kartel é um
dos artistas do dancehall de maior sucesso das últimas décadas e também um dos
mais polêmicos. No momento em que este artigo foi escrito, ele estava apelando de
sua condenação por envolvimento em assassinato. No entanto, ele já havia atraído
polêmica anos antes, após debates públicos em torno de sua prática de clareamento
de pele. Ele promoveu seu próprio clareamento com canções como Pretty Like a
Coloring Book e Cake Soap, mas permaneceu inflexível em reivindicar o orgulho negro.
Em uma palestra pública na Universidade das Índias Ocidentais (University of the West
17
Indies) em 2011, ele se proclamou seguidor do pan-africanista Marcus Garvey. Ele
defendeu seu branqueamento como uma forma de estilo, de auto-expressão, que
permitia que suas tatuagens aparecessem melhor, argumentando que: “branquear
hoje não significa o mesmo que branquear vinte e cinco anos atrás... Somos uma
raça muito mais orgulhosa, sabemos que podemos fazer o que queremos no que diz
respeito ao estilo, ditamos estilos e os respeitamos como exatamente isso – estilos.”
Sua defesa da prática “feminina” do gueto de branqueamento como compatível com
reivindicações de orgulho negro contrasta fortemente com a letra da regravação de
African com a qual começamos este artigo: “nunca quero descolorir essa melanina...
nunca trairei minha raça... tão preto quanto for, você deve permanecer”.
Entre as tatuagens de Vybz Kartel está a palavra “Gaza”, gravada nos nós dos dedos
de sua mão direita, que demonstra sua lealdade e enraizamento na comunidade
do gueto jamaicano com esse nome. Além dessa fidelidade corpórea ao gueto, o
pan-africanismo professado de Kartel é também visual, como se vê na capa de seu
álbum de 2006, j.m.t., em que uma imagem de seu rosto em perfil é mesclada com
uma imagem do continente africano – sugerindo que o branqueamento não é apenas
compatível com a negritude, mas também com a africanidade. Musicalmente, as
letras de Vybz Kartel ilustram as maneiras em que as imagens da negritude na cultura
popular se conectam a uma política ancorada em lugares, bem como a conceitos de
mobilidade e imobilidade. Aqui, para concentrar nossa discussão nessas imagens e
conceitos, nós nos voltamos a uma música em específico, Poor People Land (Terra dos
Pobres). No entanto, esses temas ecoam de forma ampla no discurso jamaicano atual
sobre pertencimento étnico-racial, no gênero dancehall e além.
Poor People Land
Mi cyaan believe it, government waan fi move mi
Mi turn refugee inna mi own country
But a long long time mi live yah so
Mi cyaan go no weh
Dem really tek poor people fi fool
Oh Mr. Babylon, a weh yu get da system yah from?
Bulldozer dung poor people land
Jah know seh mi nah vote again, no sah
Cause di mp don’t give a damn
A weh yuh get da system yah from
’Bout seh mi live ’pon squatter land
True mi don’t rich like Matalon, no sah
Mi a born Jamaican
Mi nah have no weh fi go
Mi born and mi grow yah so inna di ghetto
p. 219
Bigga heads, beg yu a bligh now
Mi cyaan buy a house up a Cherry Garden
Ashes to ashes, and dust to dust
Di tribulation inna di ghetto is a must […]
Mi know seh mi a born Jamaican
Mi deh yah from slavery as a African
Somebody tell mi weh Matalon come from?
Fi own so much land inna wi island, tell mi
Mr. Chin, go back a Japan
‘Cause Jah Jah mek yah fi di black man
Eu me tornei um refugiado em meu próprio país
Mas eu moro aqui há muito tempo
Eu não posso ir a lugar nenhum
Eles realmente pensam que os pobres são burros
Oh Sr. Babylon, que tipo de sistema é esse?
Você demole a terra dos pobres
Jah sabe que não vou votar de novo, não senhor
Eu não posso acreditar, o governo quer me remover
Porque o político não dá a mínima
Que tipo de sistema é esse
Dizendo que eu moro em terras irregulares
Porque eu não sou rico como Matalon, não senhor
Eu nasci jamaicano
Eu não tenho para onde ir
Eu nasci e cresci bem aqui no gueto
Pessoal responsável, estou pedindo um favor
Não posso comprar uma casa em Cherry Gardens
De cinzas a cinzas e do pó ao pó
Eu sei que nasci jamaicano
Eu estou aqui desde a escravidão como um africano
Alguém me diga de onde veio Matalon?
Para possuir tantas terras em nossa ilha, diga-me
Sr. Chin, volte para o Japão
Porque Jah Jah fez este lugar para o homem negro
p. 220
Lançada em 2011, Poor People Land conecta os temas expostos acima, narrando as
relações dos negros pobres com a terra e o lugar, com a mobilidade e a imobilidade. A
música começa com uma declaração forte sobre o movimento involuntário no contexto
dos assentamentos urbanos: “Não posso acreditar, o governo quer me remover / Eu
me tornei um refugiado em meu próprio país”. Kartel prossegue com uma declaração
política em que se refere especificamente a um tipo específico de enraizamento nacional e urbano que se relaciona com a imobilidade dos afro-jamaicanos marginalizados:
“Sou jamaicano de nascença... nasci e cresci bem aqui no gueto.” Esta maneira de
reivindicar direitos – através do pertencimento nacional e por meio da imobilidade
urbana – é reforçada precisamente por uma referência à história de migração forçada
de seus ancestrais: “Eu sei que nasci jamaicano / Eu estou aqui desde a escravidão
como um africano.” Ao mesmo tempo em que centraliza a marginalidade urbana
como o principal alicerce da jamaicanidade, Kartel conecta essa espacialidade à raça
e às raízes africanas. Isso se torna evidente em sua oposição ao privilégio das elites
não-afrodescendentes – e na negação de suas reivindicações de pertencimento. Ao
perguntar a “Matalon” (um conhecido sobrenome judeu jamaicano associado à riqueza)
de onde ele é e ao mandar o Sr. Chin (apelido metonímico usado para indicar uma
pessoa rica de ascendência asiática) voltar para o Japão, Kartel localiza a África como
o local histórico original do pertencimento jamaicano, mesmo quando ele afirma que
o gueto é o local contemporâneo para tais vindicações.
Vários comentaristas lamentaram o afastamento dos temas mais “conscientes” do
reggae de raiz, em favor de preocupações associadas ao dancehall, que centraliza
bens materiais, violência e sexo. Louis Chude-Sokei (1994, p. 80-81), por exemplo,
argumenta que a música popular jamaicana foi:
de uma estética do exílio e da ausência a uma estética da presença bruta e materialista. … Enquanto na cultura rastafári, assim como em outras formas populares
de Negritude, sempre houve algum grau de nostalgia por uma África pré-colonial
/ pré-industrial / pré-capitalista, a cultura [dancehall] é muito voltada para o futuro
e voltada para o capitalismo – como a maioria dos negros, apesar das fantasias de
muitos líderes nacionalistas autoproclamados.
Em vez de condenar ou descartar a estética dancehall do gueto como grosseira
ou superficial, sugerimos que é precisamente seu envolvimento com as realidades
urbanas contemporâneas que dá ao gênero sua atualidade, dentro e fora da Jamaica.
Como Ebony Patterson, ainda que de uma posição distinta e por meios diferentes,
artistas de dancehall como Vybz Kartel exploram o significado de ser negro e jamai
Lançada em 2011, Poor People Land conecta os temas expostos acima, narrando as
relações dos negros pobres com a terra e o lugar, com a mobilidade e a imobilidade. A
música começa com uma declaração forte sobre o movimento involuntário no contexto
dos assentamentos urbanos: “Não posso acreditar, o governo quer me remover / Eu
p. 221
me tornei um refugiado em meu próprio país”. Kartel prossegue com uma declaração
política em que se refere especificamente a um tipo específico de enraizamento nacional e urbano que se relaciona com a imobilidade dos afro-jamaicanos marginalizados:
“Sou jamaicano de nascença... nasci e cresci bem aqui no gueto.” Esta maneira de
reivindicar direitos – através do pertencimento nacional e por meio da imobilidade
urbana – é reforçada precisamente por uma referência à história de migração forçada
de seus ancestrais: “Eu sei que nasci jamaicano / Eu estou aqui desde a escravidão
como um africano.” Ao mesmo tempo em que centraliza a marginalidade urbana
como o principal alicerce da jamaicanidade, Kartel conecta essa espacialidade à raça
e às raízes africanas. Isso se torna evidente em sua oposição ao privilégio das elites
não-afrodescendentes – e na negação de suas reivindicações de pertencimento. Ao
perguntar a “Matalon” (um conhecido sobrenome judeu jamaicano associado à riqueza)
de onde ele é e ao mandar o Sr. Chin (apelido metonímico usado para indicar uma
pessoa rica de ascendência asiática) voltar para o Japão, Kartel localiza a África como
o local histórico original do pertencimento jamaicano, mesmo quando ele afirma que
o gueto é o local contemporâneo para tais vindicações.
Vários comentaristas lamentaram o afastamento dos temas mais “conscientes” do
reggae de raiz, em favor de preocupações associadas ao dancehall, que centraliza
bens materiais, violência e sexo. Louis Chude-Sokei (1994, p. 80-81), por exemplo,
argumenta que a música popular jamaicana foi:
de uma estética do exílio e da ausência a uma estética da presença bruta e materialista. … Enquanto na cultura rastafári, assim como em outras formas populares
de Negritude, sempre houve algum grau de nostalgia por uma África pré-colonial
/ pré-industrial / pré-capitalista, a cultura [dancehall] é muito voltada para o futuro
e voltada para o capitalismo – como a maioria dos negros, apesar das fantasias de
muitos líderes nacionalistas autoproclamados.
Em vez de condenar ou descartar a estética dancehall do gueto como grosseira
ou superficial, sugerimos que é precisamente seu envolvimento com as realidades
urbanas contemporâneas que dá ao gênero sua atualidade, dentro e fora da Jamaica.
Como Ebony Patterson, ainda que de uma posição distinta e por meios diferentes,
artistas de dancehall como Vybz Kartel exploram o significado de ser negro e jamaicano no século XXI. Embora a afinidade com a África permaneça (e muitos artistas
p. 222
de dancehall já tenham se apresentado na África), uma identidade negra é menos
imutavelmente fixada na cor da pele e muito mais diretamente ligada à autenticidade
urbana. As reivindicações de negritude e jamaicanidade tornaram-se mais explicitamente interseccionais, abordando não apenas questões de classe e gênero, mas
também de espaço urbano e mobilidade.
Conclusão
Como Patterson e Kelley (2000, p. 31) argumentam em seu artigo seminal sobre a
construção histórica da diáspora africana, “precisamos ir além das narrativas unitárias
de deslocamento, dominação e construção da nação que se concentram na expansão
europeia e na ascensão do capitalismo ‘racial’”. Eles clamam pelo reconhecimento de
que “a África – real ou imaginária – não é a única fonte do internacionalismo ‘negro’,
mesmo para aqueles movimentos que abraçam uma retórica nacionalista ou pan-africana” (ibid., p. 32). Neste artigo, destacamos a espacialidade das ontologias políticas
da negritude na Jamaica, observando um descentramento da “África” como o principal
referente espacial nas críticas visuais e musicais das exclusões e desigualdades raciais
da ilha. A relação entre “ser negro” e “ser africano” na Jamaica, como em outros lugares, sempre foi instável e continua a mudar no século XXI. Em contraste com o que
o historiador da arte Petrine Archer-Straw (2004), citado anteriormente neste artigo,
postulou, argumentamos que os artistas visuais e músicos jamaicanos contemporâneos não estão (ou pelo menos não estão mais) “procurando desesperadamente a
África”. Isso também vai de encontro com alguns dos outros casos discutidos nesta
edição especial, em que as autodefinições são cada vez mais articuladas em termos
de africanidade. Em vez disso, sugerimos que a negritude no presente jamaicano se
voltou para um novo local espacial de pertencimento étnico-nacional, desenvolvendo
suas “novas raízes” no gueto e desenhando conexões com guetos fora da Jamaica
como novas fontes potenciais de internacionalismo negro.
Neste artigo, exploramos como as noções essencialistas e não-essencialistas da
negritude figuram na música popular e na arte contemporânea jamaicanas. Acreditamos que as imaginações contemporâneas da negritude devam ser localizadas dentro
de trajetórias históricas em que a retórica política formal e as contestações da cultura
popular estão em constante diálogo. Na Jamaica, à medida que a política cultural se
afastava do nacionalismo crioulo multirracial, reivindicar a negritude tornou-se cada
vez mais crucial para o ser jamaicano. Partindo de uma perspectiva atenta aos imagi-
p. 223
nários geográficos que informam a política de identidade afro-jamaicana, vemos que
a importância de “ser africano” vem mudando nas últimas décadas, com a localização
geo-emocional da negritude fazendo referência ao gueto, além do continente africano.
Expressões culturais recentes demonstram negociações menos essencialistas de
pertencimento à negritude, nas quais o branqueamento da pele e o orgulho negro
não são necessariamente vistos como incompatíveis. No entanto, também notamos
as lutas estrategicamente essencialistas por direitos econômicos e políticos com base
em identidades étnico-nacionais e espaciais.
Essa mudança na orientação primária do pertencimento ocorreu dentro de um
contexto nacional em transição, onde a pobreza e a violência urbanas eclipsaram a
soberania nacional como preocupação primeira. Além disso, esta trajetória se deu em
um contexto de intensos fluxos migratórios da Jamaica para cidades norte-americanas
e em um mundo musical e artístico cada vez mais interconectado globalmente. Dentro
desses circuitos transnacionais, o diálogo com a negritude “urbana” estadunidense
tem tido uma importância crescente, e as Bienais do Gueto e o marketing de “música
de gueto” passaram a apresentar novas possibilidades comerciais. As políticas de
lugar em que o gueto se torna um importante referente espacial para a negritude se
cruzam com narrativas e práticas de mobilidade e imobilidade. O movimento global
dos jamaicanos os conectou a uma rede transnacional de espaços urbanos, caracterizados por uma condição comum de lutas racialmente marcadas e pela percepção de
imobilidade. A antiga ênfase no exílio e no retorno à África, comum à ideologia rastafári
pan-africana de meados ao final do século XX, foi reconfigurada por esse novo tipo
de movimento e “re-enraizamento”. No entanto, atender a essas novas raízes não é
de forma alguma incompatível com a atenção às formas contínuas em que a África
informa as interseções entre “ser negro” e “ser jamaicano”.
Notas
1
p. 224
Nota dos Editores (N.E.): A versão original deste artigo foi publicada em 2014
com o título na revista African Diaspora,
n. 7, 2014, p. 234 - 259. A publicação é
de acesso livre sob a licença Creative Commons e está disponível em: https://brill.
com/view/journals/afdi/7/2/article-p234_4.
xml?language=en.
2
Nota da tradutora (N.T.): A Jamaica está
dividida em catorze “paróquias” – unidades
administrativas análogas a estados.
3
A letra da segunda música expressa o
desejo de Tosh de se reconectar à África
como a pátria-mãe, como indicam os versos a
seguir: “Eles me tiraram de você, Mamãe África, muito antes de eu nascer... Eles tentam
te esconder, mamãe, mas eu te procuro e te
encontro... Eu estive esperando, ansiando,
procurando, buscando te encontrar”.
7
4
http://nationalgalleryofjamaica.wordpress.com/tag/rex-nettleford-arts-conference/. Acesso em: 21 set. 2014.
Na vida cotidiana na Jamaica, as identidades raciais são um tanto fluidas, ou pelo
menos mediadas por uma série de outros fatores, incluindo classe, gênero e localização e
mobilidade espacial. Na política jamaicana,
reivindicações relacionadas à raça costumam ser apresentadas com um pouco mais de
rigidez.
5
Isso pode estar relacionado às mudanças
entre o movimento rastafári e o estado da
Jamaica. O movimento não é mais demonizado
pelo estado, que agora destaca a contribuição
(e o potencial comercial) do rastafári em
seu documento de política cultural nacional
de 2003 “Rumo à Jamaica, o Superestado Cultural” (ver MODEST, 2011), por exemplo. Além
disso, o movimento rastafári, que costumava
ser antagônico ao estado jamaicano, passa, no
século XXI, a colaborar com o desenvolvimento
do turismo propagado pelo estado, e até mesmo
a disputar eleições através de candidatos
afiliados a partidos políticos estabelecidos.
6
O posicionamento racial de artistas individuais também influenciou a relação entre
seus projetos artísticos e políticos. Por
exemplo, vários jamaicanos identificados como
brancos, incluindo David Boxer e Laura Facey,
se interessaram pela recuperação da herança
africana na Jamaica e em sua própria ancestralidade. Embora esses artistas possam ser
criticados por omitir sua própria posição
historicamente privilegiada, queremos enfatizar aqui a importância dessas imagens de
raízes negras e africanas para negociações
recentes de identidade e pertencimento na
Jamaica.
Entrevista com Wayne Modest, 2007. A
permissão para o uso do nome e da citação
foi concedida pelo artista.
8
9
Esses novos modos incluíram “uma forte
ênfase na reportagem fotográfica; reflexões
autobiográficas e intervenções sociais provocantes; novas interrogações sobre gênero e
corpo; um realismo às vezes implacável, mas
também uma capacidade para a poesia visual
imaginativa; experimentação com projeção de
vídeo, animação e interatividade; e um crescente desrespeito pelas noções convencionais
sobre o ‘objeto de arte’ e as disciplinas
artísticas tradicionais e segregadas”(POUPEYE, 2013).
10
http://nationalgalleryofjamaica.
wordpress.com/2013/09/14/new-roots-an-invitation-todialogue/; ver também: http://
arcthemagazine.com/arc/2013/09/the-national-gallery-of-jamaica -presents-new-roots-an-invitation-to-dialogue/. Acesso em: 21
set. 2014.
11
Todas as citações foram retiradas da página http://arcthemagazine.com/arc/2013/09/
the-national-gallery-of-jamaicapresents-new-roots-an-invitation-to-dialogue/.
12
13
Correspondência pessoal com Wayne Modest, Setembro de 2014.
Mais sobre a série Of 72 em Patterson
(2012); Ellis (2014, p. 170-171) e http://
anniepaul.net/2012/03/17/who-were-the-tivoli-73-a-preview-of-ebony-gpattersons-of-72/.
14
Ver http://ghettobiennale.org/.
p. 225
15
Embora existam vários gêneros musicais surgidos na Jamaica, os dois principais
gêneros relevantes aqui são a música reggae
de raiz, mais comumente associada ao país,
e o dancehall, que só surgiu na década de
1980. Atualmente, o dancehall é o gênero
mais popular de música na Jamaica, embora os
artistas de reggae de raiz ainda desfrutem
de uma popularidade considerável e haja uma
série de artistas que gravam canções em ambos
os gêneros musicais.
16
Gilroy (2005) oferece uma discussão
detalhada do posicionamento de Marley vis-à-vis o continente africano e sua diáspora.
17
Vídeos da palestra foram publicados em
http://theislandvibes.com/video/vybz-kartel-uwilecture-very. Para uma discussão sobre a
palestra e a política de pele de Vybz Kartel,
consulte http://anniepaul.net/2011/03/11/i-decided-to-make-my-skin-a-living-breathing-canvas-vybzkartel-at-uwi/.
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p. 227
Cidade, relações
de gênero e raça:
Salvador, o direito à cidade
e os movimentos sociais
Antonia dos Santos Garcia
NEIM / UFBA
Cidade, relações de gênero e raça: Salvador,
o direito à cidade e os movimentos sociais
Resumo
As cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização
espacial colonial-escravista-capitalista, mantêm suas contradições
históricas e contemporâneas, sendo que os diversos agentes sociais
da cidade não tratam, com a centralidade e interseccionalidade
necessárias, o racismo, o sexismo e o classismo como o tripé das suas
estruturas, conforme propõem diversos movimentos sociais de diferentes
correntes políticas de esquerda. Este artigo, além do contexto das
desigualdades resultantes dessas estruturas, procura refletir sobre
as experiências dos movimentos sociais que emergiram nas sociedades
capitalistas contemporâneas de grandes desigualdades econômicas,
políticas, sociorraciais, de classe, de gênero e de geração, entre
outras. Estas experiências colocam, na agenda das sociedades-cidades,
questionamentos sobre estas temáticas, especialmente os movimentos
sociais urbanos que trouxeram à cena política os bairros populares
e favelas, onde as mulheres negras tornaram-se protagonistas das
lutas pelo direito à cidade. Estes questionamentos, todavia, ainda
se dão de forma fragmentada, sem um projeto de cidade-sociedade que
questione e combata a base da estrutura social racista, sexista,
classista. Apesar do crescimento dos movimentos de mulheres negras,
populares e indígenas, que têm contribuído com os questionamentos no
interior dos movimentos sociais e das ciências sociais -, estes ainda
não têm centralidade para o enfrentamento de todas as dimensões da
dominação, sobretudo se levados em consideração estudos impregnados
de eurocentrismo e políticas públicas inexistentes ou desintegradas.
Através de Salvador, como a cidade mais cultural e demograficamente
negra, a mais negra da diáspora africana, vamos refletir sobre seu
perfil sócio-histórico e suas lutas antiescravistas-colonialistas e
contemporâneas urbanas, nas quais as mulheres negras sempre tiveram
relevante protagonismo. Além disso, vamos analisar as desigualdades
sociorraciais do sistema de educação, com recorte de gênero e raça.
Palavras-chave: Patriarcado, Racismo,
Capitalismo, Desigualdades, Cidade
Ciudad, género y relaciones raciales:
Salvador, el derecho a la ciudad
y los movimientos sociales
Resumen
Las ciudades latinoamericanas y caribeñas y su organización espacial
colonial-esclavista-capitalista mantienen sus contradicciones
históricas y contemporáneas, pero los diversos agentes sociales de la
ciudad no abordan, con la necesaria centralidad yinterseccionalidad,
el racismo, el sexismo y el clasismo como trípode de sus estructuras,
como lo proponen varios movimientos sociales de distintas corrientes
políticas de izquierda. Este artículo, además del contexto de
desigualdades resultantes de estas estructuras, busca reflexionar
sobre las experiencias de los movimientos sociales surgidos en las
sociedades capitalistas contemporáneas de grandes desigualdades
económicas, políticas, socio-raciales, de clase, de género y
generacionales, entre otras, y que ponen en la agenda de sociedadesciudades preguntas sobre estos temas, especialmente los movimientos
sociales urbanos que llevaron a la escena política los barrios
populares y las favelas, donde las mujeres negras se convirtieron en
protagonistas de las luchas por el derecho a la ciudad. Estas preguntas,
sin embargo, todavía ocurren de manera fragmentada, sin un proyecto de
ciudad-sociedad que cuestione y combata la base de la estructura social
racista, sexista, clasista. A pesar del crecimiento de los movimientos de
mujeres negras, populares e indígenas, que han contribuido a cuestionar
los movimientos sociales y las ciencias sociales, los estudios impregnados
de eurocentrismo y las políticas públicas inexistentes o desintegradas
para enfrentar todas las dimensiones de la dominación no tienen
centralidad. A través de Salvador, como la ciudad más negra cultural y
demográficamente, la más negra de la diáspora africana, reflexionaremos
sobre su perfil socio-histórico y sus luchas anti-esclavitud-colonialistas
y luchas urbanas contemporáneas donde las mujeres negras siempre han
jugado un papel importante. Además, analizaremos las desigualdades socioraciales en el sistema educativo, con un enfoque de género y raza.
Palabras clave: Patriarcado, Racismo, Capitalismo, Desigualdades, Ciudad.
City, gender and race relations: Salvador,
the Right to the City and Social Movements
Abtract
Latin American and Caribbean cities and their colonial-slave-capitalist
spatial organization maintain their historical and contemporary
contradictions, but the various social agents in the city do not deal,
with the necessary centrality and intersectionality, with racism, sexism
and classism as the tripod of its structures, as proposed by various
social movements from different political currents of the left. This
chapter, in addition to the context of inequalities resulting from these
structures, seeks to reflect on the experiences of social movements that
emerged in contemporary capitalist societies of great economic, political,
socio-racial, class, gender and generational inequalities, among others,
and put on the agenda of societies-cities issues about these themes,
especially urban social movements that brought popular neighborhoods and
favelas to the political scene, where black women became protagonists
in the struggles for the rights to the city. These issues, however,
still occur in a fragmented way, without a city-society project that
questions and combats the base of the racist, sexist, classist social
structure. Despite the growth of black, popular and indigenous women’s
movements, which have contributed to questions within social movements
and social sciences, studies impregnated with Eurocentrism and nonexistent or disintegrated public policies to confront all dimensions of
domination have not centrality. Through Salvador, as the most culturally
and demographically black city, the blackest in the African diaspora, we
will reflect on its socio-historical profile and its anti-slavery-colonialist
struggles and contemporary urban struggles where black women have always
played an important role. In addition, we will analyze the socio-racial
inequalities in the education system, with a focus on gender and race.
Keywords: Patriarchy, Racism, Capitalism, Inequalities, City
Negritude:
O despertar de dignidade,
rejeição da opressão,
lutar contra a desigualdade.
Aimé Cesaire.
Introdução
cidade patriarcal e racista não tem em geral sido
objeto dos estudos urbanos, exceto por algumas
1
urbanistas, geógráfas e sociólogas feministas.
Mesmo assim, os maiores avanços que ocorrem
nesta perspectiva se encontram na literatura
internacional. Entre elas, Alejandra Massolo (1992), que
organiza uma coletânea cuja abordagem trata da questão
da mulher na vida urbana em vários aspectos e aponta
para questões de ordem teórico-metodológica que preside os estudos:
A
Uma cultura
Com uma metodologia de omissão, implicitamente opera uma
hierarquização “entre principal-secundário, superior-inferior, público-privado,
que aplicado sobre o gênero
das pessoas sobre qualquer
categoria
social,
fenômeno, práticas sociais, atores
históricos distorce a produção do conhecimento científico, as interpretações e debate (MASSOLO, 1992, p. 12).
v.2 n.1
p. 228-259
2023
ISSN:
2965-4904
Para Roccio Castro (1992, p.13), uma vez entendida a
questão do gênero como uma relação de poder primária
na vida social, o que significa a subordinação da mulher ao
homem, o questionamento das outras relações de poder
não só é necessário, mas inevitável: as relações de classe e raça implicam relações de
poder exercido pelas classes dominantes sobre as classes populares e o exercício de
2
raça dominante sobre “minorias” étnicas e raciais . O modelo de estudos e configurações das cidades construídas e consolidadas ao longo dos séculos XIX e XX ignorou
que o conjunto de cada população e de cada sociedade como homogêneo resultou e
resulta na invisibilidade das mulheres, sobretudo nas sociedades mais pobres e negras.
As cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização espacial colonial-escravista, exibem suas contradições históricas e contemporâneas, mas os diversos
agentes sociais da cidade não tratam estas com a centralidade e interseccionalidade
necessárias para compreender e alterar tais estruturas da colonialidade do poder
contemporâneo, conforme a perspectiva de Aníbal Quijano:
A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e
eurocentrado como um novo padrão de poder mundial.
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a
classificação social da população mundial de acordo
com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e
que desde então permeia as dimensões mais importantes
do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo(QUIJANO, 2005, p. 2).
3
Por outro lado, Lugones (2014, p. 940) propõe descolonizar o gênero, fazendo “[...]
uma crítica à opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada
visando uma transformação vivida do social” e afirma:
A modernidade organiza o mundo ontologicamente em
termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis. A crítica contemporânea ao universalismo feminista feita por mulheres de cor e do terceiro mundo
centra-se na reivindicação de que a intersecção entre
raça, classe, sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade. Se mulher e negro são termos
para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis,
então sua intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras – e não sua presença. Assim, ver mulheres não brancas é ir além da lógica “categorial”.
Proponho o sistema moderno colonial de gênero como
uma lente através da qual aprofundar a teorização da
lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de
p. 233
dicotomias hierárquicas e de lógica categorial. Quero
enfatizar que a lógica categorial dicotômica e hierárquica é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade. Isso
me permite buscar organizações sociais nas quais pessoas têm resistido à modernidade capitalista e estão
em tensão com esta lógica. (LUGONES, 2014, p. 935).
Corroborando com a crítica à colonialidade do poder, do ser e do saber, e possíveis
rupturas epistemológicas insubmissas, feministas negras, decoloniais e experiências
do feminismo negro, Ângela Figueiredo propõe:
[...] resgatar reflexões sobre os percursos teórico-metodológicos do feminismo negro realizados nos últimos
anos destacando as principais mudanças e apontando
alguns fatores que contribuíram para a emergência de
uma nova epistemologia feminista negra. O contexto
político e social em que tais movimentos se inscrevem é, efetivamente, propiciado pelas conquistas do
movimento negro a partir dos anos de 1980, atrelado
às políticas sociais implementadas pelo governo petista, tais como, a expansão do número de universidades públicas e a implementação das políticas de
ações afirmativas, possibilitando que um maior número
de professores e alunas e alunos negros adentrassem a
universidade. Esse ingresso contribuiu para a formação de coletivos negros dentro e fora das universidades, que efetivamente estreitaram laços e alianças
com os movimentos sociais, notadamente o movimento de
mulheres negras (FIGUEIREDO, 2020, p. 3).
Sandra Almeida (2019), por sua vez, traz uma relevante contribuição ao debate sobre
a questão, analisando as críticas feministas e as teorias pós/descoloniais quando afirma:
p. 234
Se podemos dizer, por um lado, que o pós-colonialismo se fortalece com a interrupção ocasionada pelos
estudos feministas, por outro lado, podemos salientar como a crítica feminista, questionada há algum
tempo por seu branqueamento e seu ocidentalismo, tem
sido insistentemente levada a refletir, pelas próprias críticas feministas e pelo debate ampliado pelas discussões trazidas pelo pós-colonialismo e mais
recente pelas teorias descoloniais, sobre a categoria
universalista da mulher, abrindo caminho para se teorizar novas formas de se pensar o lugar das mulheres
na contemporaneidade, a falácia da universalidade, a
diferença entre as mulheres, os vários sujeitos do
feminismo, a transversalidade do gênero, entre outros
(ALMEIDA, 2019, p. 88).
Enfrentar as três bases principais da colonialidade: poder, saber e ser, proposto
por autores e autoras com os quais dialogamos, pressupõe desconstruir o poderoso e
hegemônico aparato político, ideológico, econômico, etc., nas sociedades latino-americanas e caribenhas da diáspora negra. Nesta perspectiva, nossa proposta analisa as
relações de gênero, raça/etnia, espaço e poder no mundo contemporâneo, que são
étnica e culturalmente diversas, se expressam no urbano em diferentes dimensões
e precisam de outras metodologias como propõe o feminismo, especialmente negro
e popular, que aponta as lacunas do feminismo eurocentrado.
No caso das correntes marxistas, Harvey (2006, p. 20), ao analisar a crise do materialismo histórico, aponta para a necessidade de uma concepção dinâmica deste
e da teoria, para apreender o significado das mudanças que já vinham ocorrendo na
economia, na política, na natureza das funções do Estado, nas práticas culturais e na
dimensão do tempo-espaço em que as relações sociais e os sujeitos sociais devem
ser avaliados. Henri Lefebvre, nesta perspectiva, em sua obra pioneira sobre o direito
à cidade “Le droit à la ville”, publicada na década de 1960, é uma referência para
pensar o urbano e a cidade de forma mais ampla, através da práxis. Esse conceito, hoje
popularizado globalmente, torna-se referência tanto para as ciências sociais como
para os movimentos sociais contemporâneo, e sua relevância pode ser confirmado
4
pela decisão do Fórum Urbano Mundial:
Adotar o “Direito à Cidade’ como marco referencial
para modificar a realidade urbana por meio da construção de cidades mais humanas, democráticas e sustentáveis resultou na sua escolha como temática conceitual
e estratégica do Fórum Urbano Mundial 5, que será
realizado em março de 2010 no Brasil, na cidade do Rio
de Janeiro. Essa definição visa não mais o debate para
o estabelecimento deste Direito, seu reconhecimento
e correlatos, mas sim, para o que os Governos fazem
ou podem fazer para garantir sua efetivação, por meio
de regulamentações, programas, ações, projetos, políticas, bem como a visão dos interessados sobre esses
esforços concretos, discursos, e que direitos ainda
não foram atendidos pelas Políticas Públicas (UN-HABITAT, 2010).
p. 235
As lacunas do marxismo, apontadas por diversas correntes feministas, inclusive,
representam um estímulo à busca de novos caminhos, novas epistemologias, novos
paradigmas que compreendam a pluralidade do social e, portanto, a outra parte da
humanidade: as mulheres de todas as raças, de todas as classes, mas entendidas nas
suas especificidades.
Por outro lado, Ana Alice Costa (1998), ao analisar a construção do pensamento
feminista sobre o “não poder” das mulheres, embora também se associe às críticas
dessas lacunas, lembra:
A primeira tentativa de explicar, de forma sistematizada, longe dos não biologismos, as causas da
condição da subordinação da mulher nas sociedades
modernas foi feita por Kal Marx e Frederico Engels.
Partindo da premissa de que a condição de dependência da mulher não é fruto da sua natureza feminina e
sim o resultado de todo um processo histórico ligado
ao desenvolvimento das forças produtivas e em consequência deste, da própria evolução da família (COSTA,
1998, p. 19-20).
Nesse sentido, as lacunas apontadas devem nos conduzir à apreensão da cidade e
do urbano, cada vez mais dominada pelo capital, compreendê-las nas suas múltiplas
dimensões, inclusive, as espaciais que são pouco tratadas. Portanto, enfrentar a questão é um enorme desafio tanto para as Ciências Sociais quanto para os Movimentos
Sociais que lutam pelo direito à cidade, por uma cidade de fato democrática. Todavia,
embora nem todos os autores e autoras como Henri Lefebvre (1991), David Harvey
(2006), Florestan Fernandes (1965), Clóvis Moura (1988), Otávio Ianni (1987), Milton
Santos (2002), Manuel Castells (1983), entre outros e outras, tenham dado, nas suas
obras, centralidade às questões mencionadas, nos oferecem a possibilidade de análise
dos mecanismos de dominação social e dos desafios à democratização da cidade
a partir das lutas sociais de múltiplas dimensões que cobrem o papel do Estado na
promoção do direito à cidade de todas as pessoas, como direitos humanos.
p. 236
Brasil negro e seus
paradoxos passados e presentes
Refletir sobre a insuficiência dos macro sistemas explicativos das realidades sociais
que produziram, nas últimas décadas, questionamentos importantes, sobretudo nas
Ciências Humanas e Sociais, nos permite compreender como o racismo e o sexismo,
historicamente, têm moldado as sociedades em geral e, particularmente, a brasileira.
Estes questionamentos têm tentado superar diversas dicotomias: economicismo e
culturalismo, superior-inferior, público-privado, passando a trabalhar a indeterminação
histórica, o campo amplo das mediações com análises mais dialéticas. Como mostra
Thomas Skidmore - estudioso do pensamento das elites brasileiras do século XIX, a
história do racismo é longa e, de acordo com ele, persistente até hoje, sobretudo a
partir de 1860:
De um lado, os movimentos abolicionistas triunfaram
por todo o mundo do Atlântico Norte, e, finalmente,
até o Atlântico Sul. No entanto, nesse exato momento
em que a escravidão recuava sob o impacto das mudanças econômicas e o da pressão moral, pensadores
europeus ocupavam-se em sistematizar as teorias das
diferenças inatas (SKIDMORE, 1976, p. 65).
Essa ‘ideologia do branqueamento’ obteve apoio de governos, intelectuais e todos
os grupos hegemônicos da sociedade” (BENTO, 1999, p. 30).
Analisando a Figura 1, sobre a evolução da população brasileira de 1972-1991, fica
claro que as elites escravocratas brasileiras atravessaram séculos com sua política
de branqueamento da sociedade e a exclusão negra e indígena. Costa Pinto (1998,
p. 71) mostra a tendência de branqueamento da população brasileira desde o século
XIX, quando a imigração européia se intPor outro lado, Octávio Ianni (1987, p. 344-47)
aponta três marcos históricos da formação brasileira, que têm implicações na formação
da nacionalidade e da relação entre a questão racial e a identidade nacional: (1) a
Declaração da Independência, em 1822, (2) a Abolição da Escravatura, em 1888, e (3)
a Revolução de 1930. Estas datas, todavia, marcaram apenas o momento inicial em
que a sociedade se põe diante de problemas, tais como: (1) raça, mestiçagem e população, povo e cidadão; (2) terras devolutas, indígenas, ocupadas, griladas, tituladas;
(3) províncias, Estados, o Estado nacional; (4) região e nação, etc.
p. 237
Figura 1: Evolução da População Brasileira Segundo a Cor -1872/1991.
Fonte: Elaborado pela autora com base em João José Reis/IBGE, 2007.
Para o autor, o abolicionismo e a política de incentivo à imigração europeia alteram o
quadro inicial, com a valorização crescente do europeu. Com a Abolição da Escravatura
e a Proclamação da República, o poder estatal passa para a hegemonia da oligarquia
cafeeira. Em decorrência disso, acontece uma alteração fundamental no enfoque
da questão racial brasileira com a ruptura representada pela Revolução de 1930 e
o delineamento das interpretações mais importantes do problema racial brasileiro:
5
6
formula-se a tese da democracia racial; desenvolve-se o indigenismo; coloca-se o
problema racial no âmbito da reflexão da sociedade de classes (IANNI, 1987, p. 344-347).
p. 238
Comparando o Brasil, no interior da América Latina, Hasenbalg (1992, p. 52) aponta
dois eixos em torno dos quais se estabelecem as semelhanças entre o Brasil e as
outras sociedades latino-americanas: a) a concepção desenvolvida por elites políticas
e intelectuais a respeito de seus próprios países, supostamente caracterizados pela
harmonia e tolerância, e ausência de preconceito e discriminação racial (concepção
que coexiste, em todos os casos, com a subordinação social ou virtual desaparição dos
descendentes de africanos); b) o embranquecimento, entendido tanto como projeto
nacional implementado por políticas de povoamento e imigração, como em termos
da obsessão em representar as respectivas sociedades como essencial ou predominantemente brancas e de cultura hispânica ou, de forma mais inclusiva, européia. De
acordo com Bento (1999), entre 1870 e 1930, tivemos um grande crescimento das
teorias racistas que pregavam o cruzamento inter-racial como forma de resolver o
problema de um país negro e mestiço, “Essa ensificou às custas dos cofres públicos:
os brancos, que representavam 38,11% da população em 1872, passam a 63,52%, em
1940, enquanto os de cor (pretos e pardos) diminuíram para 35,88%.
De fato, o crescimento da população branca, desde o processo de imigração
intensiva de europeus no século XIX, é resultado da estratégia de branqueamento das
elites a partir da crise do escravismo, do movimento abolicionista, da substituição da
mão de obra escrava pela livre quando o negro e o mulato perdem, gradativamente,
espaço para o imigrante branco europeu. Mas, segundo Ianni (1987, p. 23), a abolição
e o próprio abolicionismo explicam apenas parcialmente a transformação do escravo
em trabalhador livre. Para o autor, os processos econômicos e sociais, responsáveis
pela expulsão do escravo da esfera dos meios de produção, são os mesmos que
provocam o afluxo de imigrantes e, em menor escala, o deslocamento de caboclos
e roceiros para as fazendas de café e para os núcleos urbanos.
Os caminhos percorridos pela sociedade brasileira na difícil construção dos direitos
humanos, do direito à cidade e da democracia plena estão marcados por avanços, retrocessos e, acima de tudo, profundas contradições. A tradição autoritária e oligárquica
herdada do passado colonial-escravista se faz presente, ainda hoje, sob variadas formas, ora sutis, ora explícitas, geralmente tomadas como naturais e inevitáveis em nossa
sociedade, onde predominam os valores racistas, sexistas/patriarcais homofóbicos
e e lesbofóbicos. O patriarcado e o racismo, como eixos estruturadores nas relações
sociorraciais e de gênero, são imprescindíveis para entender nossa sociedade através
de estudos e políticas de superação das sociedades e cidades racistas e patriarcais,
como propõem os movimentos revolucionários no seu devir.
Na discussão sobre o colonialismo e suas diversas violências e maniqueísmos,
7
Fanon (1968) critica o nacionalismo e o imperialismo, sendo uma obra bastante atual
sobre o padrão de colonialidade que vivemos, ao mesmo tempo que propõe uma
descolonização radical do mundo:
p. 239
A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa de desordem absoluta.
Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A
descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico,
isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua
inteligibilidade, não se: torna transparente para si
mesma senão na exata medida em que se faz discernível
o movimento historicizante que lhe: dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças
congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de substantificação
que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação - ou melhor, a exploração do
colonizado pelo colono - foi levada a cabo com grande
reforço de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o colono tem
razão quando diz que “os” conhece. O colono que fez
e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua
verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial
(FANON, 1968, p. 26).
No livro O Navio Negreiro: uma história humana, Marcus Rediker (2011), analisa um
dos aspectos mais terríveis da escravidão moderna: o tráfico transatlântico. Entre
histórias terríveis do tráfico de africanos, conta a história de uma mulher que morreu
e foi jogada ao mar:
A história dessa mulher constitui um ato no que o grande
erudito e ativista afro-americano W.E.B DuBois qualificou como ‘o mais grandioso drama dos últimos mil anos da
história da humanidade: a transferência de 10 milhões
de seres humanos da beleza negra de seu continente natal para o recém-descoberto Eldorado do Ocidente. Eles
desceram ao inferno’ (REDIKER, 2011, p. 12).
p. 240
Peregalli (1988) também mostra, entre outras coisas, a grande violência que foi
o processo colonial. Por um lado, não tem nada haver com “cordialidade”, “democracia racial”, que se tornaram elementos de referência para o debate da questão
racial brasileira e, por outro, a reação de africanos e africanas, com a formação de
quilombos rurais semiurbanos e urbanos, revoltas, atentados contra senhores e seus
feitores, assassinatos, suicídios e fugas que se espalharam intermitentemente em
todo o território brasileiro.
No período escravista o negro e a negra eram apenas uma questão econômica
ou policial. Ao definir o negro como um problema racial, um obstáculo a um destino
nacional que se desejava em padrões europeus e inspirados em ideologias racistas
deste continente, setores importantes da intelectualidade brasileira (representando
os interesses hegemônicos da classe dominante), iniciaram a montagem do ideário
8
racial brasileiro. Mas este ideário apresenta vários pontos em comum com outros
países que também viveram sob escravidão, especialmente a América Latina.
Ao longo do tempo, os processos de negação do racismo, bem como o processo
de branqueamento forjado desde o século XIX, tiveram consequências importantes
que precisam ser estudadas e compreendidas nas Américas, no Brasil da colonização
portuguesa, e na formação das cidades sob novas epistemologias. Com a Revolução de
1930, a tese da democracia racial desenvolvida por Gilberto Freyre, seu maior expoente,
influenciou muitas pesquisas sobre a interpretação da questão racial. As desigualdades
raciais são tratadas, pelo autor, como um não-problema, para quem brancos, negros
e mestiços se relacionavam harmoniosamente, como mostra Ianni (1987).
Apesar dos avanços produzidos pelos movimentos antirracistas e o feminismo
negro sobre o conhecimento sociológico, etnográfico, histórico, econômico, entre
tantos aspectos, o racismo e o sexismo continuam sendo tratados no Brasil como um
não-problema, embora o nosso cotidiano seja repleto de classificações raciais. Em
conseqüência, torna-se mais difícil entender e combater as desigualdades específicas
entre negros e negras, indígenas e brancos e brancas. Florestan Fernandes define
assim as nossas ambiguidades e contradições:
O padrão brasileiro de dominação racial engendrou
uma ambivalência inexorável no meio negro – e esta
não pode ser combatida e extirpada sem a eliminação
prévia daquele. Isso quer dizer que, enquanto o negro
não romper com a visão mistificadora da realidade racial, dispondo-se a colocar o branco no centro de um
antagonismo que deve ser, inevitavelmente, de ‘classe’ e de ‘raça’, ele será vítima de várias confusões
morais e da capacidade de lutar, de fato, por posições coletivas nas estruturas de poder (FERNANDES,
1965, p. 73).
Segundo Carlos Hasenbalg (1992, p. 14), os estudos brasileiros sobre relações
raciais das últimas décadas podem se caracterizar (mesmo com simplificação), por
uma peculiar divisão disciplinar do trabalho: os historiadores, que, apesar dos notáveis
p. 241
Figura 2 - População do Brasil por cor ou raça no Brasil, 2020. Fonte: Elaborado por
Agenor G. P. Garcia com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
trimestral/2020 do IBGE.
Figura 3 - População da Bahia por cor ou raça. Fonte: Elaborado por Agenor G. P. Garcia
com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral/2020 do IBGE.
p. 242
progressos no estudo da escravidão, negligenciaram amplamente a história social
do negro no pós-abolição; os antropólogos, que, seguindo os caminhos abertos por
Nina Rodrigues e Arthur Ramos, privilegiaram o estudo da cultura negra, com ênfase
particular nas religiões afro-brasileiras; e, finalmente, os sociólogos, que estudam as
relações raciais, dando destaque à estratificação e às desigualdades raciais.
Kabengele Munanga, por sua vez, alerta que alguns estudiosos da questão fogem
do conceito de raça, substituindo-o pelo conceito de etnia para ser “politicamente
correto”, mas continua-se a falar das mesmas camadas hierarquizadas, da mesma
oposição entre dominantes e dominados - “O que mudou, na realidade, são os termos
ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e exclusão
ficou intacto” (MUNANGA, 2003, s/p).
Nesse contexto, o nosso olhar deste Brasil do século XXI, uma sociedade urbana,
feminina, negra, multirracial, multiétnica, multicultural, alimentada pelo mito da democracia racial, até hoje é tributário do estupro colonial de mulheres indígenas e negras
e da política imigratória ligada à ideologia do branqueamento, que afetou a composição racial em todas as regiões, mas sobretudo no Sul e no Sudeste. Considerando
todo o processo aqui analisado, apesar de todo o racismo, o Brasil do século XXI se
autodeclara negro: 56,0% contra 43% de brancos (ver Figura 2). Contudo, esta maioria
é composta pelas pessoas pardas, o que pode significar que o mito da democracia
racial permanece no imaginário racial brasileiro.
A Bahia (ver Figura 3) contrariou a tendência de branqueamento, historicamente
engendrado pelas elites escravocratas, e se reafirma como negra, demográfica e
culturalmente afrodescendente, com 82% de pessoas que se autodeclaram pardas-pretas. Paradoxalmente, o racismo predomina, levando às desigualdades raciais e
espaciais muito reveladoras da hegemonia dos 18% de brancos. Contudo, a hegemonia
não é uniforme e, portanto, é composta pela burguesia, classe alta e classe média
que ocupam os bairros privilegiados em qualquer município, sobretudo as famílias
tradicionais originárias da casa grande. Em Salvador, mapeamos esses bairros e vimos
alta segregação na cidade (GARCIA, 2009).
Nesse contexto, recorremos a Fanon (2008) para pensar nos significados da suposta
“democracia racial brasileira”, engendrada pelo mito da referida democracia, que
continua muito forte e contribui para a ausência de grandes mobilizações em torno
das demandas históricas dos movimentos negros e de mulheres negras, tanto em
relação às políticas públicas quanto às pesquisas neste campo.
p. 243
Embora todos esses significados estejam presentes no imaginário coletivo popular, nem sempre as estatísticas permitem captar a sua verdadeira força nas práticas
cotidianas, na recriação de relações sociais e raciais. Portanto, pesquisas qualitativas
são também necessárias para contribuir com a construção da classe para si, a raça
para si e a mulher para si na perspectiva de dois expoentes da luta antirracista:
Ora, inconscientemente, desconfio do que em mim é negro, isto é, da totalidade do meu ser. Sou um preto
– mas naturalmente não o sei, visto que o sou. Em
casa, minha mãe canta para mim, em francês, romances
franceses nas quais os pretos nunca estão presentes.
Quando desobedeço, ou faço barulho demais, me dizem:
“não se comporte como um preto”. Um pouco mais tarde
lemos livros brancos e assimilamos paulatinamente os
preconceitos, os mitos e o folclore que nos chegam da
Europa (FANON, 2008, p. 162).
Guerreiro Ramos (1995), sociólogo de projeção, ao escrever sobre “O Negro desde
dentro”, faz profundas críticas à sociologia importada e subordinada:
Povos brancos, graças a uma conjunção de fatores,
históricos e naturais, que não vem ao caso examinar
aqui, vieram a imperar no planeta, e, em consequência, impuseram àqueles que dominam uma concepção de
mundo feita à sua imagem e semelhança. Num país como
o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais
prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre esses valores está o da brancura como
símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as
perfeições. Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos
(RAMOS, 1995, p. 241).
p. 244
O reexame de muitas das lutas contra a opressão mostra o não conformismo de
dominadas e dominados contra o regime escravista e que existiam alianças tanto
entre rebeldes urbanos e rurais quanto entre indígenas e quilombolas. De acordo
com Clóvis Moura (1988), são três as principais formas de luta dos escravizados e
escravizadas, como mostra a historiografia mais recentemente: a) a revolta organizada pela tomada do poder, que encontrou sua expressão nos levantes dos negros e
negras malês (mulçumanos/as) na Bahia, entre 1807 e 1835; b) a insurreição armada,
especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no Maranhão; c) a fuga para o mato,
de que resultaram os quilombos; e, d) as guerrilhas, extremamente móveis, pouco
numerosas e que representavam sentinelas avançadas dos quilombos. Na contemporaneidade outras formas de luta contra a subalternidade negra, indígena e feminina
buscam as transformações necessárias para se criar uma sociedade de igualdade e
de plena cidadania (MOURA,1988).
A cidade negra, paradoxos
e desafios contemporâneos
Sem um passado negro,
sem um futuro negro
me era impossível
viver minha negritude.
Franz Fanon
Alguns movimentos sociais, especialmente os urbanos que emergiram nas sociedades capitalistas contemporâneas de grandes contradições econômicas, políticas,
sociorraciais, de gênero, de geração, entre outras, têm colocado na agenda das cidades questionamentos sobre estas temáticas. Contudo, isto ainda ocorre de forma
fragmentada, sem um projeto de cidade-sociedade que questione a base da estrutura
social racista, sexista, classista, lesbofóbica e homofóbica, por exemplo. Conforme dito
anteriormente, as cidades latino-americanas e caribenhas, e sua organização espacial
colonial-escravista, exibem suas contradições históricas e contemporâneas, mas os
diversos agentes sociais da cidade não tratam estas com a centralidade e interseccionalidade necessárias para compreender e alterar tais estruturas como deveriam.
Contudo, a persistência e a tradição dos estudos em geral, e os urbanos em particular, em modelos explicativos eurocêntricos, androcêntricos e sua perversa engrenagem teórica e prática no Brasil e na América Latina, tem ignorado as categorias de
gênero, raça, geração, entre outras, como explicativas da segregação sociorracial e
das desigualdades nas cidades e na sociedade, negando-se a ver a “divisão racial do
espaço desde a casa grande e senzala, sobrados e mocambos” como formas espaciais
e culturais díspares, como bem caracterizou a ativista feminista negra e acadêmica
Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982) ao afirmarem:
p. 245
O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos
da cidade ou do campo e devidamente protegidas por
diferentes formas de policiamento que vão desde os
feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a
polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até os belos edifícios e residências
atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural no negro é o oposto, evidentemente: da senzala
às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos
“habitacionais” [...] dos dias de hoje, o critério
tem sito simetricamente o mesmo: a divisão racial do
espaço (HASENBALG; GONZALEZ, 1982, p.15).
Como afirmam autoras e autores do livro “Cidades Negras” (FARIAS et al.,2006),
entre os séculos XVI e XIX, parte da história da escravidão no Atlântico aconteceu
em tanto em cidades quanto no campo. Ao longo do tempo, contudo, os processos
de negação do racismo nas cidades negras constituídas no passado e o processo
de branqueamento forjado desde o século XIX tiveram consequências importantes.
No chamado Novo Mundo, cidades como Buenos Aires, Caracas, Charleston, Nova
Orleans, Nova York, Cidade do México, Gauyaquil, Havana, Lima, Port-au-Prince, San
Juan, Santo Domingo, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís se tornaram brancas, exceto Salvador (FARIAS et al., 2006).
Na comparação entre a cidade do colonizador e a do colonizado, Fanon (1968),
mostra que a dominação escravista que moldou as sociedades construídas no chamado Novo Mundo são bem diferentes e desiguais e afirma:
p. 246
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar
mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se
nasce não importa onde, não importa como. Morre-se
não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem
intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros,
as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado
é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de
sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é
uma cidade: acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade: de
árabes. O olhar que o colonizado, lança para a cidade
do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja.
Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é
um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o
olhar, constata amargamente, mas sempre alerta: ‘Eles
querem tomar o nosso lugar’. É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em
se instalar no lugar do colono (FANON, 1968, p. 29).
Marcada desde os tempos coloniais-escravistas por quilombos, senzalas, mucambos, pelourinhos e cortiços, a urbanização brasileira, caracterizada contemporaneamente por favelas e/ou bairros populares majoritariamente negros e afroindígenas,
precisa ser objeto dos estudos críticos e das políticas urbanas inclusivas na perspectiva
dos direitos à cidade. A partir das reflexões que fizemos até aqui, passamos a refletir
teórica e empiricamente sobre a velha Salvador.
Salvador, cidade das mulheres e
dos negros: as lutas pelo direito à cidade
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,
humanamente diferentes e totalmente livres.
Rosa de Luxemburgo
A velha Salvador, com 472 anos completados em 29 de março de 2021, é a quarta
metrópole do país e, talvez, a mais emblemática da Diáspora Africana. Considerada
a cidade mais negra fora da África, como se reafirma em autodeclaração, quando
comparamos os censos 2000 e 2010, Salvador continua majoritariamente negra.
Observe-se que em números absolutos e relativos houve crescimento tanto de pardos
como de pretos entre 2000 e 2010 e redução de autodeclarações de pessoas brancas.
De acordo com Nei Lopes:
Diáspora Africana tem dois momentos principais. O
primeiro, gerado pelo comércio de escravo, ocasionou
a dispersão de africanos tanto através do Atlântico
quanto através do oceano Índico e no Mar Vermelho
caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do
século XV - quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre
a partir do século XX, com a imigração, sobretudo na
Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais.
O termo ‘Diáspora’ serve também para designar, por
p. 247
extensão de sentido, os descendentes de africanos nas
Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que
construíram (LOPES, 2004, p. 236).
Salvador, como cidade da Diáspora Africana, não é somente a mais negra demograficamente, conforme os levantamentos dos censos 2000 e 2010 do IBGE, é também
de forte cultura afrodescendente e, ao longo da sua história, manteve-se assim. No
imaginário popular é a cidade brasileira religiosa e culturalmente mais africana de todas.
Como no passado, desde o quilombo, a senzala e, contemporaneamente, as favelas,
os bairros populares e todas as periferias negras, as mulheres negras recriam e tecem
identidades e lutas. Elas são protagonistas cotidianamente de formas diversas de sociabilidades nos espaços urbano e rural. A cidade está entre as mais desiguais no Brasil,
racialmente, apesar de ser a cidade majoritária em termos demográficos e culturais.
Nesse contexto, é importante não somente olhar através do retrato estatístico e
cartográfico que mostra uma cidade onde há o crescimento do número de pretos
e pardos, sobretudo dos primeiros, enquanto cai o percentual de brancos entre os
censos 2000 e 2010. Mas também é preciso ver os problemas fundamentais das
desigualdades que atingem grande parcela da população negra e seu pertencimento
racial e perceber, através deles, o resultado de um processo histórico de introjeção
da inferioridade que todas as pessoas negras tiveram ao longo de suas vidas, tendo
na infância o seu marco inicial e principal.
Depois de quase quatro séculos de escravidão, de mão de obra escravizada que
construiu nosso país, do desenvolvimento capitalista industrial dependente e tardio, o
Brasil reproduziu para os grupos sociais subalternos as péssimas condições de trabalho
e a exclusão da força de trabalho negra na substituição da mão-de-obra escravizada
pela mão de obra livre. Assim, negros e negras perderam espaço gradativamente
para o imigrante branco europeu, como salientou Florestan Fernandes (1965), no
caso de São Paulo, e Luiz Costa Pinto (1998), em relação ao Rio de Janeiro, cidades
onde o projeto de dominação capitalista mais se desenvolveu e o branqueamento e
a substituição de mão de obra também.
p. 248
Costa Pinto (1998), que analisou o censo de 1940 com o recorte de gênero e raça,
constata que, no Rio de Janeiro (DF), entre as mulheres o maior número de empregadas
domésticas encontra-se entre as pretas; em cada 100 mulheres pretas, 31,47% eram
domésticas, na proporção de 16,44% entre as pardas e de 3,67% entre as brancas. Se,
para os homens negros, a principal via de inserção no mercado de trabalho, historica-
mente, esteve vinculada a funções subalternas, para as mulheres negras a condição
é mais limitada e persistente, como mostram estudos mais recentes sobre a questão.
Em consequência, esse desenvolvimento aprofundou as desigualdades de gênero,
de raça, urbanas e regionais que se mantêm inarredáveis até hoje. Entre os séculos
XIX e parte do XX, em Salvador, a indústria têxtil era o ramo fabril por excelência e as
mulheres tinham participação fundamental na composição do operariado industrial
da cidade. Segundo Mário Augusto Silva Santos (1992), no período de 1890-1930, o
emprego da mão de obra feminina e infantil passou a assumir um significado crescente
e o mais interessante é que, em 1920, dentre os trabalhadores da indústria 42% eram
mulheres. Elas tinham pequena participação em todos os ramos, mas eram maioria
esmagadora no setor de “vestuário e toucador” (72%), e no têxtil (63%). Observe-se que
parte dessa história foi vivida no período da escravidão, como em Plataforma, bairro
popular-operário da periferia negra de Salvador, onde mulheres e crianças trabalhavam
na fábrica têxtil, instalada em 1875. Mesmo assim, elas ficaram e continuam ficando
invisíveis na sociedade até hoje.
Nos EUA, segundo Ângela Davis (2013), a fiação e a tecelagem eram ocupações
domésticas e as mulheres foram as primeiras a serem contratadas pelos donos dos
moinhos para operar os novos teares. Todavia, conforme avançou a industrialização,
mudando a forma de produzir da casa para as fábricas, a importância dos trabalhos
domésticos das mulheres sofreu uma erosão. Heleieth Saffioti (1987), pensadora marxista, alerta que é importante olhar para os diferentes significados da naturalização
que se faz do papel da mulher na sociedade de classe:
Do ponto de vista das classes sociais, podem-se distinguir, basicamente, dois sentidos da história: o
das classes dominantes e o das classes subalternas.
Do angulo das categorias de sexo, as mulheres, ainda
que façam história, tem constituído sua face oculta.
A história oficial pouco ou nada registra da ação feminina no devenir histórico. Isto não se passa apenas
com mulheres. Ocorre com outras categorias sociais
discriminadas, como negros, índios, homossexuais.
Deste fato decorrem movimentos sociais, visando ao
resgate da memória, geralmente não registrada, destes contingentes humanos que, atuando cotidianamente,
ajudaram e/ou ajudam a fazer história. É de extrema importância compreender como a naturalização dos
processos socioculturais de discriminação contra a
mulher e outras categorias sociais constitui caminho
p. 249
mais fácil e curto para legitimar a “superioridade”
dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos (SAFFIOTI, 1987, p. 11).
Para Ana Alice Costa,
Saffioti foi quem conseguiu aproximar-se mais da essência da relação entre patriarcado e capitalismo, na
intenção de explicar a desigualdade social da mulher.
A partir de uma nova análise do patriarcado, em perspectiva do materialismo histórico, Saffioti chega ao
que denomina ‘a simbiose patriarcado-racismo-capitalismo’ (COSTA, 1998, p. 38).
Do ponto de vista das lutas sociais, Salvador, como cidade sede do processo de
dominação escravista da América portuguesa e sua capital até 1773, quando foi transferida para o Rio de Janeiro, assim como outras cidades, constituiu vários processos
contra-hegemônicos como vimos anteriormente. Como assinala Reis (1988, p. 88-89),
“Nenhuma outra região do país havia experimentado, no curto período de 30 anos
(1807-1835), um número tão formidável de revoltas e conspirações escravas”. A greve
de 1857 parou a cidade por dez dias em protesto contra uma postura que lhes impunha
um imposto e o uso no pescoço de uma placa de metal gravada com o número de
registro da câmara, portanto inventaram a greve urbana no Brasil (REIS, 1988) e criaram
o primeiro Movimento Social Negro desde Palmares.
Conhecer a história das mulheres negras, e seu protagonismo na rebeldia política,
religiosa, entre outras, da Colônia, passando pelo Império até a República, é muito
relevante para que se aprofundem os estudos numa perspectiva descolonial, superando a alienação para propor processos à revolução.
Em “Bahia de todas as Áfricas”, João Reis (2009) mostra que no século XIX, em
Salvador, era nos subúrbios que acontecia a maior parte das atividades de candomblé
e, devemos lembrar também, o maior número de quilombos, ambos considerados
perigosos, com destaque para a sacerdotisa Nicácia:
p. 250
Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje
bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu
carisma alguns meses antes, quando fora seguida por
uma multidão até a cidade, ao ser levada presa por
ordem do governador da capitania da Bahia, o conde da
Ponte. Esse governador desencadeador de uma vigorosa
campanha repressiva contra os candomblés e quilombos
nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos
(REIS, 2009, p. 40-41).
Outro exemplo de guerreira é Zeferina, do Quilombo do Urubu no Subúrbio Fer9
roviário de Salvador:
Algumas líderes dos levantes, que irromperam às vésperas da abolição, eram como reis e rainhas. Segundo
documentos, Zeferina era uma dessas rainhas, representante do quilombo do Urubu, em Salvador. Durante
sua última luta, empunhou seu arco e flecha e soberanamente conduziu a resistência negra na capital baiana. De acordo com relatos da época, Zeferina ‘custou
a se entregar, antes fazia muita diligência para se
reunir aos pretos dispersados’ (SCHUMAHER; BRAZIL,
2007, p. 95).
Como vimos, a necessária ruptura com o pensamento eurocêntrico é um grande
desafio para que a cidade patriarcal e racista se torne objeto dos estudos urbanos, sociológicos, políticos, históricos, geogáficos, da urbanização capitalista, marcada desde
os tempos coloniais-escravistas por senzalas e mucambos, quilombos, pelourinhos,
cortiços e, contemporaneamente, por favelas e/ou bairros populares majoritariamente
negros e afroindígenas. Nas lutas contemporâneas contra a ditadura civil-militar de
1964, por exemplo, os movimentos feministas e populares urbanos, em particular,
tiveram grande protagonismo trazendo à cena política mulheres das classes populares,
das favelas e bairros negros.
Nesse contexto, vamos ao estudo teórico-empírico de Salvador a partir de uma
variável muito relevante na vida de qualquer sociedade: a educação que mobilizou
mulheres de todas as raças e classes sociais. A perspectiva da teoria marxista compreende que as instituições sociais são reprodutoras dos valores dominantes e a
escola brasileira tem sido, de fato, uma das instituições sociais das mais importantes
na reprodução desses valores racistas, sexistas, classistas, misóginos, colonialistas,
imperialistas etc, compreendendo que:
O primeiro momento dessa dominação é econômico: é a
dominação do capital sobre o trabalho, que corresponde à exploração das classes subalternas. Tal exploração é base da luta de classes, que se expressa na
política, na luta ideológica, na disputa por hegemonia (GRAMSCI apud MOCHCOVITCH, 2001, p. 13).
p. 251
Na perspectiva da crítica dialética da dominação e da subordinação intelectual e
à luz das evidências empíricas das desigualdades raciais e de gênero na educação,
vamos refletir sobre o processo de lutas pela hegemonia, onde a instituição escola
pode fazer a “elevação cultural das massas”. As lutas sociais por uma educação libertadora e a conquista da Lei n° 10.639/2003, que legaliza o estudo da História da África
nas escolas públicas e privadas que entrecruzam a cultura e história afro-brasileira,
possibilitam narrativas contra hegemônicas, embora sofra de desconhecimento e
resistências após 18 anos de sancionada, mas é uma esperança. A “Lei das Cotas” (Lei
n° 12.711/2012), sancionada em 2012 por Dilma Rousseff, também foi outra grande
10
conquista dos movimentos negro e feminista negro, principalmente.
Mais uma vez, as elites escravocratas deram um golpe em 2016 contra o governo
Dilma Rousseff/PT, primeira presidenta do Brasil em 132 anos de República, para
impedir os avanços nas políticas públicas como um todo e na educação em particular, resultando também na eleição da extrema direita nazifascista nas eleições de
2018. Marcada por golpes, a República brasileira tem recorrido a eles para impedir o
desenvolvimento do povo. Na longa luta contra a ditadura de 1964, os movimentos
sociais de diversos tipos, como os movimentos populares urbanos de Salvador, de
base negra e feminina, por exemplo, também contribuíram para a sua derrubada
e, consequentemente, para a construção dos processos democráticos, incluindo a
Constituição de 1988 que, entre outros direitos, garante educação como um direito
de todos as pessoas e dever do Estado.
No século XX as mulheres conquistaram vários direitos: voto, educação e mercado
de trabalho, entre outros. Contudo, são grandes as desigualdades intragênero, raça
e classe como mostram os dados educacionais de Salvador, a partir da comparação
dos Censos 2000 e 2010.
p. 252
A análise comparativa dos censos 2000 e do 2010, em relação ao nível de instrução
em Salvador, revela que as desigualdades educacionais não reduziram significativamente, apesar das políticas públicas de inclusão terem melhorado. Com os recortes
de gênero, raça e classe, verifica-se que 51,1% da população em 2000 estava no nível
fundamental, sendo que as brancas e os brancos são, respectivamente 34,1% e 34,1%,
enquanto entre as negras e negros são 54,5% e 59,5% que só alcançaram este nível
de escolaridade. Entre as mulheres, a distância percentual era de 20,4 e entre os
homens 25,4, ou seja, naquele ano negras e negros tiveram grande desvantagem e só
alcançaram o nível mais elementar da escolaridade em uma terra de negros e negras.
Já no censo 2010 houve uma redução do total dos que só chegaram a esse nível
educacional, na medida em que são 37,3% em 2010 e em 2000 eram 51,1%. Todavia,
com os recortes adotados, as brancas e brancos são 24,1% e 23,9%, enquanto negras e
negros tiveram uma redução para 38,4% e 43,1%, ou seja, a redução alterou as difereças
entre os grupos brancos e negros, embora permaneçam as distâncias percentuais
muito acentuadas. Entre mulheres nesse grau de escolaridade a distância era de 14,3%
e entre os homens de 19,2%.
Quanto ao nível médio, em 2000 entre as mulheres brancas e negras a distância
era de 1,0%, indicando um esforço significativo das negras para melhorar sua escolaridade, já entre os homens era de 2,7%. Analisando o nível superior, brancas e brancos
que alcançaram este nível são 24,3% e 26,9% e negras e negros são 5,5% e 5,9%,
respectivamente, em 2000, com distâncias significativas: 18,8% entre as mulheres e
20,94% entre os homens.
No censo 2010, brancas e brancos aumentaram seu capital educacional em 27,2%
e 28,5% e negras e negros em 10,4% e 8,9%, com importante crescimento. Contudo, as
desigualdades permanecem com uma distância percentual de 16,6 entre mulher branca
e mulher negra e entre homens brancos e negros a diferença é ainda maior: 19,6%.
Na pós-graduação, nível mais elevado que as pessoas tinham em 2000, mulheres
brancas eram 1,0% e homens brancos 1,7%, já em 2010 eram 8,9% e 9,2%, respectivamente. Por outro lado, no grupo negro em 2000 eram 0,1% de negras e 0,2% de
negros, já em 2010 as mulheres negras eram 2,6% e os homens negros 1,8%. Entre as
mulheres brancas e negras a distância é de 6,3% e entre homens brancos e negros é
de 7,4%. Isto mostra que as desigualdades raciais se mostram mais expressivas que
as de gênero, indicando que o racismo atua na educação, onde as conquistas negras
não conseguiram superar as desigualdades históricas de quem tem origem na casa
grande e na senzala, mesmo em uma cidade onde a população afrodescendente
é ampla maioria. Portanto, mulheres e homens brancos não enfrentam as barreiras
racistas que, historicamente, mulheres e homens negros enfrentam.
Assim sendo, a análise da educação em Salvador com os recortes de gênero e raça
permite compreender as diferenças, as singularidades do fenômeno e as desigualdades
raciais e intragênero em todo o sistema educacional. Sabe-se que negras e negros enfrentam várias barreiras: não frequentam pré-vestibular de alto custo, como as pessoas
brancas, e têm que trabalhar para estudar e, desse modo, estudar nos cursos noturnos
quase inexistentes em universidades públicas, o que constitui uma das muitas barreiras
p. 253
a enfrentar. Além disso, a concorrência é desigual para o acesso à universidade pública
(quadro que está melhorando com as leis e ações afirmativas), já que a maioria dos
brancos freqüenta escolas particulares e pré-vestibular de melhor qualidade
Para compreender todas as contradições que ocorrem no sistema educacional
tanto em geral como intragênero em particular – diferenças entre mulheres e homens
no interior do grupo negro e do grupo branco – é necessário recorrer às teorias feministas, em particular ao feminismo negro que questiona as teorias homogeneizadoras. Inclui-se aí as teorias feministas que são instrumentos importantes para criação
de novos paradigmas e novas práticas, mas ainda insuficientes para dar conta, por
exemplo, das contradições de gênero, classe, raça e espaço existentes no interior do
grupo feminino. Como propõe Saffioti (apud COSTA 1988, p. 38), deve-se entender
este processo de “simbiose patriarcado-racismo-capitalismo” dialeticamente.
Considerações finais
Como refletimos ao longo do texto, desde o século XIX, a questão do ideal do
branqueamento, materializado pela mestiçagem e a construção do mito da democracia racial, ocupou as elites brancas e escravocratas e também afetou a formação
das cidades latino-americanas e caribenhas, onde a maioria compartilha aspectos
fundantes de sua formação sócio-histórica e, particularmente, as cidades brasileiras
que se tornaram brancas. Salvador, cidade considerada a mais africana do Brasil,
mostra grandes desigualdades raciais e, ao analisar seus dados de escolaridade, com
recorte de raça e gênero, verifica-se desigualdades também intragênero.
p. 254
Refletimos também sobre as contradições urbanas e os movimentos sociais urbanos históricos e contemporâneos antirracistas, antisexistas, anticlassistas, antiescravistas, anti-imperialistas-capitalistas, anti-homofóbicos-lesbofóbicos, tentando
compreender processos multifacetados, dialeticamente. Nesse sentido, buscamos as
epistemologias negras que questionam a mulher única – que por muito tempo contribuiu com a invisibilidade das mulheres negras da senzala às favelas –, valorizando
suas lutas históricas e contemporâneas, a construção do feminismo negro para um
projeto comum, revolucionário, em múltiplas dimensões. Portanto, livrarmo-nos das
velhas teorias eurocêntricas para explicar nossa realidade, inclusive a urbana.
Desse modo, adotamos um olhar afrocentrado, suas filosofias e epistemologias,
para perceber a importância da participação feminina-feminista negra nas lutas ur-
banas pelo direito à cidade em seus territórios, onde historicamente constroem suas
territorialidades, seu lugar de fala, seus questionamentos sobre a ausência, especialmente das mulheres negras na construção do espaço urbano, da cidade.
Por fim, os movimentos sociais urbanos de Salvador, com ampla base social, negra
e feminina, eram hierarquicamente classificados como de “mulheres populares” e
nunca como “feministas populares”. A construção e o crescimento do feminismo negro
e popular representa um estímulo à busca de novos caminhos, novas epistemologias
e novos paradigmas que compreendam a pluralidade do social. Entre os avanços em
relação ao direito à cidade, o Fórum Urbano Mundial mostra os caminhos práticos
para a superação das desigualdades urbanas em um mundo de rápida urbanização.
Espera-se que o feminismo acadêmico e militante, como um todo, olhe o urbano e
a cidade, dando a necessária centralidade e interseccionalidade, como espaço de
transformação.
Notas
1
Em Mujeres, Espacio y Sociedad: hacia una
Geografía del Género (1995), Ana S. Martínez,
Juana R. Mota e María de Los A. Muñoz organizam o manual de Geografía de Gênero que
muito contribui para compreender que a Humanidade não é um todo homogêneo, uniforme
e assexuado e as diferenças sociais entre
homens e mulheres devem ser consideradas
em todo momento. Por outro lado, Alejandra
Massolo (1992) organiza a coletânea intitulada Mujeres y Ciudad: participación social,
vivienda y vida cotidiana, na qual reflete
sobre as mulheres como sujeitas da investigação urbana; movimentos urbanos populares
e feminismo popular.
2
Demograficamente, muitas cidades brasileiras têm maioria negra, inclusive nas capitais
nordestinas.
3
Uma das estudiosas sobre a dominação masculina na perspectiva da descolonialidade,
que busca novas epistemologias da igualdade
propôs uma leitura da relação entre o colonizador e o/a colonizado/a em termos de
gênero, raça e sexualidade (LUGONES, 2014).
4
O Fórum foi criado pela Organização das
Nações Unidas para analisar um dos problemas
mais prementes do mundo de hoje: a rápida
urbanização e seu impacto sobre as comunidades, cidades, economias, as alterações
climáticas e políticas. Desde a primeira
reunião em Nairóbi, no Quênia, em 2002, o
Fórum tem crescido em tamanho e estatura,
uma vez que viajou para Barcelona, em 2004,
Vancouver 2006 e Nanquim, em 2008, e Rio de
Janeiro em 2010.
p. 255
5
Democracia racial é uma expressão sob a
qual se aninha a falsa ideia de inexistência
de racismo na sociedade brasileira. Construída a partir da ideologia do luso-tropicalismo, procura fazer crer que, graças a um
escravismo brando que teria sido praticado
pelos portugueses, as relações entre brancos e negros, no Brasil, seriam, em regra,
cordiais. Essa falsa ideia tem se revelado
obstáculo à conscientização do povo negro e
ao enfrentamento do preconceito etnorracial
no país (LOPES, 2004, p. 232).
6
Para Alcida Rita Ramos (2012, p. 28), o
Indigenismo é “[...] um fenômeno político no
sentido mais abrangente do termo. Não está
nem limitado a políticas públicas ou privadas, nem às ações geradas por elas. Inclui
também os meios de comunicação, a literatura
ficcional, a atuação da Igreja, de ativistas
dos direitos humanos, as análises antropológicas e as posições dos próprios índios,
que podem negar ou corroborar a imagética
do índio. Todos esses atores contribuem para
construir um edifício ideológico que toma a
questão indígena como sua pedra fundamental.”
Urpi M. Uriarte (1998), ao discutir o indigenismo no Peru, cita Monoya e afirma que “O
indigenismo foi, fundamentalmente, um estado
de ânimo, uma vontade (mais discursiva que
prática) de valorização e defesa da população indígena”.
7
O livro de Franz Fanon Os condenados da
Terra (1968), conta com um prefácio de Jean-Paul Sartre e um título inspirado no hino
do movimento comunista internacional.
10
Vale lembrar também que no período do
governo Lula, o primeiro presidente operário
da nossa história, houve a expansão da Rede
Federal de Educação Superior com a interiorização dos campi das universidades federais. Foram criadas 14 novas universidades
e mais de 100 novos campi que possibilitaram
a ampliação de vagas e a criação de novos
cursos de graduação. A expansão continuou no
governo Dilma Rousseff, com a criação de mais
4 universidades.
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8
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9
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e política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBA;
Assembleia Legislativa da Bahia, 1998.
Thomas Skidmore (1976) fez uma análise
minuciosa do pensamento racista no interior
da elite intelectual brasileira.
p. 256
e em 2019 o rebatizou como Bloco Zeferina. Em
2016 criou a Banda Negra e Feminista Zeferina
(GARCIA; SERPA; GARCIA, 2014).
Em 2013, o Centro da Mulher Baiana – CEM,
recriou o Bloco do Bacalhau, criado por operárias da fábrica de tecidos fundada em 1875,
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p. 259
Ensaio
Orixás:
virações cotidianas
Mauricio dos Santos
MALOCA / UNILA
Orixás: virações cotidianas
Resumo
“SALVADOR DÁ SANTO, A CIDADE OXUM: DANÇA IJEXÁ”. Este é um ensaio fotográfico
composto em Salvador, Bahia, em 2017. Foi feito no decorrer do trabalho
de campo junto aos povos de terreiro, em meio a uma pesquisa etnográfica
a respeito da língua-de-santo, que é uma linguagem afro-brasileira. São
fotografias que tratam a respeito do reexistir e do reinventar a CIDADETERREIRO. Se acolá, como cantam, “nesta cidade todo mundo é de Oxum”,
aqui fica arriado nosso bater de cabeça para o povo/divindade, que fez
da morte o encantamento e a terreirização do Brasil. “VIMOS EM SALVADOR
IMPROVÁVEIS ORIXÁS” nos afazeres do dia a dia, Exu está na Liberdade; Ogun
está em Ogunjá; Oxóssi está na Boca da Mata; Ossain está na Mata Escura;
Omolu e Obaluaiyê estão na Saúde; Naná está na Lagoa Grande; Oxumarê está
em Mussurunga; Oxum está em Águas Claras; Iansã está em Pitangueiras;
Iemanjá está na Praia do Rio do Vermelho; Ibeji está em Água de Meninos;
Xangô e Aiyrá estão em Barros Reis e Oxalá está no Alto das Pombas.
Palavras-chave: Orixás, Salvador, cotidiano,
fotografia, antropologia, diáspora africana.
Orixás: variar todos los días
Resumen
“SALVADOR DÁ SANTO, LA CIUDAD OXUM: BAILA IJEXÁ”. Este es un ensayo
fotográfico, compuesto en Salvador, Bahía en 2017. Fue realizado durante el
trabajo de campo con la gente del terreiro, en medio de una investigación
etnográfica sobre el lengua-de-santo, que es una lengua afrobrasileña.
Son fotografías en las que tratan de la re-existencia y reinvención de
la CIUDAD-TERREIRO. Sí allí, como canta la “ciudad todos son de Oxum”,
aquí pedimos bendición, para el pueblo / divinidad, que hizo de la muerte
el encanto y la terreirização de Brasil. “MIRAMOS EN SALVADOR ORIXÁS
IMPOSIBLES” en las tareas diarias, Exu está en Libertad; Ogun está en
Ogunjá; Oxóssi está en Boca da Mata; Ossain está en la Mata Escura; Omolu
y Obaluaiyê están en la Saúde; Naná está en Lagoa Grande; Oxumarê está
en Mussurunga; Oxum está en Aguas Claras; Iansã está en Pitangueiras;
Iemanjá está en la playa de Rio do Vermelho; Ibeji está en Água de Meninos;
Xangô y Aiyrá están en Barros Reis y Oxalá está en Alto das Pombas.
Palabras clave: Orixás, Salvador, diario, fotografía,
antropología, diáspora africana.
Orixás: everyday turns
Abtract
“HOLY SALVADOR, THE CITY OF OXUM: IJEXÁ DANCE”. This photographic essay was
conducted in Salvador, Bahia, in 2017. These photographs were taken during
an ethnographic field-research with the Terreiro people regarding their
língua-de-santo, which is an Afro-Brazilian language. The images deal with
the re-existence and the reinventing of the TERREIRO CITY. If overthere,
as they sing “city, everyone is from Oxum”, here is asking for a blessing
to the people/deity, who made death the enchantment and the terreirização
of Brazil. “WE SAW IN SALVADOR IMPROBABLE ORIXÁS” in the daily tasks, Exu
is in Liberty; Ogum is in Ogunjá; Oxossi is in the Forest Mouth; Ossain
is in the Dark Forest; Omolu and Obaluaiyê are in Health; Naná is in the
Great Lagoon; Oxumarê is in Mussurunga; Oxum is in Clear Waters; Iansã is
in Pitangueiras; Iemanjá is in Red River Beach; Ibeji is in the Water of
Boys; Xangô and Aiyrá are in Barros Reis and Oxalá is in Alto das Pombas.
Keywords: Orixás, Salvador, daily life, photography,
anthropology, African diaspora.
Sentir, viver e fazer
(n)a cidade negra:
cosmopercepções e epistemologias
negras acerca e desde o Engenho Velho
da Federação, Salvador – BA
Luis Guilherme Cruz Pires
EtniCidades / PPGAU-UFBA
Sentir, viver e fazer (n)a cidade negra:
cosmopercepções e epistemologias negras acerca e
desde o Engenho Velho da Federação, Salvador – BA
Resumo
A elaboração do presente ensaio buscou confeccionar e costurar narrativas
- textuais e visuais - acerca das metodologias de apreensão e leitura do
Engenho Velho da Federação, sujeito-objeto da investigação proposta. É
possível compreender o bairro do Engenho Velho da Federação e a cidade de
Salvador como territórios negros oriundos e formados a partir do processoexperiência da diáspora africana. Se, por um lado, Salvador é considerada
a “cidade mais negra fora da África”, por outro lado, o Engenho Velho da
Federação é considerado um dos bairros negros da cidade, especialmente
pela presença e forte expressão de culturas e práticas afrodescendentes
a exemplo dos terreiros de candomblé. Nesse sentido, o trabalho recorre
às cosmopercepções e epistemologias que emergem das diversas tradições de
matriz africana encontradas nos espaços dos terreiros, apropriando-se das
linguagens próprias desses territórios para confeccionar a costura das
narrativas. Assim, lança mão de uma tríade “afro epistemológica” [Terreiro
– Caminho - Encruzilhada] como dispositivo conceitual e analítico, para
desvelar os espaços-tempos transportados, ressignificados e reinventados na
construção desses territórios afrodiaspóricos encontrados na cidade negra.
Palavras-chave: diáspora africana; cosmopercepções; epistemologias
negras; Engenho Velho da Federação; Salvador-Bahia.
Sentir, vivir y hacer la ciudad negra:
cosmopercepciones y epistemologías negras sobre y
desde Engenho Velho da Federação, Salvador - Bahia
Resumen
La elaboración de este ensayo buscó crear y coser narrativas – textuales
y visuales – sobre las metodologías de aprehensión y lectura de Engenho
Velho da Federação, sujeto-objeto de la investigación propuesta. Es
posible entender el barrio de Engenho Velho da Federação y la ciudad
de Salvador como territorios negros originados y formados a partir del
proceso-experiencia de la diáspora africana. Si, por un lado, Salvador
es considerada la “ciudad más negra fuera de Africa”, por otro lado,
Engenho Velho da Federação es considerado uno de los barrios negros
de la ciudad, especialmente por la presencia y fuerte expresión de
las culturas y prácticas afrodescendientes, por ejemplo los terreiros
de candomblé. Em este sentido, la obra utiliza cosmopercepciones y
epistemologías que surgen de las diversas tradiciones de origen africana
que se encuentran en los espacios de los terreiros, apropiándose de los
linguajes de estos territórios para hacer coser las narrativas. Y hace
uso de una tríada “afro epistemológica” [Terreiro – Camino - Encrucijada]
como dispositivo conceptual y analítico, para develar espacios-tempos
transportados, resignificados y reinventados en la construcción de
estos territórios afrodiaspóricos encontrados en la ciudad negra.
Palavras clave: diáspora africana; cosmopercepciones; epistemologías
negra; Engenho Velho da Federação; Salvador - Bahia.
Feel, live and make the black city:
world-senses and black epistemologies about and
since Engenho Velho da Federação, Salvador - Bahia
Abstract
The elaboration of this essay sought to create and sew narratives –
textual and visual – about the apprehension and reading methodologies of
Engenho Velho da Federação, subject-object of proposed investigation. It
is possible to understand the neighborhood Engenho Velho da Federação and
the city of Salvador as black territories originating and formed from the
experience- process of the African diaspora. If, on the one hand, Salvador
is considered the “blackest city outside Africa”, on the other hand,
Engenho Velho da Federação is considered one of the black neighborhoods of
the city, especially due to the presence and strong expression of Afrodescendant cultures and practices, for example terreiros de candomblé.
In this sense, the work uses the world-senses and epistemologies that
emerge from the diverse traditions of African origin found in the spaces
of terreiros, appropriating the languages of these territories to make the
narratives stitch. And, it makes use of an “afro epistemological” triad
[Terreiro – Path - Crossroads] as a conceptual and analytical device,
to unveil transported, resignified and reinvented spaces-times in the
construction of these afro-diasporic territories found in the black city.
Key-words: African diaspora; world-senses; black epistemologies;
Engenho Velho da Federação; Sakvador - Bahia.
Figura 1 – Abre caminhos
Colagem elaborada pelo Autor (2021).
Imagem de Exu: Carybé (1980). Trechos
de músicas: Dinucci (2008); Germano
(2008); Marçal (2016).
Figura 2 – Enunciações do bairro negro
Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapas: elaborados pelo Autor com base no
Google Maps (s/data). Imagens do bairro: Google Street View (s/data) - editado
pelo Autor; Acervo do Autor (2017).
Figura 3 – Tríade afroepistemológica
Colagem elaborada pelo Autor (2021).
Figura 4 – Terreiro do Bogum na encruzilhada da Diáspora
Colagem elaborada pelo Autor (2021). Imagens do Bogum: Herskovits (1941-42);
Trecho de música: Martins (2016).
Figura 5 – Encontro das nações do Candomblé no Engenho Velho da Federação
Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapa: elaborado pelo Autor com base em CEAO/UFBA (2008) e
Ramos (2013); Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens dos Terreiros:
Acervo do Autor (2017); Burley (2017); CEAO/UFBA (2008); Google Street View (s/data); Toluaye
(2008). Imagens das Sacerdotisas: Alvarez (2018); Cardoso (s/data).
Figura 6 – Toponímia dos caminhos do Engenho Velho da Federação
Colagem elaborada pelo Autor (2021). Mapa: elaborado pelo Autor com base em Ramos (2013) e no Google
Maps (s/data); Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens antigas: Acervo pessoal
de Makota Valdina (s/data); Cordeiro (1989); Fundação Gregório de Matos (1977); Popó (1934); Verger (s/
data). Imagens dos Terreiros: Google Street View (s/data); Herskovits (1942). Imagem de Seu Orlando:
Rosa (2011).
Figura 7: Encruzilhadas do Engenho Velho da Federação
Colagem elaborada pelo Autor (2021). Base cartográfica: SICAR/PMS (1998) – editado pelo Autor. Imagens das ruas:
Google Street View (s/data); Acervo do Autor (2019). Imagens da Romaria de São Lázaro: Acervo da Família Santos
(1990, 1992); Saravá (2017). Imagens da Caminhada: Acervo do Autor (2017); Caminhada (2019). Imagens aéreas do
bairro: Google Maps (s/data).
Introdução
presente ensaio emerge de investigações e
inquietações que atravessam o processo de
construção do meu Trabalho Final de Gradua1
ção(TFG), que consiste em um trabalho de
cunho empírico-conceitual e propositivo para o
bairro do Engenho Velho da Federação, situado na cidade
de Salvador, Bahia.
O
Gostaria de destacar que os primeiros passos partem
do encontro com a obra “Espaço urbano e afrodescendência: estudo da espacialidade negra urbana para o debate
das políticas públicas” (CUNHA JÚNIOR; RAMOS, 2007),
colocando-se como disparo para instaurar e problematizar a questão étnico-racial no campo da arquitetura e do
urbanismo, até então muito incipiente. No ensaio “Afrodescendência e Espaço Urbano”, o professor Henrique Cunha
Jr. (2007) desenvolve uma reflexão acerca dessa relação
para pensar políticas públicas para espaços urbanos de
maioria afrodescendente ao explorar os conceitos de afrodescendência e territórios de maioria afrodescendente.
Segundo o autor, é o espaço urbano que unifica a população afrodescendente, já que essa população possui uma
história em comum, que vem de África e continua a ser
(re)construída nos territórios afrodiaspóricos das cidades
brasileiras, como é o caso de Salvador.
v.2 n.1
p. 298-329
2023
ISSN:
2965-4904
Os próximos passos caminharam ao encontro do trabalho da arquiteta, professora e pesquisadora Maria Estela
Ramos (2013) a partir da sua tese de doutorado, na qual
a autora desenvolveu um estudo empírico e conceitual
no bairro do Engenho Velho da Federação, localizado
em Salvador – Bahia, ao caracterizá-lo como um bairro
negro, apontando para uma lacuna nos estudos urbanísticos acerca desses territórios urbanos. Para a escolha do
lugar de afet-ação do TFG, o bairro do Engenho Velho
2
da Federação, desde então, torna-se também o sujeito-objeto das investigações e
investidas do autor.
Ao entender o trabalho como obra e construção coletiva, não poderia deixar de
registrar as contribuições e provocações advindas das professoras e dos professores
3
orientadores e membros da banca avaliadora, que, de certo modo, já vinham abrindo e indicando caminhos possíveis desde antes da elaboração do próprio TFG. Não
menos importante, registro os ensinamentos e orientações de moradores e lideranças
do bairro que assumem, também, o lugar de sujeitos das histórias e narrativas aqui
contadas, moderadores dos meus (des)caminhos pelo bairro, em especial os mais
4
velhos da comunidade, com os quais tornei-me um aprendiz, os mestres griôs e
guardiões da ancestralidade afro-brasileira: Makota Valdina (in memoriam) e Everaldo
Duarte, a quem dedico o trabalho.
Em consonância com o tema proposto para o dossiê, o presente ensaio é parte de
um processo de (re)visitação do próprio TFG a fim de evidenciar os laços transatlânticos
entre Brasil e África, tendo o Engenho Velho da Federação como caso típico do que
seria um território formado a partir da diáspora africana ou, ainda, um bairro negro em
Salvador, uma cidade (afro)brasileira e eminentemente negra. Em síntese, o bairro é
um lugar de confluência de muitas Áfricas.
Territórios da diáspora africana:
contextualizando o bairro negro
na cidade negra
Estamos a falar de territórios negros que se conformaram a partir da diáspora de
povos africanos que vieram para as Américas e para o Brasil no contexto de escravização e domínio branco-europeu. São povos oriundos de várias partes do continente
africano e que simbolizam as (muitas) Áfricas, ou porções dela, que estruturaram
a formação das cidades brasileiras, em especial Salvador por ter recebido um dos
maiores contingentes dessa população afrodiaspórica. Povos e culturas de tradição
nagô-yorubá, ewe-fon, bantu, dentre tantos outros, que, desgarrados e apartados
de sua terra mãe-África, recriaram e ressignificaram seus mundos em solo brasileiro, inventando outros modos de (r)existências que sedimentaram e sustentaram as
instituições e agregações negras fundadas no país, como as irmandades religiosas
p. 311
afro-católicas, os terreiros de candomblé, os blocos afro e afoxés, escolas de samba,
dentre outros grupos.
5
Salvador, também conhecida como a “Roma Negra”, é considerada por muitos
6
pesquisadores e estudiosos a “cidade mais negra fora da África”, não só pelo grande
contingente de povos africanos que recebeu, mas, sobretudo, pela expressão das
culturas e modos de vida desses povos que estão impregnados nos espaços da cidade
e estruturam os mesmos. Dessa forma, a população negra soteropolitana habita os
territórios conhecidos como bairros negros, situados, em sua maioria, em regiões
7
periféricas da cidade como o Subúrbio Ferroviário e o Miolo .
O Engenho Velho da Federação é um bairro que está situado próximo à Orla Atlân8
tica e ao Centro Tradicional de Salvador, com alta concentração de população negra
9
cuja presença no território é datada desde o século XVIII, momento histórico da
10
implantação dos primeiros terreiros de candomblé no bairro. Para além dos dados
censitários oficiais, Ramos (2013) toma as culturas negras como referência conceitual
para identificar o bairro negro e compreender as relações socioespaciais no Engenho
Velho da Federação. Os moradores mais antigos reconhecem a presença dos terreiros como uma importante referência para o bairro, o qual pode ser entendido como
extensão dos espaços dos terreiros, um território de confluência da população negra
na cidade de Salvador, constituindo-se como um caso exemplar do que Muniz Sodré
chamou de “forma social negro-brasileira” (RAMOS, 2013; SODRÉ, 1988).
Metodologias de apreensão
e leitura do bairro negro
p. 312
O trabalho propõe uma leitura e apreensão do território em diálogo com as cosmopercepções e epistemologias oriundas dos terreiros de candomblé, tendo como
11
suporte o corpo-Bara e seus movimentos por entre os caminhos, as encruzilhadas e
os terreiros do Engenho Velho da Federação. Essa escolha metodológica está anco12
rada no método etnográfico (URIARTE, 2012) e no trabalho de campo que buscou
realizar a apreensão do bairro negro a partir de vivências e experiências que foram
acumulando-se ao longo da pesquisa e possibilitaram as movimentações do corpo-pesquisador atreladas às dinâmicas locais (com momentos de aberturas, avanços,
paradas e limites), que emergiram do próprio território e também foram colocados
pelos interlocutores da pesquisa e moradores do bairro.
13
A noção de cosmopercepção está presente em “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero”, livro escrito
pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021), e foi apropriada pelo professor
e filósofo Renato Noguera para tratar a epistemologia como um “paladar de mundo”
em contraposição à “visão de mundo” das culturas ocidentais, tendo Exu como princípio cosmológico, ético e epistemológico; “aquele que come primeiro”, segundo a
cosmologia yorubá e dos povos de terreiro (NOGUEIRA, 2020). Entende-se como
epistemologias de terreiro a produção de conhecimento com base nos saberes e
fazeres das comunidades religiosas de matriz africana, tendo como princípios e valores
ético-estéticos a ancestralidade africana e afro-brasileira e a tradição oral.
A tríade afro epistemológica
[Terreiro – Caminho - Encruzilhada]
O trabalho propõe uma epistemologia negra do sentir, viver e fazer (n)a cidade
e (n)o bairro negro que emerge da cosmologia e das práticas rituais e cotidianas do
Candomblé, aqui entendido não apenas como religião, mas também como estrutura
social e política que propicia outros modos de viver, fazer e pensar os territórios da
diáspora africana. Podemos também falar de uma “afroepistemologia” que está assentada na tríade que opera através das palavras: Terreiro, Caminho e Encruzilhada,
14
que, conectadas, possibilitam a “Energia em Movimento” – o fluxo contínuo do Axé e
o desvelamento da cidade negra. ademais, são: “palavras, que vão além do conceito,
porque no universo negro dos candomblés a palavra tem poder de realização, porque
15
estão vinculadas ao axé”.
A tríade como dispositivo conceitual está presente na cosmologia dos candomblés
de tradição nagô, nos quais “é possível encontrar a confirmação do valor fundamental
da tríade em muitos discursos míticos e rituais recorrentes no mundo do candomblé”
(SERRA, 2002, p. 87). O número três constitui no candomblé “tudo aquilo que é dinâ16
mico, o que possibilita o movimento e o acontecimento”, sendo também associado
a Exu como elemento que “abre a possibilidade do infinito diverso e aquele que
possibilita a linguagem” (SODRÉ, 2017, p. 178). Portanto, a tríade, assim como o número
três, está no campo (simbólico e material) dos domínios de Exu, mais especificamente
17
de Oritá Métà ou Igbá Keta, “aquele que é o 3 por excelência”, “energia propulsora
p. 313
do dinamismo e das interações”, “quem cria a partir das desconstruções e desordens”
(RUFINO, 2016, p. 4). Conforme narrativa mítica contada nos terreiros:
[...] conta-se que em tempos imemoráveis Exu recebeu
a opção de escolher entre duas cabaças. A primeira
continha o pó mágico referente aos elementos que positivavam a vida no universo, enquanto na segunda estava outro pó, referente aos elementos que negativavam a vida no universo. Frente ao dilema entre as duas
opções, Exu acabou surpreendendo a todos quando optou
por uma terceira cabaça, esta vazia, sem absolutamente nada dentro. Assim foi feito: trouxeram a terceira
cabaça e a entregaram a Exu. Tendo a terceira cabaça
em seu domínio, Exu retirou o que havia na primeira
o pó mágico referente aos elementos positivadores e
despejou na cabaça vazia. Logo em seguida, repetiu o
procedimento com a segunda cabaça, retirando dela os
elementos negativadores, e os despejou na terceira.
Exu, então, chacoalhou a terceira cabaça, misturando
os dois elementos, e em seguida os soprou no universo. A mistura rapidamente se espalhou por todos os
cantos, sendo impossível se dizer o que era parte de
um pó ou do outro, mas, agora, um único, um terceiro
elemento (RUFINO, 2016, p. 4).
Portanto, é nessa tríade exuística, ou nessa encruzilhada de três caminhos (Oritá
Métà), que o corpo-Bara do pesquisador está inserido e movimenta-se em direção ao
encontro dos caminhos, das encruzilhadas e dos terreiros do Engenho Velho da Fede18
ração. O corpo afrodiaspórico que gira e parte de Pambu a nzila (encruzilhada) no
sentido de “ir para frente, ir para trás, ir para direita, ir para esquerda, ir para cima, ir
para baixo, e, sobretudo, ir para dentro de si mesmo a fim de fazer a escolha correta
de que caminho tomar” (PINTO, 2015, p. 165).
[1] Terreiro
p. 314
Proponho aqui uma leitura do Terreiro como território conquistado e (re)criado pelos
povos africanos em diáspora que assentaram-se em solo brasileiro – especialmente
os que vieram para Salvador, na Bahia –, fruto de lutas incessantes e de resistência
ao poder colonial e às suas formas de dominação e doutrinação político-ideológica.
É também um espaço sagrado de culto à ancestralidade negro-africana, construído
com base na contribuição dos povos e etnias africanas que estruturaram as bases do
Candomblé e demais cultos afro-brasileiros. Nesse sentido, a concepção de Terreiro na
encruzilhada da diáspora negra aponta para caminhos múltiplos (próprios da natureza
de Exu): instituição religiosa afro-brasileira; espaço sagrado de culto à ancestralidade
negro-africana; lugar de resistência e acolhimento – reconstituição de laços familiares
perdidos ao longo das travessias transatlânticas; dentre tantos outros.
Luiz Rufino propõe uma noção de terreiro, com base na sua “Pedagogia das Encruzilhadas”, que não se limita apenas à dimensão física do espaço de culto, pois
“abrange todo campo inventivo, seja ele material ou não, emergente das criatividades,
das necessidades e dos encantamentos dos tempos/espaços” (RUFINO, 2018, p.
83). A perspectiva lançada pelo autor pretende pluralizar o termo “terreiro” para além
da compreensão físico-territorial e alcançar os campos simbólico e político, pois “as
invenções de terreiros nos possibilitam mirar o alargamento das interpretações e
conhecimentos acerca do mundo” (RUFINO, 2018, p. 83).
Muniz Sodré (1988), em sua célebre obra “O terreiro e a cidade”, apresenta uma
ideia cosmológica de Terreiro, pois compreende o terreiro como um entre-lugar, “uma
zona de intersecção entre o invisível (orum) e o visível (aiê), habitado por princípios
cósmicos (orixás)” (SODRÉ, 1988, p. 75). Em outras palavras, entende o terreiro como um
espaço de comunicação, elo entre os corpos que habitam o mundo visível (pessoas,
animais e natureza) e o mundo invisível (das entidades e espíritos ancestrais). Além
disso, a existência do Terreiro só pode ser assegurada se houver o Axé, porque é essa
força que “assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir [...] É o
princípio que torna possível o processo vital” (SODRÉ, 1988, p. 87).
A presença dos terreiros de candomblé no bairro do Engenho Velho da Federação pode ser considerada a maior expressão da cultura negra local, pois remete a
uma história de luta e resistência de negros africanos escravizados que habitavam as
terras que hoje correspondem ao território do bairro e obtiveram êxito ao implantar o
terreiro como espaço de culto e manutenção de saberes e práticas ancestrais, tendo
o corpo, a memória e a oralidade como suportes do que convencionou-se chamar
de Candomblé, a maior expressão afro-religiosa baiana.
Por meio de uma narrativa mítica ou estória – como prefere chamar –, Everaldo
Duarte descreve com muitos detalhes o começo da comunidade do Bogum:
Já amanhecia o dia 1º de janeiro, quando os dois chegaram ao lugar. Era uma pequena clareira entre várias
gameleiras e três cajazeiras, cujas raízes se destacavam acima do solo e se enroscavam umas nas ou-
p. 315
tras, deixando espaços redondos vazios próprios para
oferendas [...] Os dois caminharam cerca de uns 20
metros e ela então desatou o Ojá, retirou os Otás de
Bogum e Dan, escondidos entre os seios, e os entregou
a ele [...] O homem então ergueu os dois Otás acima
da cabeça e cantou duas canções, invocando um e outro
Vodum [...] Ficaram ali, ambos imóveis, enquanto, por
entre as folhas das cajazeiras, uma serpente escura,
com uma crista vermelha entre os olhos, observava.
Três arco-íris desciam em cima dos Otás. Três deles
se misturavam como que demonstrando a validade da
missão que fora delegada ao casal. Era a presença de
Mawu-Lissá e Ayduwedo. Estava plantado o Axé do Bogum
(DUARTE, 2018, p. 16).
Complementando a narrativa, ainda segundo Duarte (2018), na noite de 31 de
dezembro de 1719, um casal de negros fugiram do Engenho que situava-se na área
que hoje é conhecida como Pedra da Marca (localidade vizinha e adjacente ao bairro)
19
com a missão de plantar o Axé dos Voduns trazidos da região do Mahi, na África.
Diante das condições adversas, eles precisavam encontrar um lugar seguro onde
pudessem plantar esse Axé, sendo o lugar escolhido correspondente hoje ao território
do Zoogodô Bogum Malê Rundó, mais conhecido como Terreiro do Bogum, e áreas
adjacentes, como a localidade do Alto do Bogum. Naquela época, essa era uma
região tomada por muitas árvores e mata, como fica evidente na estória contada por
Duarte. Esse acontecimento pode ser considerado um marco – histórico, político e
simbólico, pois o espaço foi sacralizado, possibilitando uma abertura para a vinda de
outros negros escravizados que moravam nas senzalas do engenho citado, que, aos
poucos, estabeleceram-se no território com a missão de alimentar o Axé que havia
sido plantado ali,
p. 316
[...] informados de tudo, sabiam o que o Axé fora
plantado e que podiam organizar novas fugas, sabendo
para onde. Assim, várias outras “visitas” foram feitas ao local sacralizado [...] Em cada visita, o Axé
era revitalizado e durava o tempo que os Voduns permitiam [...] Numa dessas visitas, destacou-se outra
também importante [...] Um forte guerreiro, herdeiro
dos segredos de Kevioso, também portava missão semelhante. E foi mais ou menos do mesmo modo que a fuga
do guerreiro se completou ao achar o mesmo local dos
assentamentos de Bogum e Dan ao lado do assentamento
de Inhangui e Lissá. Junto a eles, o guerreiro colocou os Axés dos Kavionos (DUARTE, 2018, p. 18).
Pouco tempo depois, o espaço do terreiro passou a abrigar outros negros militantes
políticos que eram perseguidos pelas autoridades, evidenciando também o caráter
político da comunidade-terreiro, que contou com a participação de vários dos seus
frequentadores durante a famosa Revolta dos Malês, em 1835 (DUARTE, 2018), cuja a
20
expressão “‘malê” foi incorporada ao nome da própria comunidade-terreiro “Zoogodô
Bogum Malê”. Por esse motivo, o termo “bogum” também costuma ser associado ao
levante dos malês, conforme depoimento de Orlando Barbosa, morador e presidente
da Associação de Moradores:
Aqui era conhecido pelo esconderijo do tesouro dos
malês, da Revolta dos Malês. Onde eles guardavam suas
economias. O que era o Bogum? Bogum eram aquelas malas de dinheiro que os malês guardavam, enterravam
aí. Daí ficou conhecido como Largo do Bogum, no fim de
linha do Engenho Velho da Federação (Orlando Barbosa
apud RAMOS, 2013, p. 119).
De acordo com Maria Estela Ramos (2013), os terreiros constituem uma importante
referência para o bairro negro, tanto para os adeptos do culto como para os demais
moradores, que mesmo não sendo praticantes da religião possuem o que a autora
21
conceituou como afro-consciência espacial. Em sua tese de doutorado, ela propõe
uma apreensão do bairro negro (afro)centrada nos terreiros, onde o Engenho Velho da
Federação seria uma “extensão dos terreiros”, um território de confluência da população negra na cidade de Salvador. Usando outros termos da autora, os terreiros seriam
os “nucleadores urbanos do bairro”, isto é, “agenciadores de espacialidades urbanas”.
Ao longo da pesquisa foi elaborado um mapeamento dos terreiros em atividade
nas várias localidades que constituem o Engenho Velho da Federação. Essa pesquisa
teve como suporte outros mapeamentos realizados anteriormente, como o projeto
22
“Mapeamento dos terreiros de Salvador” (2008) e o mapeamento realizado por
Ramos (2013) em sua tese, além das informações obtidas através do trabalho de
campo que desvelou espaços-terreiros que não haviam sido identificados nos mapeamentos citados. Após análises, os mapeamentos citados foram sobrepostos e
somados à experiência de campo, no qual foi elaborado um novo mapeamento que
identificou 23 terreiros, localizados e circunscritos dentro dos limites territoriais do
23
bairro, pertencentes a matrizes africanas e afro-brasileiras diversas – ou nações,
24
como as comunidades-terreiros convém chamar .
p. 317
No bairro em questão, é possível encontrar terreiros das quatro principais nações
25
ou tradições do candomblé da Bahia: Ketu, Angola, Jeje e Ijexá, sendo que há uma
predominância das nações Ketu (14) e Angola (6). Ainda, há moradores que afirmam
que há um número maior de terreiros em relação ao que foi indicado pelas pesquisas
e mapeamentos citados, contudo o presente trabalhou só conseguiu identificar um
número total de 23 terreiros.
[2] Caminho
O caminho-percurso-trajeto que parte da encruzilhada e nos leva aos terreiros
retorna ao princípio de sua imanência: Exu/Nzila/Legba. Nesse sentido, destaco e
reverencio duas das muitas facetas e qualidades do orixá Exu: Exu Lonan ou Onan, o
senhor de todos os caminhos; e Exu Elegbara, o senhor do poder mágico, da transformação e das possibilidades.
Partindo da cosmologia dos terreiros, falar de caminho é evocar a presença e os domínios das energias/forças que o constitui. Rufino (2018) nos traz a figura de Exu como
possibilidade, do andarilho que perambula pelo mundo, reinventando-o a partir de
26
travessuras. Pinto (2015) nos revela a força de Unjira ou Nzila, o inquice dos caminhos,
cujo vocábulo “nzila” da língua Kikongo possui múltiplos sentidos, podendo significar:
caminho, vereda, atalho, passagem, rota; expediente; meio ou maneira de chegar a,
de conseguir; caminho, direção para. Em suma, Exu/Nzila/Legba são e constituem o
próprio caminho, pois atuam sobre o mesmo, acompanham, direcionam e protegem
os corpos-sujeitos andarilhos que caminham e experimentam as ruas da cidade.
Existe o caminho que se mostra à priori através da escala mais reduzida e distanciada dos mapas e das imagens aéreas no qual é possível projetar e planejar percursos
e trajetos ideais, assim como existe o caminho que está condicionado à presença
do corpo no território, que se desvela e se constrói junto ao movimento desses corpos-sujeitos andarilhos que investigam, esmiúçam e são afetados e contaminados
pela energia propulsora da vida das e nas ruas. Ao longo da pesquisa meu corpo se
movimentou nessas duas direções a fim de compreender como os caminhos e o
cotidiano do bairro estavam impregnados das culturas afrodescendentes.
p. 318
Caminhar pelo bairro foi se revelando uma ferramenta potente de apreensão da
cultura negra local e da escala do cotidiano, onde o ato pedestre de andar poderia
ser comparado ao ato da fala, ou nas palavras do próprio Certeau (1998): caminhar na
cidade é um “ato de enunciação”. Os caminhos vivenciados pelo corpo negro enunciam
a cultura negra local, marcada, principalmente, pela religiosidade, que se mostra
híbrida e justaposta por conter tanto elementos das africanidades encontradas no
Candomblé quanto o apelo popular a determinados santos católicos também cultuados pela comunidade negra.
Seguimos falando dos nomes dos lugares e caminhos do bairro, através da sua
toponímia, termo que se refere ao estudo histórico das origens dos nomes dos lugares.
Segundo Ramos (2013), a análise da toponímia nos ajuda a compreender a relação dos
moradores com muitos dos caminhos, assim como a formação histórica das localidades que constituem o bairro. Por exemplo, o caminho denominado “Avenida Parente”
foi construído e transformado em arruamento pelos parentes e familiares de Seu
Orlando: “Eu moro na Avenida Parente. Quem fez a Avenida Parente? Meus parentes!
E outras pessoas lá, que cavaram com picareta, com enxada, pã pã, e abriram a rua.
Derrubou mangueira, derrubou jaqueira, tirou... E fez a rua!” (Orlando Barbosa apud
RAMOS, 2013, p. 252). Há também ruas que carregam o nome de pessoas e lideranças
importantes dos terreiros do bairro: Rua Elizabete, nome da fundadora do terreiro
Tanuri Junsara; Rua São Romão, nome em referência ao Seu Romão, ogã do Terreiro
do Bogum; Vila Flaviana, em referência ao nome da fundadora do Terreiro do Cobre.
A noção de caminho que aparece e está assentada no bairro do Engenho Velho
da Federação é compreendida como possibilidade de (auto)construção gerida pelos
próprios moradores que se encarregaram de criar uma rede de caminhos que hoje
serve de circulação interna e acesso às residências, mas que também possibilitava
acessar e apropriar-se de lugares que hoje povoam o imaginário da comunidade,
como fontes d’água, áreas de mata, quintais, terreiros, dentre outros espaços que
propiciavam as relações socioculturais de vizinhança. Os caminhos do bairro foram
desbravados e delineados pela população local: “criadas pelos próprios moradores,
as trilhas e caminhos de terra batida foram abertos em mata fechada; com o adensamento das construções, as trilhas ficaram mais estreitas, constituindo becos e vielas”
(RAMOS, 2013, p. 134).
Do ponto de vista da morfologia urbana, atualmente o bairro é formado por uma
rede de caminhos (ruas, becos, vielas, escadarias etc.) que se integra ao sistema viário
da cidade, possibilitando conexões com outros bairros e localidades adjacentes, através das principais vias do tráfego local (ruas Apolinário Santana, Manoel Bonfim-Ladeira
do Bogum e Palmeiras), direcionadas tanto para veículos como para pedestres. Ao
adentrar essa rede de caminhos, sobretudo por meio da entrada físico-corpórea no
p. 319
território, é possível identificar uma variedade de formas e tipos de caminhos que ajustam-se às necessidades coletivas e à topografia local, por exemplo, como caminhos
que conectam as áreas de cumeadas, onde estão as principais vias de circulação,
às áreas de baixadas, onde estão situadas importantes localidades como a Fonte do
Forno, Baixa da Égua, através de escadarias e ladeiras, que, por sua vez, recebem
outros nomes: rua, travessa, avenida, etc.
Para fechar a compreensão do caminho, no que tange à morfologia urbana e à
afroconsciência espacial dos moradores, trago o conceito de “caminhalidade”, elaborado
por Ramos (2013) na sua compreensão da forma urbana negra do bairro. De acordo
com a autora, boa parte dos caminhos foi delineada de forma concomitante aos assentamentos familiares e servia de referência como divisa para demarcação dos terrenos.
Além de compor a rede de caminhos por onde circula o fluxo de pessoas e objetos, esta
caminhalidade é também um espaço onde se cultivam as relações de conviviabilidade,
por meio dos encontros, das referências familiares e redes de vizinhança:
[...] parte da origem desta rede de caminhos foi
criada através destas relações sociais, e não através
de um desenho planejado, do ‘concebido’, mas resultado do ‘vivido’, do apreço conquistado entre os vizinhos, numa demonstração da conviviabilidade (RAMOS,
2013, p. 249).
A noção de caminho aqui proposta se dá através da prática e da vivência in-corporada na e da rua com todos os elementos (pessoas, edificações, seres vegetais e
animais, energias, objetos) que constituem a (i)materialidade urbana do lugar. Em outras
palavras, é caminhando, desbravando, construindo, compartilhando, investigando,
esmiuçando, se fazendo de corpo presente na vida urbana que se faz o caminho!
[3] Encruzilhada
p. 320
A travessia em que consiste este ensaio partiu e retorna à encruzilhada, por entender os movimentos de partida e chegada que a constituem. A encruzilhada é um lugar
de tomada de decisão, onde o corpo-sujeito se coloca de pé para avaliar a miríade
de caminhos que se revelam como possibilidade de (re)criação e (re)constituição de
mundos no continuum da diáspora africana. As encruzilhadas são, portanto, “campos
de possibilidades, tempo/espaço de potência, onde todas as opções se atravessam,
dialogam, se entroncam e se contaminam” (RUFINO, 2018, p. 75).
O campo de forças que age sob e desde a encruzilhada nos traz, continuamente,
a presença de Exu que faz dela sua morada nos espaços urbanos da cidade negra,
especialmente em Salvador, onde as encruzilhadas são lugares notadamente reconhecidos pelo Povo de Santo, pois o saber-fazer do terreiro nos ensina que: não
se passa por uma encruza sem pedir licença e reverenciar Exu/Nzila/Legba. É nas
encruzilhadas onde são depositadas oferendas para Exu ou, ainda na linguagem do
Povo de Axé, onde são despachados e arriados os ebós, com o intuito de atender às
práticas rituais e litúrgicas das comunidades-terreiros ou solicitações pessoais de seus
adeptos e praticantes. Nesse sentido, Exu nos apresenta mais uma de suas facetas:
27
seus domínios de Enugbarijó, o Senhor da boca coletiva ou, na linguagem própria
dos terreiros, “a boca que tudo come”.
Ainda nessa abordagem da encruzilhada como morada do sagrado afro-brasileiro, gostaria de interagir com outras duas veredas de Exu: Oritá Métà e Òkòtó. Oritá
Métà é um título que lhe confere o domínio sobre as encruzilhadas, especificamente
quando há o encontro de três caminhos ou ruas conformando um desenho-forma
28
tipo “Y”, encontrando sentido também na interpretação de Exu como sendo o “+1”.
29
Já a representação de Òkòtó aparece através da figura do caracol que remete ao
movimento espiralar de Exu, rumo ao “infinito diverso” de possibilidades ( SODRÉ, 2017,
p. 178). Essa noção de movimento espiralar é também apresentada por Jocevaldo
Santiago (2020) na conferência “Exu como epistemologia”, na qual lança mão de um
30
diagrama denominado “Exugráfico” para grafar a ideia de tempo espiralar, que o autor
reconhece como elemento importante para pensar os movimentos ou “movências”
(expressão utilizada por Santiago) de Exu.
Se partirmos de uma perspectiva que considera a morfologia urbana da cidade, a
encruzilhada poderia ser incluída no hall dos elementos estruturantes que constituem
esse campo de estudo, sobretudo nas abordagens que evidenciam a produção dos
espaços na cidade negra, a exemplo desse ensaio. Há que se levar em consideração
que alguns elementos espaciais, considerados estruturantes do desenho urbano (a
exemplo das quadras, da concepção do lote com recuos, ou ainda de praças e outros
espaços livres projetados) não fazem parte nem do planejamento urbano estatal e
governamental (praticamente inexistente nos bairros negros), nem do desenho/forma e
da produção (autônoma e coletiva) dos espaços urbanos que constituem o bairro negro.
Desse modo, a encruzilhada poderia ser definida através dos caminhos que se
encontram, (inter)cruzam e também se bifurcam em outras direções. Dentro dessa
dimensão morfológica, poderíamos falar também de tipos ou tipologias que pudessem
p. 321
classificar e diferenciar as encruzilhadas entre si. Tomando como base o discurso das
comunidades-terreiro, a encruzilhada pode ser caracterizada em função da quantidade de “pernas” ou caminhos que a constituem, a exemplo de uma encruzilhada de
3 ou 7 pernas, que possuiria força simbólica e ritual destacada, já que os números
3 e 7 estão intimamente ligados aos domínios de Exu. Ou ainda, se pensarmos nos
tipos de desenho/forma que elas grafam no espaço urbano. Assim, poderíamos ter
encruzilhadas tipo “T” (encontro/cruzamento de 2 caminhos) ou tipo “Y” (encontro/
bifurcação de 3 caminhos).
Para o contexto do bairro do Engenho Velho da Federação, foram mapeadas diversas encruzilhadas que se conformam através do cruzamento dos muitos caminhos
(ruas, becos, vielas, passagens etc.) e, por ora, se sobrepõem aos espaços públicos
livres existentes como pequenos largos e praças. Entretanto, foram destacadas quatro
encruzilhadas pela importância que possuem, seja pela dimensão morfológica, simbólica e/ou histórica: duas encruzas de “entrada/saída” que dão acesso ao bairro a partir
de avenidas adjacentes e duas encruzas mais locais que constituem as centralidades
mais antigas do bairro. Gostaria de debruçar um pouco mais de atenção sobre as
encruzilhadas do Largo do Engenho Velho e do Largo do Bogum.
A primeira dessas encruzas faz referência ao nome do espaço público do Largo do
Engenho Velho, também chamado de Primeiro Largo, em referência à Avenida Cardeal
da Silva, que dá acesso ao bairro e ao trajeto percorrido pelos ônibus que integram
a rede metropolitana de transporte público e conectam o bairro a outras regiões
da cidade. De acordo com Ramos (2013), é a segunda centralidade mais antiga do
bairro e no espaço urbano do referido largo concentram-se usos e práticas diversas,
em especial aquelas ligadas ao comércio e serviços como quitandas, mercadinhos,
barzinhos, farmácias, barbearias, dentre outros, sendo atividades que tornam a área
movimentada durante o dia, à noite e também nos fins de semana.
p. 322
A outra encruza refere-se ao espaço do Largo do Bogum/Alto do Bogum, que,
por sua vez, está associado ao Terreiro do Bogum e é considerada a centralidade
mais antiga do bairro (RAMOS, 2013), possuindo alguns acessos a partir de caminhos/
ladeiras que ligam a Avenida Vasco da Gama ao espaço citado. Essa encruzilhada
31
ainda comporta a Praça Mãe Runhó, que se caracteriza mais como um canteiro ou
área residual do sistema viário, onde encontram-se erigidos o busto de Mãe Runhó,
que dá nome ao espaço, e a imagem de São Lázaro,que está relacionada à romaria
e devoção da comunidade ao santo católico. Para além dessas camadas, podemos
adicionar mais uma, já que o espaço é também o “Fim de Linha” dos ônibus que
circulam sob a Rua Apolinário Santana, umas das principais vias locais. Todas essas
camadas estão sobrepostas e sedimentadas nessa encruzilhada, notadamente a mais
importante do bairro, onde estão concentradas muitas forças, em especial aquelas
vinculadas à dimensão religiosa.
32
Em torno do canteiro onde está situado o busto de Mãe Runhó, reúnem-se os
adeptos das comunidades-terreiros do bairro e da cidade em prol da “Caminhada pelo
Fim da Violência, da Intolerância Religiosa e pela Paz”, que acontece desde 2004 e
percorre as ruas do bairro e do entorno no intuito de denunciar as violências físicas e
simbólicas engendradas pelo racismo religioso – oriundo, em sua maioria, de grupos
neopentecostais –, que incide sobre as práticas religiosas de matriz africana. É na
encruzilhada e largo do Bogum que se tem início a Caminhada, onde Exu/Nzila/Legba
são reverenciados com pedidos de licença, materializados através de um despacho/
ebó com a finalidade de abrir e proteger os caminhos do corpo coletivo que vai percorrer as ruas do bairro. Essa encruza é também o ponto de chegada da Caminhada,
onde os participantes se reúnem em volta do Busto de Mãe Runhó, através de ato
simbólico em reverência a Oxalá, com pedidos de paz e cânticos em louvor ao orixá.
A Caminhada assume a força da festa (SODRÉ, 1988) ao sacralizar espaços-tempo
ao longo do seu trajeto. É o corpo negro afrodiaspórico que se apropria dos espaços
das ruas e das encruzilhadas, como extensão dos terreiros, para denunciar, protestar,
reivindicar, celebrar, dançar, cantar, comer e marcar sua presença negra na cidade.
Algumas considerações in-conclusivas
Conforme as considerações finais do professor Fábio Macêdo Velame acerca
do TFG – semente embrionária desse ensaio – o axé do trabalho, ou seja, o poder
de acontecimento, está na proposição de uma epistemologia negra, afro-brasileira
no olhar, viver, experimentar, fazer e propor cidade. O TFG como fonte matricial da
construção desse ensaio identifica, apreende e in-corpora as cosmopercepções e
epistemologias negras oriundas do bairro negro do Engenho Velho da Federação, em
especial aquelas praticadas e percebidas nos espaços dos terreiros de candomblé
e suas extensões na cidade. Para isso foi necessário que o autor “renascesse” como
arquiteto urbanista, desvencilhando-se de sua formação arquitetônica e urbanística
eurocêntrica, modernista e ocidental, herdada da academia, e passasse a in-corporar
os valores e práticas da comunidade e território afrodiaspórico em questão, o Engenho
Velho da Federação.
p. 323
Buscou-se sentir, viver e fazer a cidade negra através do corpo-Bara e suas cosmo-sensações vinculadas à ancestralidade negro-africana e afro-brasileira, às espacialidades e territorialidades afrodescendentes, às energias e forças invisíveis que se fazem
presentes e materializam-se nos espaços urbanos, sobretudo na natureza e, por fim,
ao axé, princípio vital da existência para o Povo de Santo. Isto para que o corpo-Bara
pudesse ver, escolher e trilhar o Caminho (Nzila), onde só se enxergava o sistema
(macro) viário; para alimentar (dar de comer e de beber) e mover-se na Encruzilhada
(Pambu), onde antes só se enxergava esquinas e quadras; para reconhecer o espaço
do terreiro como lugar de resistência, acolhimento, manutenção e troca de saberes,
territórios-mundos sagrados que constituem a alma da cidade negra do Salvador e
do bairro do Engenho Velho da Federação.
Notas
1
Intitulado “Verde limiar: entre o visível
e o invisível. Desvelando espaços verdes no
Engenho Velho da Federação”, o trabalho foi
apresentado à Faculdade de Arquitetura da
UFBA em julho de 2019 para obtenção do título
de Arquiteto e Urbanista.
2
Desde a sua gênese, o trabalho buscou
subverter a lógica do fazer acadêmico que
costuma situar o/a pesquisador/a como sujeito
e os indivíduos/comunidades como objeto de
estudo, tomando o pensamento negro insurgente
de Makota Valdina que nos convoca, indivíduos e comunidades negras, a nos tornarmos
sujeitos da nossa própria história, ou em
suas palavras: “é preciso ser sujeito e não
objeto”.
p. 324
3
O trabalho foi orientado pelo Prof. Fábio Macêdo Velame e coorientado da Prof.ª
Marta Raquel da Silva Alves; e avaliado por
Maria Estela Ramos (professora, pesquisado-
ra e arquiteta convidada), Gabriela Leandro
Pereira (Gaia) e Thais Portela, ambas professoras da Faculdade de Arquitetura da UFBA.
4
Sujeitos reconhecidos pela comunidade
como herdeiros e detentores de saberes e
fazeres da tradição oral (HAMPATÉ BÂ, 2010;
PACHECO, 2006).
5
O epíteto “Roma Negra” é uma frase me-
tafórica cunhada pela famosa Iyalorixá Mãe
Aninha – fundadora do Terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá – para se referir à cidade de Salvador
como um centro difusor da religião de matriz
africana no Brasil (SILVA, 2018, p. 7).
6
Em 2017, segundo a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD
Contínua) do IBGE, 8 em cada 10 moradores de
Salvador eram negros (autodeclarados pretos
ou pardos) e somavam 82,1% da população total. Disponível em: https://bahiaeconomica.
com.br/wp/2018/11/19/ibge-salvador-e-a-capital-mais-negra-do-brasil-e-tambem-onde-esta-maior-desigualdade-salarial-entre-brancos-e-pretos/. Acesso em: 20 mar. 2021.
de candomblé (a partir da interlocução com
moradores e membros das comunidades-terreiro
do bairro).
7
8
Oyèrónkẹ
́ Oyěwùmí utiliza o termo “cosmopercepção” ao invés do termo “cosmovisão”
para descrever os povos iorubás ou outras
culturas que podem privilegiar sentidos que
não sejam o visual ou, até mesmo, uma combinação de sentidos (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 29).
Para mais informações ver Carvalho e
Pereira (2008).
Segundo dados do Censo 2010 realizado
pelo IBGE, no que tange à classificação da
população de acordo com sua raça/cor, 87,22%
dos moradores do Engenho Velho da Federação
autodeclaram-se negros (RAMOS, 2013).
9
Everaldo Duarte, ancião do Terreiro do
Bogum, conta que, no ano de 1719, um casal de
negros fugiram de um Engenho que situava-se
próximo ao bairro com a missão de plantar o
Axé dos Voduns que foram trazidos da região
do Mahi (África) no território que hoje conhecemos como sendo o bairro do Engenho Velho
da Federação (DUARTE, 2018, p. 16).
10
As casas de candomblé mais antigas do
bairro seriam o Terreiro da Casa Branca e o
Terreiro do Bogum, ambas foram fundadas em
meados do século XIX e instalaram-se em terrenos próximos (RAMOS, 2013; SANTOS, 2008).
11
O conceito de “Bará do corpo” ou “Exu
do corpo” foi introduzido nas religiões afro-brasileiras através do livro “Os Nagô e a
Morte”, de Juana Elbein dos Santos, e afirma
que o Bará do corpo seria uma “qualidade de
Exu” que existiria dentro de cada pessoa,
dando-lhe movimento e vida, responsável pela
comunicação com o mundo exterior (MARINS,
2016, p. 2).
12
O trabalho de campo foi realizado
entre 2017 e 2019 através de caminhadas e
visitas guiadas pelo bairro, conversas e entrevistas com moradores e lideranças locais,
participação em eventos de caráter político-religioso e festas públicas nos terreiros
13
14
Termo de origem yorubá que significa
“energia”, “poder”, “força”; ou, ainda, segundo Juana Elbein dos Santos, a força vital,
princípio-chave da cosmovisão do candomblé
que “assegura a existência dinâmica, que
permite o acontecer e o devir. Sem axé, a
existência estaria paralisada, desprovida de
toda possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital”
(SODRÉ, 1988, p. 87).
15
Extraído do Parecer do TFG (Trabalho
Final de Graduação) do Autor, elaborado pelo
professor e orientador Fábio Macêdo Velame,
apresentado em 03/07/2019 aos membros da banca avaliadora e presentes no dia da defesa do
trabalho na Faculdade de Arquitetura da UFBA.
16
17
Idem.
De acordo com Luiz Rufino (2016, p. 4),
é “um dos títulos de Exu que confere a ele
a condição de o Senhor da terceira cabaça,
podendo ser também conhecido como o Senhor
da encruzilhada de três caminhos”.
18
Expressão ou vocábulo da língua Kikongo, uma das línguas faladas no candomblé de
tradição angola, que quer dizer “encruzilhada
no caminho” (PINTO, 2015, p. 165).
19
Os Voduns correspondem às entidades
espirituais que compõem o panteão jeje (matriz africana a qual está vinculado o Ter-
p. 325
reiro do Bogum). Para mais informações sobre
os Voduns e demais entidades que constituem o
panteão jeje ver o capítulo “O panteão jeje
e suas transformações”, no livro “A formação
do Candomblé”, do antropólogo Luis Nicolau
Parés (2006).
20
21
Referente aos negros africanos mulçumanos, também conhecidos como muçurumins.
“A afro-consciência espacial é um conceito voltado para a interpretação do espaço dos bairros negros, carregado de ações
implícitas de seus habitantes, de caráter
material e imaterial. Interessa-nos com este
conceito evidenciar, principalmente, a subjetividade das interpretações, de como o
real pode ser pensado, incorporando o espaço
físico nas relações e práticas sociais na
produção do espaço do bairro negro” (RAMOS,
2013, p. 244).
22
Coordenado pelo professor e antropólogo Jocélio Teles dos Santos, o projeto
foi uma iniciativa das Secretarias Municipais
da Reparação e da Habitação do Município de
Salvador em parceria com o CEAO - Centro de
Estudos Afro-Orientais da UFBA. A pesquisa
foi desenvolvida entre 2006 e 2007 através
do levantamento cadastral e diagnóstico dos
terreiros da cidade tendo como objetivo principal a implementação de políticas públicas
voltadas para as comunidades-terreiros, em
especial aquelas voltadas para a regularização fundiária desses territórios (SANTOS,
2008).
23
Os limites territoriais adotados foram definidos a partir da delimitação proposta
por SANTOS et al. (2010) na publicação “O Caminho das Águas”, que propõe limites para os
bairros de Salvador levando em consideração
um estudo das bacias hidrográficas da cidade.
p. 326
24
Refere-se ao “padrão ideológico e
ritual dos terreiros de candomblé da Bahia
estes sim, fundados por africanos angolas,
congos, jejes, nagôs – sacerdotes iniciados
de seus antigos cultos, que souberam dar
aos grupos que formaram a norma dos ritos e
o corpo doutrinário que vêm se transmitindo
através dos tempos e a mudança nos tempos”
(LIMA, 1976, p. 77).
25
26
Para mais informações ver LIMA (1976)
e CARNEIRO (2002).
De acordo com Makota Valdina, o in-
quice ou n’kisi para o candomblé de tradição
angola é “entidade, a energia/ força, a essência existente em toda a natureza, contida
nos elementos da natureza, mas que também se
mostra para nós através da incorporação nos
seres humanos por ele escolhidos”. Recebe a
mesma reverência dos iniciados no candomblé,
quando comparados aos voduns e aos orixás,
entidades/divindades cultuadas nos candomblés
de tradição jeje-nagô (PINTO, 2015, p. 156).
27
“Enugbarijó é um dos títulos de Exu
que o concede a condição de boca do mundo ou
boca coletiva [...] É aquele que engole de
um jeito para cuspir de outra forma” (SIMAS;
RUFINO, 2018. p. 69).
28
Segundo Rufino (2018, p. 77), “esse
caráter o dimensiona enquanto ser inacabado, como potência que pode vir a se somar e
alterar toda e qualquer situação”.
29
“É representado pelo caracol-agulha,
mostra a evolução de tudo o que existe sobre
a Terra [...] O dono da evolução, o caracol”
(LIMA, 2016, p. 143).
30
De acordo com Santiago (2020), essa
ideia de tempo espiralar também está presente
na obra de Mestre Didi e nas teorias de Leda
Maria Martins. Para mais informações ver a
publicação “Èsù” autoria de Mestre Didi com
Juana Elbein dos Santos (SANTOS; SANTOS,
2014) e “Performances do tempo espiralar”
de Leda Maria Martins (2021).
31
A praça foi inaugurada em 1993 pela
Prefeitura Municipal de Salvador, onde foi
erigida a estátua de Mãe Runhó, que na época
da inauguração era o único monumento público
na cidade em homenagem a uma mulher negra e
sacerdotisa de um templo religioso de matriz
africana (SERRA, 2007).
32
Maria Valentina dos Anjos da Costa
(1877-1975), mais conhecida como Mãe Runhó,
foi uma famosa Doné (sacerdotisa e liderança
religiosa de tradição jeje-mahi) do Terreiro
do Bogum.
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p. 329
Resenha
Travessias
em Ponta de Areia:
um mergulho profundo de poder ancestral
enraizado na arquitetura do Omo Ilê Agboulá
Thifanny Odara Lima da Silva
PPGEDUC / UNEB
o presente texto pretende-se uma resenha
crítica do livro Arquiteturas da ancestralidade
afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo
do culto aos Egum no Brasil, editado em 2019
pela Edufba, de autoria de Fábio Macêdo Velame, arquiteto e urbanista, mestre e doutor em arquitetura e urbanismo e professor da Faculdade de Arquitetura
da Universidade Federal da Bahia. Trata-se de uma obra
que é fruto de extensa e honorável pesquisa de mestrado,
que apresenta outros horizontes epistemológicos no que
tange à compreensão das complexidades e singularidades que estruturam os espaços sagrados afro-brasileiros,
oferecendo ao público leitor um mergulho no legado ancestral compartilhado pelos que preservam os cultos e
rituais litúrgicos de origem africana.
N
Um eterno peregrino, que extrai da ancestralidade a
sua essência, o seu caminho norteador no aiê, o retrato
das dinâmicas de gênero nas sociedades secretas diante
de diversos pontos peculiares, revela uma história que
carrega consigo o caráter plurifuncional que algumas
vezes é político, noutras subjetivo, retratando diante de
si um mundo diverso e repleto de significados próprios.
A comunidade de Ponta de Areia é o início da imensidão
vista no mar que não apaga, mas que preserva os caminhos ancestrais.
v.2 n.1
p. 332-339
2023
ISSN:
2965-4904
Os registros apresentados na escrita de Velame, em
linhas gerais, desvelam a tessitura que vai além da composição arquitetônica, enaltece o cuidado e a peculiaridade vistos no terreiro Omo Ilê Agboudá. Este terreiro se
constitui como um espaço de cuidado e preservação de
rituais sagrados, cheio de símbolos imateriais e significados complexos, que são revividos através de cultos em
que os mortos conduzem os vivos.
O livro conta com quase trezentas páginas de informações profundamente valiosas e instigantes. O autor
divide o seu texto em quatro capítulos, que não são apenas capítulos, mas caminhos
que percorrem grandes poderes da sabedoria no que tange à expansão da existência
milenar de origem nagô, principalmente o culto da sociedade secreta Egungun, que
dá origem ao culto a Egum no Brasil.
A bússola aqui é o seu ponto de partida, sob direcionamentos dados do orum para
o mergulho profundo e imensurável nas narrativas de um universo amplo, cheio de
complexidades, que contribui para o resgate histórico e religioso do culto de Egum,
sendo um mecanismo potencial para desfrutar todo o legado e acervo imaterial instaurado pelas edificações ancestrais desse espaço sagrado.
A pesquisa de Velame traz, a partir da arquitetura do Terreiro Omo Ilê Agboulá,
localizado no povoado de Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, a compressão da cultura
e da dinâmica religiosa da população negra, especialmente do culto a Egum. Velame
destaca que o culto tem como princípio o entendimento africano de Egum:
[...] os Egum eram os ancestrais masculinos que representavam descendências nobres, reis, dinastias
reais e famílias nobres, pais fundadores das cidades
e linhagens, guerreiros, sacerdotes e outras lideranças que tinham conseguido, durante a vida, certo
prestígio e poder (VELAME, 2019, p. 15).
Assim, Velame abre um leque histórico tanto para as análises das arquiteturas das
cidades brasileiras quanto para se pensar as relações étnico-raciais que atravessam
o Brasil. Surge de forma incipiente o racismo sistêmico e estrutural, que incansavelmente deslegitima a importância das contribuições dos povos originários africanos
na construção arquitetônica do país. Ainda que cada pedaço de chão e cada suor
preto derramado demarquem a importância do povo negro para a construção histórico-cultural brasileira, esta problemática ainda é pouco discutida do ponto de vista
urbanístico, arquitetônico e histórico. Ao construir seu texto, Velame se coloca na
contracorrente dessas áreas de conhecimento.
Para essa construção narrativa, o autor se propõe a pensar a arquitetura levando em
conta o tempo e o espaço histórico e político, desde o processo de escravização no
Brasil até os dias atuais, através de um breve histórico sobre as perseguições policiais,
jurisprudência via código penal e tudo o que sistemicamente acomete os negros.
Para o autor, a arquitetura é compreendida como espaço de edificações onde
ocorre o acolhimento, além da morada física. Segundo ele,
p. 335
[...] numa estância e circunstância, em sua simplicidade, ao jogo em espelho do mundo, entre terra, céu,
mortais e divinos, mediante a articulação e organização de seus espaços, sendo estes regidos por uma
cultura formada e constituída, por um sistema simbólico singular, que veiculam concepções e significados
próprios (VELAME, 2019, p. 17).
Esses espaços são, literalmente, reelaborados e repensados para preservar a
cultura e cultuar os ancestrais, correspondidos por meio da arquitetura e instaurados
por “uma arquitetura afro-brasileira de uma sociedade específica de culto aos seus
ancestrais ilustres, uma arquitetura única, singular, particular, sem qualquer paralelo
e similar na África” (VELAME, 2019, p. 18).
Com isso, a ideia central do livro é compreender como a cultura dos povos originários africanos e afro-brasileiros realizou toda a composição urbanística, arquitetônica
e cultural do templo mais antigo de culto aos egum no Brasil: O Omo Ilê Agboulá.
Trata-se de uma retrospectiva importantíssima para a análise histórica da sociedade
secreta Egungun, como é conhecida no território africano.
Além dos fatores relacionados ao próprio axé, a localização do terreiro está intimamente ligada ao processo urbanístico da Ilha de Itaparica, através de seu marco
de resistência. Desde a sua primeira instalação podemos, literalmente, ser religados
à história do Omo Ilê Agboulá através de sua instalação inicial no povoado de Ponta
de Areia, na área de orla, em uma vila pesqueira onde a maioria dos pescadores e
moradores, até então, eram vinculados ao terreiro de culto de Egum. Com a truculência
racista do Estado nos anos 1940, o terreiro é invadido pela polícia porque as práticas religiosas de matriz afro-brasileira eram vistas como práticas de charlatanismo e
oficialmente proibidas. Com isso, o terreiro migra para a localidade conhecida como
Barro Vermelho, uma área à época afastada do meio urbano, o que levou o terreiro a
permanecer aí até o final da década de 1960.
p. 336
Com o início do processo de urbanização ocorre, concomitantemente, o processo
de especulação imobiliária e, consequentemente, a invasão de uma parte da área
ambiental do terreiro. Esta “eventualidade” foi fruto do racismo religioso que, por sua
vez, faz com que, nos dias de hoje, alguns indivíduos se sintam autorizados a invadir,
perseguir e desapropriar territórios sagrados. Tal adversidade força, mais uma vez, o
terreiro a migrar para uma localidade mais afastada, desta vez para Bela Vista, já no
final da década de 1960, onde permanece até os dias de hoje. É importante pontuar
que a aquisição desse espaço foi feita pela Yalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá e Ia Egbé
(Mãe da comunidade) do Omo Ilê Agboulá, Mãe Senhora. Sendo o terreiro mais antigo
de culto aos Egum em todo o Brasil, Velame afirma que:
Ele recebeu não apenas os rituais, as músicas, os
fundamentos, ou seja, a tradição do culto aos Egum,
mas também toda uma linhagem de ancestrais, sejam
eles africanos ou afro-brasileiros que pertenciam aos
terreiros de Egum do século XIX. Atualmente, é referência para todos os demais membros dos terreiros de
Egum no país [...] (VELAME, 2019, p. 22).
Velame pontua que, através dos laços que atravessam a história pela relação de
gênero que está estruturada, os Ojés são os sacerdotes responsáveis pelo equilíbrio
da comunidade por grau hierárquico. O que se estabelece dentro desses espaços são
as dinâmicas de gênero, ratificadas pelas sociedades secretas iorubás masculinas e
femininas e, dentre elas, as sociedades secretas masculinas de Egungun. É isso que
traz para o culto a Egum no Brasil o homem na posição de centralidade. Dentre as
posições hierárquicas mais importantes destacam-se o Alapini, que é o sacerdote
supremo, e o Alabá, o chefe do terreiro. No Omo Ilê Agboulá, o Ojé Alabá é o senhor
Balbino Daniel de Paula. Na sociedade de Egum o antepassado sempre estará atrelado
à figura masculina, o que não invalida nesse espaço a presença feminina. Diferente
do candomblé, que é também uma religião de matriz africana, porém matriarcal, em
que as mulheres estão na posição sacerdotal, no culto a Egum elas ocupam posições
complementares e/ou de apoio.
O autor nos apresenta o espaço e as relações forjadas nele com riqueza de detalhes. Aquilo que nos permite compreender as peculiaridades e subjetividades, vistas a
partir de panoramas importantes sobre a compreensão desse espaço, são as dinâmicas
litúrgicas, compreendidas como locais sagrados. Já os locais não-sagrados, chamados
de profanos, coabitam o espaço, sabendo que todo o seu direcionamento é regido
pelo sagrado:
Todavia, os espaços sagrado e profano, no Omo Ilê
Agboulá, não ocorrem de maneira oposta, polarizada,
e dicotômica, mas sim concomitante. O sagrado rege e
acontece no profano no dia a dia, no cotidiano das
pessoas – em suas condutas, comportamentos, valores
éticos, e escolhas –, estando presente na sacralidade
de que podem ser carregadas suas funções vitais da
alimentação, sexualidade, trabalho e do ciclo da vida
(VELAME, 2019, p. 169).
p. 337
Nessas palavras, é notório compreender como o autor nos apresenta as divisões
arquitetônicas no Omo Ilê Agboulá, constituintes de mecanismos imprescindíveis, pois
possibilitam a conexão com ancestrais ilustres. Reporta-nos ao passado observando
o presente, partindo do direcionamento dos Egum, sem perder de vista o culto à mãe
Terra e sua conexão com os orixás. As circunstâncias do passado moldam o tempo
presente, visto que “Os tempos sagrados e profanos constituem as temporalidades
que balizam a existência do homem religioso” (VELAME, 2019, p. 181).
O livro mostra que os tempos sagrado e profano estão intrinsecamente lado a lado,
fazendo da religião um sistema cultural que, através do tempo, vem modelando pessoas e espaços. Isto impacta diretamente na relação delas com os tempos: “Todavia, o
tempo sagrado e profano, na sociedade de culto aos ancestrais, no Omo Ilê Agboulá,
não são duas categorias dicotômicas, polarizadas, antagônicas; elas coexistem, uma
está presente na outra” (VELAME, 2019, p. 181). O que torna a descrição desse espaço
sagrado, a partir de uma cosmovisão que direciona ao poder, vida e fecundidade, é
uma vida habitada por vir a ser. Trata-se de algo demarcado além de “aquele habitado
pelos deuses, heróis e ancestrais no início do tempo −, regido pela eficiência e não
numa ilusão, num mundo disforme e amorfo” (VELAME, 2019, p. 69).
Reitero, por meio dessas breves palavras, a importância do livro Arquiteturas da
ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo do culto aos Egum no Brasil,
do Professor Doutor Fábio Macêdo Velame. O corpo teórico retrata as contribuições dos
afro-brasileiros para o urbanismo e a arquitetura no Brasil. O livro enaltece o processo
de preservação da tradição dos povos originários iorubás em solo baiano. O que é
discorrido ergue-se não só na arquitetura do templo sagrado, mas é enaltecido nas
estratégias de sobrevivência e resistência de todo o legado existente no terreiro Omo
Ilê Agboulá, através de sua unicidade como casa matriz de culto a Egum no Brasil.
A pesquisa de Velame se tornou não só um material acadêmico que busca averiguar informações sem nenhum tipo de retorno à comunidade pesquisada, ao contrário,
ultrapassou as paredes da academia e, assim como o autor, foi um agente imprescindível para o processo de tombamento do terreiro Omo Ilê Agboulá como patrimônio
cultural do Brasil, no ano de 2015, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). Isto representa um avanço tanto do ponto de vista histórico quanto
para o fortalecimento étnico dos povos iorubás e da cultura afro-brasileira.
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O livro é muito mais do que um retrato vivo que realinha a cronicidade de um
dos legados dos povos nagô para os afro-brasileiros. É um mergulho imensurável na
transmissão milenar que é enaltecida e preservada pela sabedoria ancestral que se
mantém comandada pelos Eguns. Eles nos conectam com a terra ancestral dentro da
terra atual, sendo o livro um bálsamo ancestral para entabular os estudos afrodiaspóricos e africanos no Brasil.
Glossário:
Aiê – O mundo terrestre.
Alabá – Nome do sacerdote chefe de um terreiro de culto aos Egum.
Alabá Babá Mariô – Título honorífico do sacerdote chefe do terreiro de Egum.
Alapini – Título do sumo sacerdote do culto aos ancestrais, o sacerdote supremo de
todos os terreiros de Egum.
Axé – Energia, poder, força da natureza.
Nagô – Refere-se ao povo do antigo imp.rio africano cuja capital política era Oió.
Egum – Espírito ancestral.
Egungun – O mesmo que Egum.
Ojé – Sacerdote do culto de Egum.
Referência
VELAME, F. M. Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira: O Omo Ilê Agboulá: um templo
do culto aos Egum no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.
p. 339
Laje é uma publicação semestral do
¡DALE! – Decolonizar a América Latina
e seus Espaços, grupo de pesquisa
vinculado ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo
da Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal da Bahia. Dedica-se
ao giro decolonial latino-americano, às
epistemologias do sul e à descolonização
do conhecimento, priorizando uma
produção transdisciplinar em interseção
com diferentes dimensões do urbanismo,
da paisagem e da arquitetura.
ISSN: 2965-4904